Precisamos de um “dia nacional do Espiritismo”?, por Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

Tempo de leitura: 6 minutos

Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

Lemos – não sem uma sensação de estupefação e perplexidade – as notícias do momento. A primeira, dá conta da publicação, no dia 31 de maio último, no “Diário Oficial da União”, da sanção (aprovação) presidencial a projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, dele derivando a Lei (Federal) n. 14.354/2022 (que “Institui o Dia Nacional do Espiritismo”).
A segunda notícia, deriva da repercussão da primeira, no chamado Movimento Espírita Brasileiro (MEB). De modo “efusivo”, como se, a partir de tal norma, a situação do país (e das instituições e adeptos espíritas) sofresse uma significativa e importante mudança.

Vale dizer, ainda, que a iniciativa da propositura do projeto partiu de um dos senadores brasileiros que se autodeclara espírita, representante do Estado do Ceará.
Os indivíduos possuem as suas conformações e preferências religiosas. E o direito de não ter ou de não professar qualquer religião, também é assegurado no Estado Democrático de Direito brasileiro. A vinculação “religiosa”, assim, deve ter sido o principal motivo para que um representante do povo fizesse a redação da norma e a apresentasse para o seguimento do rito de apreciação pelo sistema bicameral brasileiro (duas casas legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal).

Contextualmente, no entanto, é preciso dizer que o Estado brasileiro é considerado laico, ou seja, inexiste vinculação de caráter religioso com a gestão pública governamental. Além disso, não se pode invocar preceitos de natureza da moral sectária de qualquer igreja, culto ou religião, para patrocinar ações públicas, estatais, em quaisquer dos poderes (executivo, legislativo e judiciário). A diretriz fundamental consta, inclusive, da Constituição da República: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5º, VI, da CF).

Questões em aberto

Mas os agentes políticos (presidente, vice, senadores, deputados federais, ministros dos tribunais superiores, etc.) não são laicos. Possuem, assim, suas convicções pessoais, íntimas ou explicitadas, conforme sua vontade, em relação a “igrejas e templos de qualquer natureza” (redação, inclusive, que consta do capítulo sobre a Ordem Tributária, na vedação constitucional da imposição de impostos – imunidade tributária – a estes entes, conforme o artigo 150, VI, da CF).

Assim é que, declaradamente, o atual mandatário do país é evangélico.

De início, a racionalidade espírita pode nos endereçar a uma questão importante: Por que um presidente evangélico aprovaria um projeto de lei relacionado a outro credo? E, por outro lado, qual a razão de um parlamentar de sua base de sustentação política propor o projeto?

No campo das conjecturas e das ilações, já que nem um nem outro declarou nada diferente do que a “ideia protocolar” de que vige, no Brasil, a liberdade de expressão religiosa e, portanto, o Estado não pode opor obstáculos ao exercício de qualquer crença ou atividade religiosa.

No entanto, a nós parece estar bem claro de que a “intenção” principal seja angariarem, ambos, o autor do projeto e o atual Chefe do Poder Executivo, simpatia em relação ao “nicho” dos espíritas, inclusive antevendo o pleito eleitoral próximo, em 2 de outubro de 2022.

Umbigos espíritas

Dito isto, vamos falar sobre o nosso “umbigo”, isto é, o Espiritismo e, mais particularmente, o Movimento Espírita Brasileiro. Dissemos, na abertura deste artigo, que a divulgação da publicação da norma gerou um frenesi entre os espíritas – seja nas redes sociais, seja nas instituições em geral, onde se reúnem fisicamente os espíritas. E, também, é de se registrar, vários veículos de comunicação social, em seus sítios, também destinaram notas, unânimes em aplaudir o feito.
É possível até que você tenha lido (ou ouvido) manifestos do tipo “agora, sim, estamos representados” ou “o presidente reconhece a importância dos espíritas”. Ufanismo. E, notoriamente, expressão de proselitismo (religioso), que não deveria fazer parte da ambiência espírita.

A este respeito, relembremos Kardec (“Revue Spirite”, dezembro de 1861, “Constituição do Espiritismo”, Item 2):

Os espíritas devem “ falar abertamente do Espiritismo, sem afetação, como de uma coisa muito simples e muito natural, sem pregá-la, e sobretudo sem procurar nem forçar as convicções, nem, quando mesmo, fazer prosélitos. O Espiritismo não deve se impor; vem-se a ele porque dele se tem necessidade, e porque ele dá o que as outras filosofias não dão.
Convém mesmo não entrar em nenhuma explicação com os incrédulos obstinados: isso seria dar-lhes muita importância e fazer-lhes crer que se prende a eles. Os esforços que se faz para atraí-los a si os distancia, e, por amor-próprio, obstinam-se em sua oposição; é porque é inútil perder seu tempo com eles; quando a necessidade os fizer sentir isso, virão por si mesmos; à espera é preciso deixá-los tranquilos se comprazerem em seu ceticismo, que, crede-o bem, frequentemente, lhes pesa mais do que não querem fazê-lo parecer; porque, disseram bem, a ideia do nada depois da morte tem alguma coisa de mais pavorosa, de mais aflitiva que a própria morte”.

E, complementarmente, citemos Herculano Pires (“O Centro Espírita”):

“O Espiritismo não é proselitista, não entra na disputa sectária de adeptos das religiões, mas devem os espíritas, necessariamente, interessar-se pelos que se interessam pela Doutrina. Esclarecer e orientar sempre é dever espírita”.

Assim sendo, não há o que se cogitar em termos de “benefícios” para o Espiritismo, seja enquanto filosofia, seja enquanto movimento humano-associativo, com a edição de tal norma legal.
Sabemos que o Espiritismo surge, em 18 de abril de 1857, pela concepção dos Espíritos e pelo pensamento racional de Rivail-Kardec. A partir de “O livro dos Espíritos”, tem-se a pedra angular sob o qual foi erguida o edifício doutrinário, sendo complementada a Filosofia Espiritualista, com a publicação das demais obras, totalizando 32 (trinta e duas). Logicamente, a data escolhida pelo parlamentar figura como base representativa para a instituição do “Dia Nacional do Espiritismo”, como visto.

Se a iniciativa fora tão-somente a de homenagear a doutrina no país – e, neste ponto, poder-se-ia reputar como louvável – haveríamos de, racional e logicamente (as duas premissas de Kardec), nos perguntar: qual é o caminho que estamos a seguir? Seria o do ufanismo da “Pátria do Evangelho” (descrição mítica, mística e messiânica) ou a da Justiça Social, preconizada pelo ensino dos Espíritos e pelo pensamento kardeciano?

Há, evidentemente, uma cisma insofismável no Espiritismo: o dogmatismo derivado do Espiritismo-Religião, cultuado, praticado e difundido pelas federativas e pela quase totalidade das casas espíritas alicerçado. Para este segmento, majoritário, basta a (relevante, é claro) máxima: “Fora da caridade não há salvação”.

O que devemos perguntar, efetivamente, diante da “lei” e da prática espírita é: será que compreendemos a extensão da “caridade”? E se, de fato, a entendemos, será que a praticamos?
Isto porque a “caridade” significa o amor em ação e, neste parâmetro, não se resume apenas ao aspecto assistencialista tão praticado pelo meio espírita, ainda que bastante relevante, no tocante ao atendimento de uma gama imensa – sobretudo nos dias atuais, em nosso país – de necessitados do pão material. Basta observarmos os ensinos morais de Jesus de Nazaré e os dos Espíritos Superiores, na obra kardeciana. E, para que conste, quando falamos nesta última, devemos enaltecer a extensão do pensamento de Kardec ao longo de suas obras, a legítima contribuição de um lúcido pensador para a Doutrina dos Espíritos, seu coautor intelectual.

Efetividade necessária

Assim, a legítima atuação do espírita – sem proselitismo, como recomendou Kardec – deve ser permeada pela empatia, pela boa disposição em relação a todos os semelhantes. Mais que isso, a legítima caridade deve estar associada aos valores (que o Espiritismo reconheceu, em afirmações do próprio Kardec) de liberdade, fraternidade e igualdade – ainda que, no caso desta última, a palavra e o conceito jurídico-ético-social tenham evoluído para equidade.

Tais são, então, as premissas consideradas basilares para o progresso do ser no mundo. Em um mundo, como o nosso, na atualidade, com tantas injustiças e desigualdades, onde o racismo, o preconceito, a eugenia, a homofobia, a misoginia e a beligerância compõem um cenário tão desumanizado e cruel, derivado de preceitos arcaicos, retrógrados e autoritários, incapaz de compreender e praticar o amor em plenitude e, tampouco, adotar práticas progressistas e humanitárias no seio da sociedade.

Assim, entendemos que o “Dia Nacional do Espiritismo”, já que ele, agora, oficial e juridicamente existe, não deveria ser um mero (e artificial) momento de exortação e contemplação, marcado tão-somente por artigos e palestras especiais, com direito a mesas de honra. Do contrário, deveria ser o compromisso de todos os dias, com ações efetivas para um alcance mais espiritualizado acerca dos efeitos das Leis Morais que o Espiritismo consigna e reconhece, e o efetivo impacto destas tanto nas leis sociais, políticas e econômicas vigentes em nossa sociedade brasileiras, como nas vidas reais. Que o “dia espírita” possa ser o motor para um permanente momento de reflexão e de ação político-social, pois se Espiritismo sem Espíritos não existe, também, não existe Espiritismo sem valores humanistas.

Como derradeiras linhas, repisamos a oportuna reflexão de Kardec, publicada em “Obras Póstumas” (na dissertação “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”):

“[…] Os homens, vivendo como irmãos, com direitos iguais, animados do sentimento de recíproca benevolência, praticarão entre si a justiça, não causarão danos e, portanto, nada recearão uns dos outros. A liberdade será inofensiva, porque ninguém abusará, em prejuízo do seu semelhante. Como conseguir que o egoísmo, tudo desejando para si, e o orgulho, que quer tudo dominar, deem as mãos à liberdade, que os destrona? Nunca o farão, porque a liberdade não tem mais encarniçados inimigos, assim como a igualdade e a fraternidade”.

Menos aplauso, portanto, para a “lei” e seu(s) autor(es), e mais efetividade na construção de um mundo mais próspero, fraterno e feliz para todos, com o empenho dos espíritas na edificação do “Reino de Deus” sobre a Terra!

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “Precisamos de um “dia nacional do Espiritismo”?, por Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

  1. Olá! Embora eu seja um dissidente do Espiritismo, acho sempre proveitoso qualquer debate que traga possibilidade de desenvolvimento psíquico e espiritual. Quanto ao “dia do Espiritismo”, pouco importa porque sempre foi assim, aqui no Brasil, tendo como pano de fundo as questões políticas. Estratégia muito antiga e adotada por todos…

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