A filosofia da ciência, por Alberto Mesquita Filho

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Por Alberto Mesquita Filho

A rigor, e na prática, as leis universais continuam sendo aceitas “a priori”, ainda que libertas de seu caráter necessário. De qualquer forma, é importante realçar que além da regra científica fundamental, outras hipóteses metafísicas têm-se mostrado necessárias para a fundamentação desta ou daquela teoria.

“Quando dizemos que a filosofia não nos interessa, o que provavelmente fazemos é substituir uma filosofia explícita por outra implícita, isto é, imatura e incontrolada. […] Esta filosofia caseira […] supõe que um símbolo, tal como uma equação, possui significado físico somente à medida que diga respeito a alguma possível operação humana. Isto equivale a se considerar a totalidade da física como se referindo a operações, principalmente medições e cálculos, e não à natureza, o que implica num retorno ao antropocentrismo prevalecente antes do nascimento da ciência”.
Mario Bunge.

1. A universalidade dos princípios
A noção de que “tudo o que é científico apoia-se na experimentação” retrata o compromisso do cientista em mostrar-se fiel ao método científico. Por outro lado, apoiar-se na experimentação não implica, necessariamente, num bloqueio ao raciocínio intuitivo ou mesmo transcendental. Esta visão bloqueadora, própria dos empiristas ou dos positivistas dos séculos XIX e XX, não deve ser supervalorizada, em especial por aqueles que trafegam pelas fronteiras do conhecimento de sua época e, muito em especial, pelos cientistas teorizadores. É um erro pensar que novas ideias surgem graças exclusivamente à experimentação e, portanto, a se apoiarem, em seu nascedouro, nesta experimentação. Novas ideias, mesmo no campo das ciências, surgem através do livre pensar, sendo muitas vezes, e à primeira vista, absurdas. Tais proposições devem ser depuradas e é neste processo que poderão vir a ser refutadas, no caso de se mostrarem contrárias à experimentação. Resistindo a esta etapa, espera-se que venham a propor novas experiências (previsões de fenômenos ou fatos) para que ganhem credibilidade. Embora não se constitua uma regra, nada impede que uma ideia venha a ser aceita até mesmo quando não há experiência alguma a comprová-la. Inadmissível, a princípio, seria a aceitação de um conceito a contrastar com a existência de dados experimentais consistentes a falseá-lo.

A título de exemplo, aceita-se a afirmação milenar de que “os princípios fundamentais da ciência, são universais”. Este sábio pensamento é inerente ao que tenho chamado por realismo transcendental (1). Poderíamos então dizer que os princípios fundamentais, observados aqui na Terra, seriam os mesmos tanto em Júpiter como em qualquer planeta de outros sistemas estelares ou galáxias distantes. Aceita-se também, quase como sendo um corolário desta regra, a imutabilidade temporal destes princípios fundamentais. Esta afirmação não se sujeita à falseabilidade, mas acomoda-se a uma generalização indutiva, a projetar para o futuro o caráter repetitivo de observações feitas em um passado recente. É como se garantíssemos que as experiências feitas hoje, mantidas as condições essenciais, irão se repetir daqui a, digamos, 10.000 anos, algo que aceitamos como um pré-requisito para que possamos continuar falando em ciência e/ou em método científico. Recentemente escrevi um artigo onde comento a importância da regra da repetitividade não apenas para a definição de ciência como também para que cheguemos à conceituação do método científico (2). Estou aqui apenas projetando esta regra para muito além de nossa existência temporal.

A fé na universalidade dos princípios orientou os filósofos gregos na busca pelos princípios fundamentais; e a não observação desta universalidade, em certos casos consagrados, fomentou a teorização e/ou a procura por explicações outras a justificarem o motivo da regra estar “aparentemente” sendo contrariada. Aristóteles, por exemplo, ao notar que os corpos em movimento tendem para o repouso, deve ter estranhado que tal não acontecesse com os corpos celestes. Para Aristóteles, a tendência ao repouso representava um princípio natural verificado “experimentalmente” e a ser obedecido por todos os corpos. E por acreditar neste princípio bem como na sua universalidade, propôs a existência dos “motores divinos principais”, como que a propelirem os astros em sua recusa a evoluírem para o repouso, o que seria, na sua maneira de ver, uma condição natural universal. Há ainda outra versão a dizer que, para Aristóteles, as orbes celestes teriam uma constituição qualitativamente diferente da nossa atmosfera e tais que o natural, nas condições lá vigentes, seria a evolução para um movimento circular (3), não havendo pois a necessidade da suposição da existência dos “motores divinos”. Nota-se, de qualquer forma, a crença na universalidade dos princípios e leis e a tendência para a explicação de manifestações regionais diversificadas como resultantes da ação de fatores outros.

Seria este um argumento legítimo? Poderíamos hoje, após termos axiomatizado o método científico, dizer que tal conjectura seria uma heresia científica? Certamente não. Conjecturas como estas foram feitas por todos os cientistas que se situaram na vanguarda do conhecimento de seu tempo. No século XIX aceitou-se a existência de um éter imponderável a preencher o espaço vazio; no século XX foram incontáveis as tentativas em se superar dificuldades do mesmo tipo lançando-se mão também de conjecturas que não ficariam nada a dever aos “motores divinos principais” de Aristóteles. Dentre os inúmeros exemplos a respeito destacamos: o espaço-curvo, a dualidade partícula-onda, os fótons virtuais, os buracos negros, os táquions, o contínuo espaço-tempo, as partículas com energia “absoluta” negativa, a transformação matéria-energia, etc. Ainda que não se possa citar nenhuma experiência a garantir a veracidade destes hipotéticos conceitos, a verdade é que todos eles foram firmados tendo por embasamento algum princípio fundamental apoiado na experimentação, tal e qual o “princípio da evolução para uma condição natural” aceito por Aristóteles.

Quase dois mil anos foram necessários para que alguém invertesse o questionamento de Aristóteles, inaugurando uma nova fase áurea na física. Para Aristóteles a dificuldade residia em explicar porque os corpos celestes permanecem em movimento quando o natural seria a evolução para o repouso, como observamos com os corpos terrestres. No século XVII Galileu, mantendo a universalidade dos princípios, simplesmente inverteu a questão: Por que os corpos terrestres evoluem para o repouso, quando o natural seria sua permanência em movimento, como acontece com os corpos celestes? O princípio que agora está entrando em cena e a substituir “o princípio da evolução natural para o repouso” nada mais é do que a lei da inércia, um dos pilares da física de Newton. Tanto os corpos celestes quanto os terrestres estariam sujeitos à mesma inércia, até então suposta como uma “inércia circular”. Em virtude do atrito, contra o solo e/ou contra a atmosfera, os corpos terrestres evoluiriam gradativamente para o repouso. Não havendo atrito, o natural, segundo a visão de Galileu, seria a manutenção do movimento.

A “experiência” inicial ou primeira, a justificar os dois princípios contraditórios (a inércia circular e universal, de Galileu, e a evolução para uma condição natural, de Aristóteles, em que o natural seria uma propriedade regional ou local) é exatamente a mesma, ou seja, a observação do comportamento dos corpos terrestres e celestes. Vejam a intuição e a lógica transcendental novamente em ação! Muitas das experiências de Galileu foram guiadas pelo raciocínio intuitivo seguido da depuração racional, a culminarem na experimentação. Com efeito, conquanto Galileu tenha feito inúmeras experiências, ele foi um físico eminentemente teorizador a se utilizar das experiências para comprovar hipóteses racionalmente concebidas (previsão de fatos e/ou de fenômenos), argumento esse que nem sempre é enfatizado convenientemente nas escolas. Graças a esta notável virtude intuitiva, ainda quando estudante chegou a ser considerado, por seus mestres, “um desequilibrado malabarista de números inúteis”.

2. A regra científica fundamental e os princípios fundamentais
Se pensarmos no significado do termo “universal” num contexto espaço-temporal, perceberemos que a afirmação “os princípios fundamentais da ciência são universais” contém, neste amplo sentido (a comportar variações temporais), a regra da repetitividade [reproduzida em comentário anexo à referência (2)]. E se, por outro lado, expandirmos a regra da repetitividade para variações temporais, concluiremos estar de posse do princípio da universalidade no amplo sentido, ainda que enunciado com outras palavras. Direi então que esses princípios, assim expandidos (um no sentido temporal e o outro no sentido espacial), constituem a Regra Científica Fundamental, a alicerçar todas as ciências empíricas, como já expus em trabalho anterior (2).

A partir da regra científica fundamental, podemos conceber uma física clássica sem a necessidade de apoiá-la no princípio da causalidade. Por exemplo, se “procurarmos pela causa” a explicar porque os corpos terrestres tendem ao repouso, ao encontrá-la (atrito) chegamos na lei da inércia. Mas podemos também chegar à lei da inércia por um argumento diferente: Assumindo a universalidade das leis e observando o comportamento dos astros, chegamos à lei da inércia e à suspeita de que os corpos terrestres estão sujeitos a outras leis. Sem dúvida, os efeitos constatados têm uma causa; mas a causa não é em si “logicamente necessária”, surgindo como uma possível explicação para os resultados da experimentação, ou seja, a causa é identificada “a posteriori”. Outro exemplo: Podemos considerar a força como a “causa” da modificação do movimento dos corpos. No entanto, a força em si não é a causa, mas a medida de alguma coisa a retratar um fenômeno universal a responder pela modificação observada no movimento dos corpos. Ao constatarmos que os corpos se atraem não estamos nos apoiando no princípio da causalidade; ao criarmos critérios a medirem este fenômeno, idem; e ao assumirmos que existe um campo gravitacional, também. Ou seja, a cada lei a que chegamos constatamos, “a posteriori”, e em decorrência da experimentação, a observância do princípio da causalidade. Mas o princípio da causalidade, em si, não é necessário ou essencial à ciência, pois não retrata uma verdade assumida “a priori”, mas algo que vem resistindo à falseabilidade, “a posteriori”. O princípio da causalidade, com todos os problemas de natureza epistemológica que gera, ganha o caráter de hipótese secundária e testável, sujeitando-se, pois, à falseabilidade, assim como os demais princípios científicos fundamentais, à exceção da regra científica fundamental. Veremos oportunamente que esta falseabilidade a que os princípios científicos fundamentais estão sujeitos apoia-se no princípio da indução.

Quais seriam então os princípios realmente fundamentais, além da regra científica fundamental, a apoiarem as ciências empíricas? Ora, fundamental significa básico, essencial, necessário; ou o ponto de partida de uma ciência, aquilo que é aceito a priori. Quantos “a priori” seriam necessários à ciência empírica? Porta (1999) (4) retrata o conhecimento “a priori”, a embasar as ciências empíricas, com as seguintes palavras: “Se há um conhecimento que tenha as qualidades de necessário e universal então ele não pode ser empírico e, em consequência, é, por oposição, ‘a priori’.” Vamos então analisar os caracteres universal e necessário aos princípios fundamentais.

3. O caráter “universal” das leis ou princípios fundamentais
O caráter universal da ciência empírica está explícito na regra científica fundamental. Por paradoxal que possa parecer, universalidade implica em apriorismo e conhecimento “a priori” é aquele que não pode ser suficientemente fundamentado pela experiência. Logo, a regra científica fundamental não é justificável pela experimentação e nem passível de falseabilidade. Não obstante, o paradoxo se desfaz pela própria regra, pois ao afirmar que os demais princípios “também” são universais num contexto espaço-temporal, a regra garante-nos que tais princípios possam ser enunciados em decorrência de observações particulares (rigorosamente falando, deixam de ser princípios, transformando-se em leis). Ou seja, a regra científica fundamental assume todo o apriorismo inerente à ciência. Por exemplo, Galileu ao reduzir o atrito chegou à conclusão que o movimento dos corpos terrestres se conserva (inércia), falseando o argumento de Aristóteles. Longe de ir contra a experimentação, a regra científica fundamental dá suporte à experimentação, como que a garantir a evolução de um idealismo transcendental (teorização) para um realismo experimental (prática).

4. O caráter “necessário” das leis ou princípios fundamentais
Esta conduta, de transferir o apriorismo dos princípios fundamentais para uma única regra mais fundamental, não deixa de ser um artifício de ordem prática ou, até mesmo, de natureza epistemológica. A rigor, e na prática, as leis universais continuam sendo aceitas “a priori”, ainda que libertas de seu caráter necessário.

Explico melhor:

1) O argumento indutivo nos leva do particular para o geral, ou seja, da experiência para as leis. Sob esse aspecto, nenhuma lei chega a ser universalmente constatada, pois poder-se-á sempre se pensar numa condição em que ela ainda não foi testada. Consequentemente, para aqueles que, ao conceituarem a ciência, apoiam-se unicamente nos argumentos indutivos, todas as leis são aceitas “a priori” e meramente corroboradas pela experimentação. Todas as leis universais assim estabelecidas são princípios e, como tais, necessários.

2) Por outro lado, se utilizarmos o argumento dedutivo, inerente ao método científico, caminhamos no sentido do geral para o particular (formulação de hipóteses). As leis deixam de serem necessárias pois começamos pela dedução de hipóteses. Estas hipóteses, ao serem corroboradas, transformam-se em leis, agora sim através do raciocínio indutivo. Porém, não são necessárias e não são estabelecidas “a priori”, surgindo como consequência da interpretação da experimentação. E o único “a priori” assumido como tal é o do princípio da universalidade a possibilitar a generalização e a garantir que, por ser a legislação universal, deve-se esperar por algum efeito sempre que o agente responsável pela obtenção da lei esteja presente. O não encontro do efeito, da maneira esperada, é um forte indicador a nos orientar na procura por outra lei a se manifestar concomitantemente (por exemplo, inércia e atrito).

Em teoria podemos então dizer que o apriorismo se desfaz ao eliminarmos o caráter necessário da lei enquanto princípio. Kant, ao interpretar a física newtoniana sob um prisma racionalista, demonstra que ela conserva aquela ideia de ciência, com raízes na Antiguidade clássica, segundo a qual ciência é conhecimento universal e necessário (4), o que tem como corolário o fato de a ciência apoiar-se em princípios, ou seja, afirmações aceitas “a priori”. Ao dizer que é possível conceituar a ciência às custas única e exclusivamente da regra científica fundamental, estamos coerentes com essa ideia de Kant, a fundamentar a sua Crítica da razão pura, ainda que tenhamos deixado de lado o princípio da causalidade. De qualquer forma, é importante realçar que além da regra científica fundamental, outras hipóteses metafísicas têm-se mostrado necessárias para a fundamentação desta ou daquela teoria. Desnecessário será lembrar que a própria regra científica fundamental se condiciona ao perfeito entendimento do que sejam espaço e tempo.

Referências:

(1) MESQUITA FILHO, A., 1993: Eletromagnetismo e Relatividade (htm), capítulo V do Livro A Equação do Elétron e o Eletromagnetismo, Editora Ateniense, São Paulo.
http://www.ecientificocultural.com/Relat/EletroRel01.htm

(2) MESQUITA FILHO, A., 1996: Teoria sobre o método científico, Integração II(7):255-62,1996. Regra da repetitividade: “Se em dadas condições um determinado fenômeno, sempre que pesquisado, se repetiu, é de se admitir que em futuras verificações o mesmo suceda.”
http://www.ecientificocultural.com/ECC2/artigos/metcien1.htm

(3) The Physical Sciences, em The New Encyclopaedia Britannica, Vol 25, Chicago, 1993, p.829.

(4) PORTA, M.A.G., 1999: Uma aula sobre Kant (download, arquivo zip-doc, 21 Kb), Integração V(19):245-51.
ftp://ftp.saojudas.br/pub/revint/245_19.ZIP

Acesse cada texto:

A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones

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Ciência, Filosofia e Religião?, por Carlos de Brito Imbassahy

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