Chacinas: o que o Espiritismo nos informa?, por Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

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Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

Na contemporaneidade, mesmo com os avanços da sociedade nos campos morais, educacionais e sócio-políticos, perguntamo-nos por que a humanidade se encontra tão embrutecida e desumanizada, num panorama que, dados os progressos materiais, já deveríamos ter superado.

Todos os dias, somos inundados por notícias veiculadas em distintas mídias, retratando a crueldade de muitos encarnados, nas mais distintas situações e enredos.

Atualmente, de uma forma “qualificada”, a Humanidade está vivenciando guerras, chacinas e genocídios. Mas tais não são “privilégio” dos nossos tempos, já que compõem uma trágica espiral que se renova de tempos em tempos, considerando que os atores sociais são (quase sempre) os mesmos. Idas e vindas, neste orbe de provas e expiações, com a repetição de condutas, ainda que as roupagens e cenários possam ser diferentes, em cada encarnação. Vale dizer, também, que, embora na condição de desencarnado o indivíduo tenha ciência daquilo que fez ou foi, e se comprometa, antes de reencarnar, a ser melhor do que antes, nem todos o conseguem. Muitos ainda prosseguem na visão estreita da materialidade, envoltos em suas próprias vicissitudes e limitações, patinando nas oportunidades e repetindo as vinculações a vícios e mazelas morais.

Outro elemento, ainda, prepondera, nestes dias de confusão e perplexidade: o inquietante e abrasador panorama composto pelos que patrocinam ou fazem apologia à barbárie. ideologicamente equivocados, espiritualmente empobrecidos e socialmente brutalizados, são os que se satisfazem ao ver determinadas ocorrências violentas, sobretudo as que, delas, resultam vítimas fatais. Bordões como “bandido bom é bandido morto” são repetidos à exaustão, com a celebração (íntima ou efusiva, inclusive em coletivos), apoiando eventos que pertencem ao espectro da criminalidade, em suas mais variadas formas.

Muitos deles, ainda, são os que patrocinam constantes embates, sobretudo nas redes sociais – onde (quase) todos se protegem ou pelo anonimato (perfis fakes ou sem identificação) ou se escudam na condição de distanciamento físico, para verbalizar um sem-número de impropérios, julgamentos e afirmações eivadas da larga estirpe de preconceitos, quando não promovem o linchamento moral e o cancelamento daqueles que se posicionam contrários às suas (precárias e virulentas) ideias.

Há muitos, infelizmente, que saem em defesa da “limpeza social”, por meio de homicídios, patrocinados seja pelos aparatos policiais, seja por milícias ou grupos de extermínio, assim como aplaudem os conflitos e batalhas entre gangues e facções criminosas. No cerne de todo esse sentimento inferior, está a ideia de que, espiritualmente, há uma “depuração planetária”, concebendo um “projeto” ilusório, irreal e impossível de que a “Espiritualidade Superior” esteja utilizando uns e outros como instrumentos, para, dizem eles, “acelerar a transição planetária”.

Causa espanto ver a manipulação do discurso, com aparência de espírita, para fundamentar as ocorrências que, sem dúvida, ainda fazem parte do cotidiano das almas inferiores, diante do complexo cenário de causas e efeitos, mas que jamais podem ser enquadradas como “atos previstos” ou “programações expiatórias” de homens e coletividades. Vale dizer, também, que alguns expoentes “consagrados” da “militância” espírita ainda contribuem negativamente para tal quadro, na expressão de expositores, médiuns ou dirigentes, que criam situações ou as repercutem, na forma de “historinhas”, como se determinadas pessoas envolvidas em circunstâncias de mortes coletivas, estivessem, todas, “comprometidas” com a forma de desencarne violento, em um desses deploráveis e lamentáveis eventos.

Sim, porque eles já estiveram nesta condição de “arautos da ilusão”, ao “justificarem” com letras tortas e tintas borradas, ocorrências como incêndios, tsunamis, quedas de aeronaves ou naufrágios, estabelecendo uma inexistente e fictícia relação de causalidade entre o evento atual e situações pregressas e fazendo uma perigosa inversão de culpa ou dolo e responsabilidade, como se a vítima do passado viesse cobrar contas de seus agressores e que estes agressores do passado passem a ser vítimas, num “toma lá dá cá” e numa relação de vindita que jamais pertence ao contexto da Filosofia Espírita. Esta, do contrário, prescreve, na delimitação das expiações e provas, a incidência da magnânima Lei Divina, que aponta para critérios de caridade, benevolência e fraternidade, e não permite, sob nenhuma circunstância, que o mal seja saldado pelo mal.

Vale salientar – ainda e infelizmente – que estes discursos fazem coro com grande parte das manifestações do atual mandatário de nosso país, que incita e justifica a violência e que pratica toda a sorte de preconceitos, seja por manifestações oficiais seja por afirmações jocosas, em entrevistas e pelas mídias sociais, praticando uma leva de atitudes que são totalmente distantes da ética espírita. E que, neste escopo, são aplaudidas por lideranças espíritas e se refletem em boa parte dos adeptos do Espiritismo, quando consultados em pesquisas de opinião pública, como apoiadores do governo e de seu representante – agora, também, candidato à reeleição. O discurso de violência, não esqueçamos, é o substrato de validade para as ações violentas, de qualquer matiz e extensão, em nossa sociedade.

No cerne das situações humano-sociais que servem de inspiração para este ensaio, como as chacinas, as guerras e os genocídios, não é jamais recomendável a simplificação da análise, para propor uma explicação “dita espírita” para as distintas situações do dia a dia, como o acima citado critério de vinculação e dependência. Longe disso, a generalidade dos atos humanos – e, também, das omissões, que são não-atos, e que envolvem, igualmente, um grau (maior ou menor) de responsabilidade – decorre de uma multiplicidade das causas, todas complexas e interligadas na sociedade, assim, o mal habita no coração humano?

Neste contexto, a Espiritualidade expõe para nossa reflexão, quando Kardec pergunta acerca de um vil sentimento ainda presente na natureza humana do planeta de expiações e provas, o de crueldade, ligando-o ao instinto de destruição:

“É o próprio instinto de destruição no que ele tem de pior, porque, se a destruição é às vezes necessária, a crueldade jamais o é. Ela é sempre a consequência de uma natureza má” (item 752, de “O livro dos Espíritos”).

E, adiante, Kardec ainda insiste no critério de inferioridade da raça humana, novamente questionando acerca da presença da crueldade entre os povos mais avançados, o que lhes assemelharia a selvagens, no que recebe, das Inteligências Superiores, uma advertência pontual:

“Da mesma maneira que numa árvore carregada de bons frutos existem os temporãos. Elas são, se quiseres, selvagens que só têm da civilização a aparência, lobos extraviados em meio de cordeiros. Os Espíritos de uma ordem inferior, muito atrasados, podem encarnar-se entre homens adiantados com a esperança de também se adiantarem; mas, se a prova for muito pesada, a natureza primitiva reage” (tópico 755, de “O livro dos Espíritos”).

Eis aí a correta explicação para as ocorrências que vislumbramos todos os dias, sobretudo as que estão enquadradas na temática desenvolvida neste artigo. A impossibilidade espiritual, individual e, depois, também, coletiva, considerando que muitos crimes têm vários autores cúmplices, de lidar com as próprias provas, faz com que muitos Espíritos (encarnados) sucumbam e voltem a delinquir, material e espiritualmente.

A predominância do instinto e dos sentimentos inferiores, aliás, é sempre a justificativa para o conjunto de ações humanas que são portadoras de violência. Antes, na mesma obra, ao tratar especificamente da guerra, quando o Professor francês pontuou acerca da causa impelidora das guerras, os Luminares Espirituais salientaram a “Predominância da natureza animal sobre a espiritual e a satisfação das paixões. No estado de barbárie, os povos só conhecem o direito do mais forte” (item 742 de “O livro dos Espíritos”).

Eivado pela ignorância e a intolerância, o indivíduo relega, pois, os pilares da justiça social, a fraternidade, a liberdade e a equidade, assim como o progresso social e a evolução ético-moral, evocando os ecos do seu passado bárbaro, agora em atos e brados autoritários, perdendo-se na força, na violência, na desigualdade e na iniquidade.

Em “A Gênese”, Capítulo III, Item 7, “O bem e o mal, origem do bem e do mal”, o preclaro pensamento Kardeciano brinda-nos com o seguinte preceito:
“Pode-se dizer que o mal é a ausência do bem, como o frio é a abstinência do quente. O mal não é mais um atributo distinto assim como o frio não é um fluido especial; um vem a ser a negação do outro. No lugar em que o bem não existe, haverá forçosamente o mal; não fazer o mal já é o começo do bem. Deus só quer o bem. Do homem, somente, é que provém o mal. Se houvesse na Criação um ser preposto ao mal, o homem não o poderia evitar; contudo, sendo o homem a causa do mal em si próprio e possuindo, ao mesmo tempo, seu livre arbítrio e por guia as leis divinas, ele o evitará quando bem entender”.

Patente, assim, a não-vinculação divina (e de qualquer processo de preparação para uma nova encarnação, conceituada por muitos como “planejamento encarnatório”) com a previsão do mal como obrigação ou compromisso existencial. Ainda assim, devemos atentar para o fato da convivência dual entre estes dois elementos, bem e mal, no móvel das ações humanas, derivado, evidentemente, da inferioridade espiritual que ainda experienciamos. As duas faces de uma mesma moeda, as ambiguidades, os contrários, ainda presentes, portanto, em nossa natureza.

Para além do aspecto psicanalítico das causas há de ter-se o enfoque filosófico e espiritual que encontramos no Espiritismo – desde que, é claro, não se tratem de explicações da conveniência, do “espiritismo à moda da casa” (com “e” minúsculo), da importação de teorias esdrúxulas e extravagantes para se conformarem à teoria espírita e, mais frequentemente, o desejo de conformar teses pessoais com argumentos (tidos como) espíritas. A pedagogia espírita é, ao mesmo tempo, progressiva e progressista, no sentido de que ela permite apontar caminhos para a compreensão, a prevenção e a possível (e futura) extinção dessas mazelas no seio da sociedade.

Em incontáveis encarnações, é evidente termos passado pelo obscurantismo que, ainda hoje, está presente (e refulgente) na Humanidade. Ele é patente na série de transgressões à Lei Natural, cometidos por povos e civilizações, bastando que apreciemos a história humana para reconhecer o espelhamento. Em muitos casos, contidos sob o fino verniz da cultura e da civilização, vez por outra afloram os ímpetos destrutivos de todos os tempos.

O antídoto nos é apresentado, também por Kardec em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, Cap. XXVII, Item 12 (“Pedi e obtereis, Ação da prece, transmissão do pensamento”), por meio da já mencionada caridade (real, e não projecional ou hipotética, calcada tão-somente no assistencialismo proselitista), para superar a maledicência, a inveja, o ciúme, o orgulho e o egoísmo, evitando-se querelas, conflitos e dissensões, assim como as vinganças. Ele exemplifica:

“Se limitássemos as nossas ambições, não temeríamos a ruína. Se não quiséssemos subir mais alto do que podemos, não recearíamos a queda. Se fossemos humildes, não sofreríamos as decepções do orgulho abatido”.

Entendamos, portanto, que as raízes da violência generalizada em nossa sociedade são múltiplas, mas todas elas se acham sedimentadas no ódio e na irracional busca da autodefesa, na posse que reside no ciúme, na intolerância e no preconceito que são frutos do orgulho e das generalizações, no egoísmo que gera a sede pelo poder, pelo domínio e pela opressão. Usando a psicologia espírita, é fácil entender que as atitudes são a externalização dos sentimentos, dos pensamentos e das tendências, que se albergam na consciência de cada Espírito.

Assim, como bem salientou Kardec (na “Revue Spirite”, de dezembro de 1868 – “Sessão anual comemorativa dos mortos”), para tudo isto só há uma solução possível:

“Amar ao próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar aos seus inimigos e retribuir o mal com o bem; é ser indulgente para com as imperfeições de seus semelhantes e não procurar o cisco no olho do vizinho, quando não vemos a trave que temos no nosso; é cobrir ou desculpar as faltas dos outros, em vez de nos comprazermos em pô-las em relevo por espírito de maledicência; é, ainda, não nos fazermos valorizar à custa dos outros; não procurarmos esmagar a pessoa sob o peso de nossa superioridade; não desprezarmos ninguém por orgulho”.

Enquanto, ainda, não conseguimos amar incondicionalmente os nossos semelhantes, agindo da mesma forma para com todos e repetindo, nas atitudes, aquilo que o Mestre de Nazaré recomendou e explicitou na prática, como “fazer aos outros o que quereríeis que vos fizessem”, é preciso vencer, uma a uma, as etapas na direção da espiritualização plena de cada um de nós, sequencialmente: 1) eliminar, se possível, qualquer rancor ou ódio no pensamento dirigido a quem quer que seja, próximo ou distante, convivial ou presente nas mídias; 2) abdicar do discurso, verbal ou escrito, que concite à violência, sob qualquer de suas formas, exercitando, em alto grau e escala, os valores da benevolência para com todos, a indulgência para com as imperfeições dos outros e o perdão das ofensas, conforme explicitado no item 886, de “O livro dos Espíritos” (o conceito de caridade segundo Jesus e conforme o Espiritismo); e, por último, 3) evitar a prática da violência física, para com quem quer que seja, sobretudo quando direcionada aos mais fracos e necessitados, física, moral ou espiritualmente, evitando a repetição dos atos infelizes presentes ainda na constância das condutas humanas.

Não há, por fim, qualquer justificativa possível para a violência. E, diante das chacinas, que representam o uso da força (armamentista, de grupos organizados, criminais, paramilitares ou policiais) para dizimar os semelhantes, sejam eles criminosos ou inocentes, a única palavra espírita possível deve ser: – Basta!

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