A Grande Dama ao lado de um Grande Homem, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 7 minutos

Por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Contrariando o dito “popular, machista e misógino,

propomos com foco em Amélie-Gabrielle Boudet a sua descrição mais sensata:

“ao lado de um grande homem, há uma grande mulher”.

Rompendo a invisibilidade

Falar sobre a invisibilidade feminina é chover no molhado. Todos sabemos! Ou, não! E, por que não sabemos? Ou fingimos que não sabemos? Cabe a cada um se identificar nos contextos e situações da (atual) existência.

O fato é que, em regra, ocultamos o desprezo ao feminino com ditados machistas e oportunistas – como o “por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher” – que nos fazem calar, ou até podem nos dar uma falsa sensação de empoderamento, um pseudorreconhecimento do que fazemos, o qual não passa de um medíocre afago para asserenar nossos ânimos ou para nos direcionar a costumeira apatia justificada por grande partes das mulheres – “como vou lutar contra isso?”, “para que contrapor?”, “não temos “armas” pra combater”, ou similares.

Segundo Dovidio, Hewstone, Glick & Esses (2010), é justamente o preconceito, ou seja, uma atitude positiva ou negativa direcionada a alguém ou a um grupo, que mantém o “status quo”, mantém a hierarquia, e impede o compartilhamento do poder, gerando o inconformismo e a impotência. É ele que nos deixa mais submissas, numa época – sim, 2024! – em que ainda estão fortes o machismo, a misoginia, o sexismo. Sim, ainda vivemos isso, infelizmente.

Se foi no século XX quando começamos a desbravar o espaço sideral, o “espaço feminino” ainda segue, entocado, jogado para debaixo do tapete e pisado por essa sociedade que exclui – mas se diz cristã! Como? – e bate, violenta, destrói sonhos, para em seguida, ajoelhar-se diante de um “deus” (sim, grafado em inicial minúscula para representar a divindade à imagem e semelhança do Criador, com todos os “pecados”, imperfeições, limitações e defeitos do “bicho homem”. Uma divindade parcial que concorda com (ou valida, homologa) as atrocidades cometidas por seus adoradores, sejam homens ou mulheres.

“No teatro da vida, as mulheres são uma leve sombra”, disse Michelle Perrot. Não seria diferente, pois, no Espiritismo. De muitas formas a obra Kardeciana foi adulterada, após sua morte e a desqualificação de sua principal herdeira e continuadora: a doce Gabi (que também sabia ser dura e enérgica, quando fosse preciso). E não porque ostentava a condição de “Madame Allan Kardec” (talvez haja muita ironia e sarcasmo em muitos dos escritores espíritas brasileiros quando a identificam assim!). Não porque era legatária testamentária e por direito (francês) de seus bens, sua produção literária e sua memória, honra e respeitabilidade. E, tampouco pela lista de serviços prestados ao Espiritismo e à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), orgulhosamente o primeiro centro espírita do mundo.

A mão feminina presente

Não era por isso! Mas, sim, por ser Amélie-Gabrielle aquela que sempre dava a mão a Kardec, quem o apoiou diante de todas as contrariedades, oposições e combates. Quem o secundou, nos momentos de sua grave enfermidade, dentro das muitas dificuldades encontradas pelo casal, em sua trajetória espiritista. E, mais propriamente, por ser tenaz, perseverante, combativa (sem ódios ou rancores), dedicada e centrada na lógica racional (como seu esposo).

Em 23 de novembro de 1795, na cidade de Thiais, Departamento de Sena, filha de Julien-Louis e Julie-Louise, nasce Amélie-Gabrielle Boudet. Desde criança, foi estimulada a estudar, justamente porque sua mãe, à frente de seu tempo, não era adepta do pensamento da época, no qual a mulher deveria aprender apenas o suficiente para educar seus filhos. Não! Amélie não foi mais um fruto da educação machista, oriunda grande parte de pensamento de Rousseau. Sua destreza, sua vontade de aprender destoava em relação às circunstantes. Por isso, o estímulo vindo de sua família frutificou e ela foi estudar em Paris, se formando como “professora de primeira classe”.

Tornou-se, assim, uma instrutora, uma pedagoga. Admiradora de Jean Batptiste de La Salle, desenvolvedor do pensamento de que o ensino deve visar às necessidades do educando no que diz respeito aos conhecimentos primordiais e à formação de hábitos morais e intelectuais. Segundo o pesquisador espírita Silvino Canuto de Abreu, Amélie também lecionava Letras e Belas Artes, e chegou a publicar três obras: “Contos Primaveris”, 1825; “Noções de Desenho”, 1826; e, “O Essencial em Belas Artes”, 1828 (ABREU, 2024).

O fato de ser oriunda de uma família de posses e ter sido estimulada a estudar não facilitou sua vida no que tange à sua presença na história do Espiritismo, apesar de em diversos textos Kardec fazer menções à sua companheira sua biografia ficou reduzida.  Mas, Amélie fez muito. Além de ajudar seu marido na elaboração da Doutrina Espírita o cuidado e a catalogação das pinturas mediúnicas ficaram a cargo dela, financiou a Revista Espírita. Não só fundou a Sociedade Anônima, como a Sociedade para a continuação das obras espíritas de Allan Kardec a verdadeira Comunicação Social Espírita.

Por fim, é de se destacar que Amélie vivia o tempo social em que se colocou a Razão acima da Fé e da Religião. Razão, esta, como crítica racional em todos os campos do saber humano. A defesa do conhecimento racional foi estabelecida para desconstruir preconceitos e ideologias religiosas. A efervescência de novos valores, novas buscas. A morte do velho para o florescer de uma sociedade mais humana. Era o século das luzes, o Iluminismo, o qual deu a base para a Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade –, de 1789 a 1799, nossa protagonista nasceu durante a Revolução. Em paralelo, a contestação dos poderes políticos e públicos foi acentuada: o poder do rei devia ser limitado por um Conselho e/ou por uma Constituição.

Novos tempos, novos ares… Propícios à semeadura dos ideais espíritas, laicos, humanistas, livre-pensadores, progressistas, progressivos, também calcados nos ideais da Revolução.

Boudet traída pelos homens espíritas

Mas, lamentavelmente, nossa personagem teve seu nome e seu papel minimizado, em conversas à boca pequena, após as reuniões na SPEE ou nos cafés parisienses. Havia sempre algo a esconder para quem já tramava de há muito a sua exclusão, quando Kardec se fosse para o “mais além”. Para eles, todos homens, a Sra. Rivail era apenas “a mulher por detrás do homem”.

Nos dias que se seguiram à abertura testamentária e às providências jurídico-legais de sucessão em bens e em direitos associativos e literários, a Grande Dama foi sendo alijada dos negócios e da coordenação das atividades. E, como o grupo que pretendia o monopólio do Espiritismo era mais numeroso e ruidoso, não só ela como os demais discípulos fiéis de Rivail, acabaram afastando pouco a pouco os que zelavam pelo legado kardeciano, contra os que queriam promover uma guinada para o misticismo, o religiosismo e a heterodoxia.

O maior inimigo do Espiritismo, de Kardec e da própria Amélie foi, consagrada e documentalmente o Sr. Pierre-Gaëtan Leymarie. Fropo explana isso magistralmente em seu livro, acima mencionado, e Calsone (2017), adiciona outros elementos calcados na atuação da sociedade e da editora-livraria, após a desencarnação de Kardec. Os fatos comprovam a atitude totalmente incompreensível daquele que deveria ser o primeiro zelador da mensagem espiritista. Leymarie, peremptoriamente, inscreveu seu nome na história, como o primeiro machista-misógino-sexista espírita do mundo!

A tentativa destes homens “pequenos” foi a de apagar seu legado foi grande: “uma leve sombra”. O etarismo, o machismo muito forte na época, fez com os homens, senhores de si, a colocassem de lado, suas opiniões fossem ignoradas, sua presença fosse cada vez menor dentro das reuniões da Sociedade, visto que o desprezo com que era tratada a fez adoecer. Esses fatos são contados por sua amiga Berthe Fropo. Ela, Amélie, e os espíritas fiéis a Kardec tiveram muitas dificuldades devido aos desmandos de Leymarie, o qual introduziu filosofias estranhas ao Espiritismo na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Essa instituição tinha sido fundada pelo Codificador e por sua esposa.

Então, em uma certa reunião, na casa de Amélie, foi psicografada uma mensagem de Kardec em que ele solicitava a fundação de uma nova sociedade para fazer frente aos desmandos de Leymarie. A “União Espírita Francesa” surge como forma de preservar a Filosofia Espírita e, para documentar e divulgar as ações kardecianas, se institui um novo periódico, “Le Spiritisme”, com o destacado intuito de proteger e preservar a Obra de Kardec.

Por que Dama?

Dama do Espiritismo é dessa forma que percebemos essa mulher. Amante das artes e das letras, possuidora de uma visão acurada, trabalhou com seu companheiro desde sempre e legou à posteridade o exemplo: não nos tentem calar, não tentem desmerecer nosso conhecimento, nossa capacidade, nós somos imortais, portanto nosso trabalho constrói o mundo!

De nossa parte, damos-lhe o nosso reconhecimento: Obrigada, Professora Amélie! E se a força do Espiritismo, como declarou Kardec, está em sua filosofia, a força do mundo está nas mãos das mulheres que fazem e acontecem. É através da mulher que a vida surge e pulula em todas as partes e, também, que o progresso se faz, retirando o véu que obscurece e obnubila o conhecimento. Assim, nada existe que possa ficar escondido. Somos, então, Ícaros: das cinzas nós sempre renascemos e renasceremos.

Não é repetitivo dizer que o “Espiritismo COM Kardec” se posiciona a favor de Amélie-Gabrielle (e do próprio Rivail-Kardec), rechaçando aquelas condutas e na continuidade dos “escândalos” do século XIX (que prosseguem, infelizmente, agora, no XXI). São, portanto, 155 anos da morte de Kardec e do início da adulteração completa em suas obras mais maduras e robustas, “O Céu e o Inferno” e “A Gênese”. E os documentos encontrados/resgatados, assim como o expressivo relato de Berthe Fropo, em seu livro “Beaucoup de Lumière” (“Quanta Luz”), que fala dos desvios, dos desmandos e do assédio moral que Amélie sofreu daqueles que se intitularam os donos do Espiritismo, mostram o quanto ela, junto a Allan Kardec, trabalhou pela elaboração da obra Kardeciana.

É, também ela, a nossa inspiração em zelar pela Doutrina dos Espíritos, afastando-a das ações nefastas, do passado e do presente – e, sabe se lá até quanto tempo! – por aqueles que cedem às “tentações” do orgulho e da vaidade, essas verdadeiras chagas da Humanidade.

É exatamente por isso o título do nosso artigo: “A Grande Dama ao lado de um Grande Homem”: Amélie e Denisard. Juntos! Nem atrás, nem à frente, um do outro…

Referências:

ABREU, S. C. Amélie Gabrielle Boudet. Federação Espírita Brasileira. Sem data. Brasília, FEB, 2024.

CALSONE, A. Em nome de Kardec. Versão digitalizada. Atibaia: Vivaluz Editora, 2017.

DOVIDIO, J. F.; HEWSTONE, M.; GLICK, P.; ESSES, V. M. Prejudice, stereotyping and discrimination: Theoretical and empirical overview. In: Dovidio, J.F.; Hewstone, M. ; Glick, P.; Esses, V. M. (Eds.), The SAGE handbook of prejudice, stereotyping and discrimination, Califórnia: SAGE, 2010.

FROPO, B. Quanta Luz. Trad. Ery Lopes e Rogério Miguez. Versão Digital. São Paulo: Luz Espírita, 2018.

LARA, E. Amélie Boudet, uma mulher de verdade. Santos: Pense, 2001.

MARCON, M. H. Uma mulher revolucionária na França do Século XIX. Mundo Espírita. Março de 2017. Curitiba: FEP, 2017.

MILANI, M. Madame Kardec: a história que o tempo quase apagou. Resenha de Livro. Educador Espírita. Janeiro de 2017. Disponível em: <https://educadorespirita1.blogspot.com/search?q=madame+kardec>. Acesso em 4. Abr. 2024.

PERROT, M. Práticas da memória feminina. Revista brasileira de história. Associação Nacional de História, v. 9, n. 18. São Paulo: ANPUH, USP, 1989.

Imagem de Frauke Riether por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “A Grande Dama ao lado de um Grande Homem, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

  1. Texto robusto. Faltou, entretanto, enfatizar também o aspecto financeiro que sempre moveu Leymarie, após o desencarne de Allan Kardec. Calsone deixou isso bem claro no livro “Madame Kardec”.

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