Sidnei Batista
NOTA INTRODUTÓRIA DO ECK
Concebido em três partes, este estudo visa levantar questões acerca de pontos considerados questionáveis pelo autor, em relação à primeira obra de Kardec, “O livro dos Espíritos”. A intenção é apresentar refutações de cunho doutrinário direcionados a Espíritos fortes, livres-pensadores, emancipados de preconceitos, cuja morada intelectual é construída na rocha firme da razão científica.
Acompanhe, uma a uma, as partes. Reflita sobre os apontamentos nelas contidos. Sugerimos discuta os mesmos em seu grupo de estudos espíritas, permitindo o arejamento que só o contraditório propicia.
Espiritismo COM Kardec
TERCEIRA PARTE
A obra “O Céu e o Inferno” e os conceitos de Emmanuel
Note-se, também, a incongruência no livro “O Céu e o Inferno”, capítulo 7, no segundo parágrafo do item 20: “Perante esta lei cai igualmente a objeção referente à presciência. Deus, ao criar uma alma sabe realmente se em virtude do seu livre-arbítrio ela tomará o bom ou o mau caminho; sabe que ela será punida se praticar o mal” Ora, ora, se Deus possui tal presciência, mas não move “um dedo” para corrigir sua própria contradição, por haver deliberadamente decidido ou por um cochilo Seu, criaria almas perfeitas com selo de qualidade e almas com defeito de fabricação. Então, esse “deus” é monstruoso, pior que o sanguinário Moloque da Antiguidade. Deus não seria tão perfeito como seria de desejar, dado que não possuindo o atributo de perfeição suprema, perderia também os demais atributos, inclusive o de inteligência máxima do Universo, pois não seria, por isso, tão inteligente assim.
Essa teoria é referendada pelo Espírito Emmanuel (no livro “O Consolador”, item 243), quando ele confirma a tese cristã de que Jesus seria o “Filho favorito de Deus”. No item em comento, há um questionamento que trata da eventual condição de prioridades e privilégios de uns sobre os demais Espíritos: “Todos os Espíritos que passaram pela Terra tiveram as mesmas características evolutivas, no que se refere ao problema da dor?”. Emmanuel responde: “Todas as entidades espirituais encarnadas no orbe terrestre são Espíritos que se resgatam nas experiências humanas, após as quedas do passado, com exceção de Jesus Cristo, fundamento de toda a verdade neste mundo, cuja evolução se verificou em “linha reta” para Deus, em cujas mãos angélicas repousa o governo espiritual do planeta, desde os seus primórdios”.
Caso Emmanuel estivesse se referindo ao Jesus homem, isto é, aquele reencarnado há dois mil anos, até aí tudo bem, ele já estava num relativo grau de perfeição que daria a falsa impressão de que evoluíra direto para Deus. Mas não é isso que o texto diz. Emmanuel afirma convictamente que Jesus percorreu sua evolução desde sua individualização até o estado em que ele se encontrava na Galileia, sem a menor mácula, sem haver transgredido um mínimo da lei divina. Então, seria o caso de perguntar a Emmanuel em qual fonte ele obteve essa informação? Também, o que ele quis dizer com “evolução em linha reta para Deus”, uma vez que todas as criaturas evoluem direto para Deus, ninguém desvia sua rota. Jesus não é exceção.
Tendo sido, então, Jesus, criado da mesma forma que os demais e, caso fosse exceção, Deus teria conferido privilégios apenas a ele, para que ele jamais cometesse o mais insignificante erro. Seria possível que, em todas as incontáveis encarnações que ele viveu, desde sua origem, em inumeráveis mundos – muitos provavelmente já extintos –, suas maneiras de ser e atitudes sempre foram as politicamente corretas?
A opinião de Emmanuel sobre Jesus é, deste modo, produto do seu horizonte cognitivo limitado, impregnado de arquétipos judaico-cristãos que o deificam, conferindo-lhe o título de Divino. Jesus, em sendo divino, por que razão os demais seres da Criação não seriam também? Claro que são divinos, o protozoário, a pulga, o elefante e o homem, exatamente por todos serem animados por um Princípio Inteligente e, depois, por um Espírito. Não importa o grau de desenvolvimento, os seres espirituais, do átomo (iniciante nos reinos rudimentares da Natureza) aos arcanjos; dos arcanjos aos arquigigantescos arcanjos dos mais diversos graus de desenvolvimento: cada ser traz em si o atributo da divindade.
Ademais, quando se alega que Deus lhe confiou o governo espiritual do planeta Terra fica aí evidente a prática do nepotismo corporativista de Deus. Deus é nepotista, dá preferência a um único filho sobre os demais, relegando-os ao segundo, terceiro ou quarto planos. Se, em incontáveis reencarnações em inúmeros mundos, Jesus jamais cometeu um mínimo erro, então ele não possuiria o conjunto de experiências para errar ou acertar em suas decisões. Não tendo experiências de vida ele simplesmente vegetou, como um zumbi.
Somente quem erra aprende a viver, para saber administrar cargos e ministrar ensinamentos, porque o aprendizado se dá à custa de quedas e sacrifícios. A doutrina cristã da queda dos anjos consagra uma meritocracia às avessas concedida a Jesus. Talvez este deva ter sido o motivo mitológico de Lúcifer se rebelar contra Deus, culminando na fragorosa batalha no Céu. Lúcifer, porém, neste caso e contexto, estaria com plenas razões para se insurgir contra Deus. No lugar dele, eu certamente faria o mesmo e me rebelaria, mesmo correndo o risco de ser despejado no Inferno. Com esse tipo de Deus é razoável concordar com Friedrich Nietzsche: “elejamos um louco para, em praça pública, proclamar a morte de Deus” (“Assim Falou Zaratustra”).
Kardec progride e corrige alguns conceitos
Apesar de conter grandes verdades que atendem à razão sem sofismas, cada resposta dada às perguntas de Kardec em “O livro dos Espíritos” é produto da capacidade cognitiva dos Espíritos, naquele momento, e essa capacidade é sempre limitada, relativa ao grau de sua elevação. Kardec também não está fora dessa limitação. A prova inconteste disso é o livro “A Gênese”, editado em 1868, no qual ele revela maior maturidade intelectual científico-filosófica do que em 1857, quando da publicação da obra primeira, o que indica que ele progrediu bastante nesse espaço de tempo.
No entanto, há evidências de que Kardec e os Espíritos se deram conta do equívoco que cometeram nas questões “124” a “127”, de haver Espíritos voltados desde o princípio para o mal ou para o bem absolutos. Especialmente nesta última, sete anos mais tarde vieram os Espíritos corrigir o equívoco. Na “Revue Spirite”, de janeiro de 1864, resgatam os conceitos com maior coerência no artigo “Progresso nas primeiras encarnações”. Aí sim, Kardec faz uma correção ainda que não totalmente satisfatória, porém, mais concorde com os fundamentos do Espiritismo.
Todos os graus
Depois, no item “129”, está consignado que os Espíritos “Percorreram todos os graus. Mas, como já dissemos: uns aceitaram a sua missão sem lamentar e chegaram mais depressa; outros empregaram maior ou menor tempo para chegar à perfeição”.
Temos aqui mais um equívoco que contradiz a lei de simulcadência homocinética. Ora, se todas as Ciências e a própria Matemática são infinitas, porque razão alguns anjos percorreram todos os graus se eles jamais chegarão ao topo da evolução? Tal afirmação deve ser questionada pelo bom senso, porque rompe os princípios epistemológicos de infinitude e de eternidade da Criação. A resposta dos Espíritos, assim, já vem imbuída de um caráter tendencioso, segregacionista, porque indica que alguns Espíritos percorreram todos os graus de progresso, submissos e conformados com as agressões das pessoas e com os desígnios de Deus, como meras marionetes. Em razão de jamais levantarem a voz para reclamar progrediram mais rapidamente, enquanto outros claudicaram nas lamentações e rebeldias, atrasando sua evolução. Todos os graus, indica, portanto, uma graduação seriada contida entre duas fronteiras, dando a entender que o infinito é finito. Deixa claro que, por mais extraordinária e fantasticamente numerosos, num certo ponto os graus de perfeição cessarão definitivamente. Ao afirmar que os “anjos” percorreram todos os graus, significa que estes chegaram ao fim da linha, o que não é verdade visto que a perfeição espiritual jamais terá fim. Conclusão: esta questão também não tem fundamento legal, é mito.
Quase ou Realmente Infinito?
Veja-se no item “169”, a expressão: “(…) não obstante, as encarnações sucessivas são sempre numerosas porque o progresso é quase infinito”.
Afirmar ser o progresso “quase infinito” é o mesmo que dizer finito, por mais extenso que se mostre. Esse raciocínio pode ser apropriado aos indivíduos, cujas noções de eternidade estão presas às algemas da religião. Ignorantes da preexistência e da evolução espiritual eterna, admitem, da parte de Deus, tratamentos diferenciados às suas criaturas, como prega a doutrina da graça e da predestinação, de cunho judaico-cristão. Para a Ciência não é assim. Por ser exata, a Ciência jamais endossa esse princípio. Para ela, não existe meio termo: ou tudo evolui sem cessar ou não mais se evolui após atingir certo grau. Se porventura estiver dizendo ser o período das reencarnações quase infinito, depois do qual não mais precisaremos reencarnar, nesse caso é correto, porque o “tempo” decorrido nesse processo, transmigrando de mundos inferiores para mundos superiores, é realmente muito longo, parecendo ser infinito.
O dogma da reencarnação
Expressamente no item “171”, Kardec se vale, na pergunta, da expressão “Dogma da reencarnação”.
Muitos estudiosos espíritas laicos argumentam que, se o Espiritismo não possui dogmas, por que razão Kardec classificaria a reencarnação como dogma? É preciso destacar que Kardec não estaria se referindo a dogmas no sentido doutrinário, de religiões clericalmente organizadas, as quais estabelecem pontos fundamentais de crenças, cada qual acreditando ter a posse da verdade absoluta e obrigando os crentes a aceitá-los sem contestações.
O sentido de dogma empregado por Kardec assenta-se em um princípio filosófico, assumindo significado diferente, justamente para conhecer e admitir as coisas projetando os rumos e objetivos com que podemos nos conduzir na vida. Nesse aspecto, Kardec busca a filosofia racionalista de René Descartes e a de Immanuel Kant, fazendo o dogmatismo assumir uma conotação mais específica, na posse da certeza como sendo a razão a via única para se chegar ao conhecimento. O vocábulo “dogma”, então, como empregado por Kardec no item em comento, contém um significado gestáltico-filosófico, ultrapassando os limites cognoscível da realidade objetiva, uma vez que a reencarnação vem sendo sucessiva e exaustivamente investigada, para, em futuro não muito distante, ser um fato cientificamente comprovado, deixando de ser uma mera suposição utópica.
A marcha pode ser mais rápida?
Na questão “290”, consta, em relação à marcha progressiva dos Espíritos: “(…) Se um deles está mais adiantado e marcha mais rápido que o outro não poderão ficar juntos, poderão ver-se algumas vezes, mas não estarão sempre reunidos, a não ser quando possam marchar ombro a ombro, ou quando tiverem atingido a igualdade na perfeição”.
Aí vemos outra contradição com o contido na Escala Espírita (itens “96” a “112”). Em especial, vide o contido na questão “97” – que é complementada com a “274” – que ensina que os graus, as ordens e as hierarquias dos Espíritos são ilimitados. Ora, ilimitado é sinônimo de infinito, sem fim, eterno. Como poderão eles marchar juntos e se nivelarem em igualdade de perfeição, se o que está acima avança incontinenti, e o que está abaixo dele avança simultaneamente na mesma cadência? Portanto, se houver uma diferença mínima de tempo existencial entre um e outro, eles seguirão eternamente aproximados, embora jamais se nivelem na linha de perfeição. Logo, soa incoerente com a lei da evolução contínua, incessante e interminável, que dado Espírito diminua o ritmo de sua evolução só para “esperar” o outro que vem à retaguarda – exatamente por haver, este, começado a corrida posterior ao primeiro – para que chegue até onde o outro se encontra, a fim de ficarem juntos e se alinharem em igualdade na perfeição.
Isto também se opõe ao que está consignado na questão “804”: “o que tem mais aptidões é porque vive (nasceu primeiro) há mais tempo”. Assim, tais Espíritos jamais se nivelarão, porque de outra forma o progresso teria forçosamente um termo inexorável, onde tudo cessaria. Também colide com a questão “888ª”, onde consta: “Não olvideis jamais que o Espírito, qualquer que seja o seu grau de adiantamento, [pode ser grau um, dez, mil, levados aos trilhões etc.] sua situação como reencarnado ou na erraticidade, está sempre colocado entre um superior que o guia e aperfeiçoa e um inferior perante o qual tem deveres iguais a cumprir.
Como dissemos, as leis da Alma e, conseguintemente, a lei do progresso, são explicadas pela Física (questões “617” e “618”) e abrangem as questões da matéria e as morais, pois ambas são instrumentos unívocos da evolução espiritual. Ninguém marcha mais rápido que o outro, uma vez que, em virtude da Lei da Física, os movimentos evolutivos se dão pari-passu no Movimento Retilíneo Uniforme (MRU), havendo entre eles uma sincronia dinâmica de simulcadência homocinética, proporcionalmente equivalentes. Um Espírito, ao subir um milésimo de grau de um estágio inferior para outro superior, o outro Espírito que se encontra um milésimo abaixo dele também sobe um milésimo para cima. O raciocínio é idêntico para quem observa duas pessoas de diferentes idades. Enquanto a primeira fica um minuto mais velha a segunda também fica um minuto mais velha. Ambas jamais terão a mesma idade, uma vez que o tempo que transcorre para uma, transcorre para a outra na mesma igualdade de duração. Foi o que Jesus explicou: “o discípulo jamais será maior que o mestre”, pois que se o mestre avança, o discípulo também avança.
Os que avançam
No item “303”, encontramos: “(…) ao se aperfeiçoar, chegará à esfera em que se encontra o outro”. (…) Se o espírito mais elevado, “suportando mal as provas a que se submetera, tiver permanecido no mesmo estado”.
Ora, se ele está acima do outro é porque seguramente é mais desenvolvido por exatamente ser mais velho. Assim, já terá mais experiências, vivido mais vicissitudes, enfrentado maiores desafios, portanto, desenvolveu inteligência e moral numa amplitude que o outro ainda não alcançou, não obstante estar vivendo experiências equivalentes, porém nos seus respectivos graus inferiores. Então, ambos se aperfeiçoando natural e espontaneamente, avançam simulcadenciados grau a grau, como é que o inferior chegará ao nível em que o superior se encontra, a menos que o superior interrompa momentaneamente sua ascensão, o que é incoerente com a própria dinâmica do Universo e da Vida. É exatamente esse tipo de resposta que oferece ao movimento espírita elementos equivocados da crença de que alguns Espíritos estacionam o próprio progresso, crença absurda que viola todos os princípios racionais e lógicos da Doutrina.
Se, na legislação humana, não há dispositivos legais para criar privilégios de exceções entre os homens, por que razão entre os Espíritos haveria exceção na Lei Divina Natural?
Pois bem, admitamos que excepcionalmente haja brechas na Lei Divina. Se houver brechas, a Lei é falha e se é falha não é perfeita. Carente de estabilidades pode ser alterada, mesmo que por uma fração infinitesimal de “um til”. E, se pode ser alterada, deixa de ser imutável; deixando de ser imutável, atinge o próprio Deus que se verá destituído de seus atributos de Perfeição Suprema. Nesse caso, Ele já não é o Absoluto do Absoluto, está sujeito a mudanças e transformações, porque transgride a si mesmo. Enfim, deixa de ser Deus, portanto, nada mais natural que o “Louco” de Nietzsche proclame “sua morte”, veredicto que o “Tribunal do Bom Senso” aprovará sem restrições.
Seguimos, pois, estudando e progredindo…
Imagem de Jonas KIM por Pixabay
Partes publicadas:
Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 1), por Sidnei Batista
Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 2), por Sidnei Batista
Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (Parte 3), por Sidnei Batista