O assédio da extrema direita na ambiência das casas espíritas, por Manoel Fernandes Neto

Tempo de leitura: 4 minutos

Por Manoel Fernandes Neto

Usar a religião como forma de manipulação é uma das características dos regimes totalitários, como o fascismo

Um amigo do interior de São Paulo queixou-se de que foi obrigado a sair do grupo mediúnico e da casa dos quais participava. O assédio eleitoral em nome da “família, pátria e Deus acima de tudo” tornou sua situação insustentável. Médium de grande valor, em determinado momento foi acusado de obsessão por não concordar com o que era colocado, exposto pelo WhatsApp e presencialmente. Contou-me, resignado, que a sua saúde mental estava comprometida. Saiu para não voltar mais.

São muitos os casos parecidos. Grupos de trabalho presencial e online foram contaminados por uma lógica enviesada em relação ao Governo que se encerra; tudo ancorado nas mais estapafúrdia fakes news, produzidas para manter a narrativa do momento: Brasil, o paraíso do “homem de bem”.

Comunicado da Federação Espírita Brasileira, divulgado em outubro, com o tema “FEB e as eleições”, parece não ter conseguido atenuar a atuação de espíritas, em redes sociais e internamente nos centros, baseada naquilo que convencionou-se chamar “gabinete do ódio”; uma central que cria artes, vídeos, áudios e histórias falsas de acordo com a estratégia eleitoral. Cofrades oram de olhos fechados, mas apoiam a necropolítica.

A federativa, no texto, se restringiu às mensagens vindas do além túmulo; afirmou que não endossava “nenhuma manifestação espiritual, veiculada em quaisquer meios, em que se recomenda a escolha deste ou daquele candidato e conclama os espíritas ao bom senso de se avaliar os conteúdos das mensagens, recordando que não são as assinaturas de personalidades reconhecidas que lhes dão credibilidade, mas o seu conteúdo”.

Em seguida, a instituição convidou todos a ler mensagens de Emmanuel.

A FEB não abordou nada em relação a assédio político. Não disse nada sobre mensagens mentirosas que são espalhadas sem nenhum pudor. Não orientou algo que está no âmago dos fatos: o religiosismo messiânico político, importado do meio neopentecostal, que recriou a figura do salvador da pátria e da falsa luta do “bem contra o mal”.

Conversando com espíritas frequentadores de casas de várias regiões do Brasil, apurei que a “proibição” de falar de política abrange não falar sobre as mazelas do governo que se encerra neste ano, tais como o fim das políticas públicas, a destruição do estado democrático de direito, a disseminação do ódio, o assédio de quem pensa livremente. Tudo isso está proibido.

O que continua permitido é o culto a um falso profeta e uma luta ambígua na defesa da família e da pátria; em nome de um “deus” que pune, que escolhe quem é digno do seu amor, que não enxerga a fome e desnutrição de parte da população, que não quer e despreza uma sociedade plural. Um deus morto.

A história do feixe de varas, tão alardeada no meio espírita, uma metáfora àqueles que pregam a união, não sobrevive a simples análise. O feixe existe sim, mas somente com aqueles que professam a fé cega, em detrimento da razão, ciência e da filosofia. Aliás, para pegar um gancho em uma expressão da moda: “é disso que se trata”.

Religião! Uma constatação e uma oportunidade.

O incremento da religiosidade exacerbada nas casas espíritas, descontando suas origens, ganhou impulso nos últimos quatro anos de ascensão da extrema direita ao poder – incluídos aí dois anos de pandemia, com discursos e palestras antivacinas e curas milagrosas – no rastro da busca da pretensa perfeição, na ode aos “escolhidos” e no maniqueísmo “céu e inferno”. Na escolha de um inimigo; nesse caso, o campo progressista.

Na ambiência das casas espíritas, esquece-se da obra de Kardec, ignora-se o contraditório, apregoam que o centro espírita é uma escola, mas abominam o debate de ideias; dessa forma, ganham destaque no estudo e nas palestras somente os temas evangélicos, religiosos e de autoajuda, além de um leque de achismos baseados na redenção, em um formato medieval. O discurso de autoridade de quem “tem décadas” de espiritismo é vazio, com nenhuma aderência com a realidade.

Mas a oportunidade nesses tempos sombrios se impõe. Por mais que tenhamos, hoje, uma situação caótica, é dela que pode surgir um novo tempo. Laicismo, Democracia e Kardec devem se sobrepujar a tentativas dantescas de manipulação dentro das casas e instituições. A evidência da inviabilidade de um espiritismo como religião, templo ou igreja, fica claro para qualquer estudioso iniciante. A “redenção” sem trabalho é uma balela, não existem privilégios e o progresso é inexorável. Aliás, o que sempre atraiu novos adeptos à doutrina foi justamente sua dialética, a ausência de atributos salvacionistas, a abertura de pensamento. Foi isso o que fez o espiritismo florescer e se manter.

Usar a religião como forma de manipulação é uma das características dos regimes totalitários, como o fascismo. Está na hora da FEB e federativas estaduais implementarem campanhas educativas com vídeos, palestras, encontros e postagens para restituir o espiritismo em seu tríplice aspecto, no âmbito das casas espíritas, entre seus participantes. Não será com comunicados frios e impessoais que o movimento federativo alcançará essa demanda, mas com ações efetivas que resgatem o livre pensar de forma plena. A pergunta: é do interesse das federativas e suas regionais trilhar esse caminho?

Enquanto isso, devemos manter a atuação valorosa nas trincheiras do laicismo, o caminho aberto para compreensão integral a Kardec, com grupos e núcleos espalhados pelo Brasil, surgidos com inspirações em coletivos como esse ECK, que se destaca como um autêntico laboratório de ideias de vanguarda em relação à compreensão do espiritismo. O grupo Espiritismo com Kardec não se abstém de pensar a recriação de um movimento espírita democratico, plural, laico; que mantenha vivo o arcabouço da obra de Allan Kardec.

Esse próprio especial, “2023: laicismo, democracia e Kardec”, que avançará por todo 2023, cria oportunidades de trazer reflexões em relação à importância de reinvenção de uma ambiência espírita autêntica, sem medo do diálogo entre pensadores de diferentes matizes, mas com o compromisso de criação de novos paradigmas para enfrentamento das mazelas atuais e para o alvorecer renovador de um futuro próximo. Vamos nos ver muito por aqui.

Quanto ao meu amigo que saiu da casa espírita por causa do assédio, ele me confessou que nunca esteve tão bem e seguro do significado do espiritismo.

Manoel Fernandes Neto é jornalista e membro do conselho do ECK.

Foto pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “O assédio da extrema direita na ambiência das casas espíritas, por Manoel Fernandes Neto

  1. Aqui em SC, conversando com amigos de várias casas espíritas, a contaminação com as ideias bolsonaristas foi de grande monta. O afastamento de pessoas que contribuíram significativamente para a doutrina espírita, aconteceu na forma mais repugnante possível. Vamos ver o que vai sobrar após esta avalanche reacionária.

  2. Sendo bem contraditório e extremamente religioso – “Se faz necessário separar o joio do trigo”. Me afastei da casa espírita a que frequentei durante anos, estando inclusive presidente durante dois mandatos, há quem diga que eu era o joio, e de fato; eu era mesmo. Hoje observando tudo a distância, pois os laços continuam, o preciosismo sobrepõe-me a verdade, sendo o religiosíssimo, a autoajuda, etc.…instrumento de um brilhantismo mítico e acerbado. Infelizmente, dói demais ver os rumos a que a instituição e instituições espíritas seguiram. Por sorte, se é que existe, no ECK descobri que o espiritismo não está encerrado nas masmorras de uma Casa Espírita.

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