O derradeiro e conclusivo livro de Allan Kardec, por Paulo Henrique de Figueiredo

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Paulo Henrique de Figueiredo

A história do Espiritismo precisa ser recuperada, divulgada, profundamente conhecida pelos espíritas, para fazer justiça aos dedicados trabalhadores da causa, e dar a Allan Kardec a justa originalidade de seus escritos.

No ano de 2018 veio à tona relevante debate sobre alterações realizadas na 5ª edição francesa do livro “A Gênese”, publicada após a morte de Allan Kardec, no ano de 1872, em Paris.

No livro “O Legado de Allan Kardec”, a pesquisadora Simoni Privato Goidanich demonstra através de provas obtidas junto aos Arquivos Nacionais da França e na Biblioteca Nacional da França [1] , que três anos após a desencarnação de Allan Kardec, de forma clandestina, sem conhecimento dos espíritas em geral, e até mesmo da esposa e única herdeira de Allan Kardec, foram realizadas naquela 5ª edição francesa 282 alterações do seu texto inicial [2].

A amplitude dos ataques sofridos é proporcional à importância da causa. Desde 1863, Allan Kardec já fora avisado antecipadamente pelos espíritos dos obstáculos que seriam enfrentados pelos verdadeiros espíritas, em mensagem publicada na Revista Espírita (Dezembro, 1863):

“Não sereis martirizados corporalmente, como nos primeiros tempos da Igreja, nem se levantarão fogueiras homicidas, como na Idade Média, mas vos torturarão moralmente. Serão montadas armadilhas, emboscadas ainda mais perigosas pois nelas serão utilizadas mãos amigas, agirão na sombra, recebereis golpes sem saber de onde eles estão vindo, e sereis atingidos em pleno peito pelas flechas envenenadas da calúnia. Nada faltará às vossas dores; suscitarão fraquezas em vossas fileiras, e supostos Espíritas, perdidos pelo orgulho e pela vaidade, se postarão como independentes exclamando: ‘Nós é que estamos no caminho reto!’, a fim de que vossos adversários natos possam dizer: ‘Vejam como são unidos!’. Tentarão semear o joio entre os grupos, provocando a formação de grupos dissidentes. Arrastarão vossos médiuns para fazê-los entrar no mau caminho ou desviá-los de frequentarem os grupos sérios. Alguns serão intimidados, outros serão dominados, todas as fraquezas se explorarão. Depois, não esqueçais que alguns viram no Espiritismo um papel a desempenhar, e um primeiro papel, que sentem hoje mais de uma má sorte em sua ambição. Ser-lhes-ão prometidos de um lado o que não podem encontrar do outro. Depois, enfim, com o dinheiro, tão poderoso em vosso século atrasado, não se podem encontrar comparsas para desempenharem comédias indignas, a fim de lançar o descrédito e o ridículo sobre a Doutrina?”.

Como tão fundamental obra, a última e conclusiva do legado de Kardec, poderia sofrer tão grande ataque, “por mãos amigas, agindo na sombra”, como avisaram e previram os espíritos superiores, permanecendo sua versão original esquecida por 150 anos? Uma volta no tempo, descrevendo a luta de sua esposa Amélie Boudet e espíritas fiéis para manter a Doutrina Espírita no caminho apontado pelo mestre, será necessária.

Passaram-se vinte anos desde a volta de Allan Kardec para o mundo espiritual. Por mais natural que fosse, sua morte certamente abalou todos os espíritas acostumados com o mestre ao leme, apontando caminhos e desviando das pedras. Ainda sobreveio o ano terrível, com descreveu Victor Hugo em 1872, evocando Paris sitiada e as barricadas da Comuna.

Janeiro de 1881: um grupo de amigos da família e médiuns reúnem-se em Villa de Ségur, Paris, na casa da viúva, Amélie Boudet, e recebem mensagens de Rivail, que afirma:
“A doutrina, por assim dizer, ficou adormecida desde a minha partida. Era impossível que fosse de outra forma, já que meu desaparecimento súbito não me deu tempo para realizar os projetos que havia feito e que permitiria a uma coletividade homogênea continuar o trabalho que havia sido iniciado. Então, as desgraças que surgiram em nossa querida pátria obrigaram cada um a trabalhar materialmente para melhorar sua própria situação e a de nosso querido país. Pois deve-se confessar que a maior parte dos espíritas, sendo os primeiros apóstolos, sem fortuna, tem o dever de prover as necessidades diárias de suas famílias” [3].

Infelizmente, porém, os fatos se agravaram, e a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e a Revista Espírita – jornal de estudos psicológicos, criados e mantidos por Kardec, por responsabilidade de seus administradores, não continuaram no caminho originalmente traçado, divulgando desvios e desorientando o movimento espírita. Rivail continua:
“Não te disse, Amélie, querida companheira de meus trabalhos, que era para o futuro que tinhas que olhar, por ti, por mim, pelo espiritismo? Cabe a ti, portanto, retificar aquilo que, no momento, tem sido manchado de erros. Cabe a ti distinguir os espíritas abnegados e devotados à nossa causa desde há muito, que, chamados a continuar a fazer frutificar o que eu semeei, devem, tão logo o momento de agir lhes seja indicado, formar uma sociedade nova chamada a elaborar a continuação das minhas obras. Assim, por ora, consiste em preparar-te para mudar as disposições existentes em favor desta velha sociedade, encaminhando-as àquela que irá se formar e para a qual é tua missão velar”[3].

Surge nova instituição, a União Espírita Francesa. Na véspera do Natal, quatrocentos espíritas uniram-se a Amélie Boudet, sua querida amiga e médium Berthe Froppo, Gabriel Delanne, o jovem Léon Denis, e tantos outros. Uma comissão central de ao menos trinta membros nomeados pela assembleia geral, assumiu as recomendações de Allan Kardec na “Constituição transitória do Espiritismo”. Um novo jornal, Le Spiritisme (O Espiritismo), resume em seu título tudo o que lhe importa divulgar!

Henri Sausse, um dos principais biógrafos de Allan Kardec, colaborador de Le Spiritisme e participante ativo da União Espírita Francesa, no inverno de 1883-1884, reunido com diversas testemunhas, ouviu de um lionês, dizendo ser amigo pessoal de Leymarie, que este havia feito modificações em La Genèse. Surpreendido com tal notícia, comparou frase a frase com a edição original e constatou as modificações. A esse respeito, comenta Simoni Privato Goidanich:

“Henri Sausse não pode calar-se diante de um fato tão grave. Com sua reconhecida coragem e sua fidelidade doutrinária, publicou, em dezembro de 1884, no periódico Le Spiritisme, um artigo que constitui um marco na história do Espiritismo, denominado ‘Uma infâmia’: ‘Contra minha vontade, me deixo levar pela indignação que minha alma transborda. (…) A Gênese sofreu importantes mutilações” [4].

A história do Espiritismo precisa ser recuperada, divulgada, profundamente conhecida pelos espíritas, para fazer justiça aos dedicados trabalhadores da causa, e dar a Allan Kardec a justa originalidade de seus escritos, tarefa que ele mesmo considerou fundamental:
“Que o Espiritismo sendo incontestavelmente chamado a desempenhar um grande papel na história, importa que esse papel não seja desnaturado, e de opor uma história autêntica às histórias apócrifas que o interesse pessoal poderá fazer. Aliás, o Espiritismo está em seu início, e muitas outras coisas se passarão daqui até lá; e depois, é preciso esperar que cada um nele tenha tomado o seu lugar, bom ou mau” [5].

Notas do Autor:
[1] GOIDANICH, Simoni Privato. “O Legado de Allan Kardec”. USE/CCDPE, 2018, páginas 163 a 166.
[2] Op. Cit. Páginas 167 e 168.
[3] Froppo, Berthe. “Beacoup de Lumière”. Paris, França: Imprimerie Polyglotte, 1884.
[4] GOIDANICH, cit. Páginas 319 e 320.
[5] Kardec, Allan. “Revue Spirite”. Ano 1862.

Nota do ECK:
Artigo publicado como parte da “Apresentação” da edição de “A Gênese”, editada pela FEAL, com base na primeira edição autêntica, em francês, publicada por Kardec. Reprodução autorizada pela Editora.

Rio Sena –  Imagem de edmondlafoto por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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