Conflitos doutrinários, por Jerri Almeida

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Jerri Almeida

É imprescindível o direito de exame e de crítica e o Espiritismo não alimenta a pretensão de subtrair-se ao exame e à crítica, como não tem a de satisfazer a toda gente. Cada um é, pois, livre de o aprovar ou rejeitar; mas para isso, necessário se faz discuti-lo com conhecimento de causa (Allan Kardec. “Obras Póstumas”, 1ª Parte. Ligeira Resposta aos Detratores do Espiritismo).

Não são poucos os conflitos envolvendo o problema das interpretações sobre aspectos doutrinários. Sabemos que o Espiritismo não foi ditado completo, nem imposto à crença cega. Cabe ao ser humano a observação dos fatos, o trabalho de estudar, comentar e comparar a fim de tirar suas próprias ilações e aplicações. No entanto, um dos primeiros problemas que se apresenta é o das interpretações dos textos da Codificação. Mas o que é interpretar?

A rigor, podemos definir dois sentidos para o ato de interpretar um texto: a) a interpretação como desvelamento do seu sentido original; e, b) a interpretação como construção de significados pessoais.

O primeiro consiste na ideia de que interpretar é buscar o sentido atribuído ao texto pelo próprio autor. Desta forma, a boa interpretação seria aquela que busca descobrir o que o autor (ou autores, no caso dos Espíritos) queria dizer quando escreveu sobre determinado assunto. É o esforço em buscar o seu sentido original.

No segundo caso, busca-se admitir que quem dá o significado para o texto é quem o lê, e não quem o escreveu. Nesse caso, toda interpretação termina sendo um processo essencialmente subjetivo, muito vinculado ao que os gregos chamavam de “doxologia”, ou seja, a livre opinião. E toda interpretação, em tese, poderia ser aceita.

Entretanto, ao estudarmos os livros da Doutrina Espírita, será que toda e qualquer interpretação será válida? Allan Kardec, em “O Livro dos Médiuns”, quando trata dos Sistemas, analisando os fenômenos mediúnicos que originaram o Espiritismo, assim se pronunciou: “Quando foram averiguados por testemunhos irrecusáveis e através de experiências que todos puderam fazer, aconteceu que cada qual os interpretou a seu modo, de acordo com suas ideias pessoais, suas crenças e seus preconceitos. Daí, o aparecimento dos numerosos sistemas que uma observação mais atenta deveria reduzir ao seu justo valor” (Cap. 4, item 36).

Quando cada um interpreta do seu modo, como observou Kardec, abrem-se brechas para as ideias pessoais prevalecerem sobre o conteúdo original das obras. Isso representa sempre uma temeridade, pois abre espaço para que os interesses individuais se destaquem. Surgem então erros de interpretação, ideias que agregam ao Espiritismo elementos de outras doutrinas espiritualistas, descaracterizando o seu ensino e sua prática.

Já em sua época, Kardec se preocupava com o que seria publicado em temos de Espiritismo. Mais ainda, quando se tratava de livros mediúnicos. Os critérios utilizados por ele, para analisar esses textos, eram bastante rígidos. Não é demais lembrarmos que aceitar tudo o que venha dos espíritos, ou de qualquer outra fonte, sem o devido exame e cautela, é enveredar por um caminho perigoso e cheio de armadilhas. Analisando as chamadas comunicações apócrifas, o Codificador assim se expressou: “De fato, a facilidade com que algumas pessoas aceitam tudo o que vem do mundo invisível, sob o pálio de um grande nome, é que anima os Espíritos embusteiros. A lhes frustrar os embustes é que todos devem consagrar a máxima atenção; mas, a tanto ninguém pode chegar, senão com a ajuda da experiência adquirida por meio de um estudo sério. Daí o repetirmos incessantemente: Estudai, antes de praticardes, porquanto é esse o único meio de não adquirirdes experiência à vossa própria custa” (Allan Kardec. “O Livro dos Médiuns”. Cap. 31, Comunicações apócrifas, XXXIII).

Kardec enfatiza o estudo como forma de discernimento do que o Espiritismo aceita e daquilo que ele se distancia. Assim, o conhecimento das Obras Fundamentais, nunca será demais salientar, representa base segura para o entendimento da Doutrina. Todavia, mesmo assim é necessário ter cautela com as interpretações, muitas vezes apressadas, que se faz também sobre elas.

Flagrante a imperiosa necessidade de administrarmos conflitos e divergências com moderação e fraternidade. Na defesa de determinada tese, deverá se destacar a dialética das ideias, dos argumentos e dos fundamentos. Muitos conflitos se prolongam em torno de assuntos vazios e estéreis, simplesmente, para destacar o ego dos debatedores.

Allan Kardec teve a grandeza intelectual de jamais “fechar” o pensamento espírita em torno de uma “verdade única” e dogmática. O caráter intrínseco do discurso filosófico é a liberdade de pensamento, aberto à reflexão e ao progresso das ideias. Todavia, o Espiritismo não traduz uma simples reflexão intelectual para criar sentidos ou significados, ao contrário, é um saber que se justifica com base nos fatos. Ao analisar o conjunto de sua obra, veremos que Kardec não partiu da “crença”, mas da sólida pesquisa científica, no campo da mediunidade, para, num segundo momento, enveredar pelos caminhos da interpretação dos fatos, com base no crivo da razão.

Um estudo atento de “O livro dos Espíritos” evidencia a busca constante de Kardec, por explicações plausíveis, que possam atender à coerência e ao bom senso. Ele interroga os espíritos com firmeza, cercado de boa argumentação, mas – ao mesmo tempo – buscando libertar-se de preconceitos e atavismos culturais de sua época.

Há, naturalmente, uma “busca incessante” de conhecimentos e reflexões, iniciadas em “O livro dos Espíritos” e que, evidentemente, não para com ele, nem mesmo o esgota em todo o seu potencial doutrinário. Isso oferece, ao conjunto das Obras Fundamentais, um dinamismo inesgotável, uma vez que a experiência da evolução espiritual vai oportunizando ao ser humano uma ampliação de seus horizontes intelectuais.

Interpretar não significa modificar os fundamentos da Doutrina Espírita. Na verdade, a interpretação é um esforço da inteligência por “encontrar um sentido escondido”, que não está, necessariamente, claro. Ora, em nossa condição de espíritos em evolução, não podemos depreender que já esteja tudo resolvido, em termos de entendimento sobre a vida e seus mecanismos. Logo, a capacidade de interpretação é inerente ao ser humano. Deveremos usá-la de forma responsável, coerente e compromissada, em primeiro lugar, com a própria Doutrina.

Essa relação dialética se processa também, no diálogo crítico do leitor com a obra. Mas é preciso que esse diálogo se distancie das leituras simplistas, onde, muitas vezes, se busca afirmar o conteúdo doutrinário através de posturas acríticas, influenciadas pela teologia tradicional. Através de sua metodologia, Kardec nos ensinou a dialogar com a fonte das informações sem, no entanto, perder o viés dos sentimentos. A racionalidade empregada aos estudos deve servir para que os seus conteúdos nos levem a um encantamento pela vida.

O dever dos verdadeiros espíritas, dos que compreendem o fim providencial da Doutrina é, antes de tudo, fazer prevalecer pelo exemplo o sentimento de fraternidade que é uma das bases de seus ensinamentos. Nas discussões doutrinárias quando se perde esse norte, não é de se admirar predominarem as paixões e o orgulho. Surgem práticas, daí decorrentes, que se distanciam dos postulados kardecianos, provocando inúmeros dilemas no Movimento Espírita.

O próprio Kardec advertiu o Movimento Espírita sobre as questões de “fundo” e as questões de “forma”: “As questões de fundo devem passar à frente das questões de forma. Ora, as questões de fundo são as que têm por objetivo tornar melhores os homens, considerando-se que todo progresso social ou outro não pode ser senão consequência do melhoramento das massas; é para isso que tende o Espiritismo e por aí prepara os caminhos a todos os gêneros de progressos morais. Querer agir de outra forma é começar o edifício pela cumeeira, ante de lhe assentar os alicerces; é semear em terreno que não foi arroteado” (Allan Kardec. “Revista Espírita”, Março de 1863. Sobre a decisão tomada pela Sociedade Espírita de Paris a respeito da questão religiosa).

Por isso, no mesmo texto da “Revista Espírita”, de março de 1863, desaprovava toda e qualquer publicação própria a falsear a opinião sobre o fim e as tendências do Espiritismo. Os conhecimentos bem alicerçados são aqueles que se mantêm ao longo do tempo. As questões de forma passam, as de fundo permanecem. É relevante não se abandonar a simplicidade e a profundidade do horizonte doutrinário, consubstanciado nas Obras Fundamentais.

Diante dos conflitos doutrinários, no entanto, jamais abdicar de uma postura de respeito com aqueles que pensam diferentemente. Torna-se imperativo que essas divergências se mantenham no plano das ideias, jamais transitando para o campo pessoal. O espaço dos argumentos é um espaço privilegiado para o embate do pensamento, podendo se tornar rico no aprofundamento das ideias.

Quando os argumentos já não mais se ajustarem, quando nenhum acordo sob os aspectos divergentes for passível de manutenção, o diálogo e o bom senso não mais vigorar, então é comum que ocorra um afastamento, posto que cada um possui liberdade de agir e pensar. Aqueles que seguirem por outra direção, afastando-se do contexto doutrinário do Espiritismo, quer assumidamente ou não, devem ser respeitados em suas deliberações pessoais.

Muitos desejam, ingênua ou orgulhosamente, reformular o Espiritismo, esquecendo-se que sua fonte não é uma concepção pessoal, nem o resultado de um sistema preconcebido. É, como disse Kardec, resultante de milhares de observações feitas sobre todos os pontos do planeta e que convergiram para um centro que os coligiu e coordenou. Todos os seus princípios constitutivos, sem exceção, são deduzidos da experimentação, que precedeu à formulação da teoria.

O estudo das obras de Kardec, contudo, representa a construção do alicerce fundamental para o efetivo conhecimento espírita. A maior parte dos conflitos doutrinários deve-se ao frágil conhecimento sobre esses textos. Logo, os melhores resultados como aludiu Kardec, em sua “Viagem Espírita de 1862”, poderão ser atingidos com os investimentos nos grupos de estudos.

Finalizamos com Kardec: “Há algum tempo constituíram-se alguns grupos, de especial caráter, e cuja multiplicação entusiasticamente desejamos encorajar. São os denominados grupos de ensino. Neles ocupam-se pouco ou nada das manifestações. Toda a atenção se volta para a leitura e explicação de ‘O livro dos Espíritos’, ‘O livro dos Médiuns’, e de artigos da ‘Revista Espírita’. (…) Aplaudimos de todo o coração essa iniciativa que, esperamos, terá imitadores e não poderá, em se desenvolvendo, deixar de produzir os melhores resultados” (Allan Kardec – “Viagem Espírita de 1862”).

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

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