Lideranças espíritas e relações de poder, por Emanuel Antunes

Tempo de leitura: 7 minutos

Emanuel Antunes

O Espiritismo no Brasil se configurou e se configura por uma maneira plural de existência, na qual diversos projetos de doutrina concorrem para ocupar o centro das crenças. O Pacto áureo (documento assinado pelas lideranças espíritas de todo o Brasil, centralizando a prática espírita nas diretrizes da Federação Espírita Brasileira), assinado pelas Federações estaduais em 1949, garante uma unificação formal da religião no país, mas, como aponta Célia da Graça Arribas (UFJF), “estamos lidando com uma religião não apenas em vias de institucionalização, mas que, por seu sistema de crenças, permite a existência de várias formas de organização, de associação e de práticas, todas elas perfeitamente adjetivadas de espíritas”.

Na França do século XIX, a temática das mesas girantes passa a ser um dos assuntos mais comentados pela elite intelectual e econômica. Mesas, cadeiras, objetos diversos flutuavam e se comunicavam a partir de batidas e os espectadores, grande parte deles intelectuais e membros de uma classe privilegiada parisiense, se maravilhavam. Descrente de fenômenos paranormais, o pedagogo Denisard Hypolite Léon Rivail (mais tarde conhecido pelo pseudônimo de Allan Kardec) visitou uma dessas sessões onde mesas “falavam” com humanos e iniciou seus questionamentos referentes ao sobrenatural. O tempo transcorreu e Denisard concluiu que as mesas não tinham vida própria e que na verdade quem as movimentavam eram espíritos, homens e mulheres distantes da matéria, mas que mantiveram sua vivacidade após o túmulo. Rivail começou a codificar o que já na metade do século XIX seria conhecido como Espiritismo.

Proveniente de uma classe social adepta de um ideário influenciado pelos iluministas e positivistas, caminhando lado a lado à física social de Augusto Comte, o Espiritismo foi configurado como “uma ciência e uma filosofia moral que tinha como principais ideias: a existência de Deus, da alma, a possibilidade da comunicação com os espíritos e a reencarnação” . Os livros de Kardec já estavam nas livrarias a partir da década de sessenta do século XIX e este recebeu o título de codificador pelos seguidores espíritas, sendo reconhecido como liderança e autoridade maior nos debates científicos e filosóficos acerca da recém-divulgada doutrina. Foi esse mesmo Espiritismo, fincado em diretrizes científicas e adepto das interpretações sobre os fenômenos tidos até então como sobrenaturais, que chegou ao Brasil, aportando no Rio de Janeiro e em Salvador na segunda metade do século XIX nas malas de filósofos, sociólogos e historiadores, membros de uma elite intelectualizada europeia. Em 1860, o fundador do Colégio Francês, Casimir Lieutaud, traduz e publica a obra espírita “Os tempos são chegados” na cidade do Rio de Janeiro e, em Salvador, o líder espírita Teles de Menezes, no ano de 1865, funda o Grupo Familiar do Espiritismo, onde será realizada a primeira sessão espírita com registros escritos no Brasil . A partir daí, a codificação espírita passa por suas primeiras transformações. O caráter religioso que hoje se apresenta predominante na doutrina espírita no Brasil foi se constituindo nas interações iniciais entre os espíritas europeus e os primeiros adeptos brasileiros da doutrina. Assim, o cientificismo espírita passou a receber significados dogmáticos.

O termo “Espiritismo à Brasileira”, apresentado por diversos autores como Fábio Luiz da Silva e Sandra Jacqueline Stoll , se refere às novas interpretações atribuídas à doutrina kardecista entre os séculos XIX e XX no Brasil, como por exemplo a crença nos santos católicos como guias espirituais, algo que o espiritismo francês não estabelece. Além disso, apenas em 1949 se configurou uma primeira forma de centralização institucional e doutrinária nas mãos da Federação Espírita Brasileira. Ao longo do quase meio século que precedeu essa iniciativa, as organizações religiosas espíritas existentes no Brasil realizavam suas atividades a partir de concepções variadas. Hoje os centros espíritas filiados a Federação Espírita Brasileira devem seguir aquilo que foi definido nos embates durante o século XX, na teoria. Na prática observamos a existência de um espiritismo plural, principalmente por conta das decisões de seus líderes e serão eles o centro do nosso debate.

Sendo espírita ou não o brasileiro conhece Chico Xavier. Já ouviu falar sobre ele por uma tia, por um vizinho ou assistiu algum especial jornalístico tratando sobre o “fenômeno de Uberaba”. Chico Xavier é o médium mais proeminente em toda a História do espiritismo na América Latina, considerado por muitos adeptos da religião como a reencarnação de Allan Kardec. Francisco Xavier pode ser um dos exemplos mais práticos para entendermos o poder existente nas mãos do líder religioso espírita. O cristianismo, presente em grande parte das esferas da nossa sociedade, se enxerga como uma religião revelada, existente desde os primórdios da vida (no princípio era o verbo) mas vista por todos aos poucos, a partir de eventos específicos. O espiritismo brasileiro se pensa a partir desta lógica, por isso se autointitula de “o consolador”, aquela religião que veio para trazer a boa nova e a continuação dos ensinamentos do Cristo, sendo assim também uma religião revelada. O catolicismo existe a partir de um corpo dogmático definido nos concílios, nas encíclicas e nas cartas pastorais – ali se define a hierarquia da Igreja, suas crenças e aquilo que ela considera como heresia, isso encaminha um poder maior da Instituição sobre os seus representantes. A História da centralização do papado do medievo para a modernidade nos conduz a essa reflexão. Só que o espiritismo, principalmente o que acontece em nosso território, não estabelece dogmas. Ele acredita na continuidade da existência em outros planos espirituais, na reencarnação, na influência dos espíritos no plano material e na prática de virtudes cristãs, mas não cria limites na prática religiosa, isso possibilita mais autonomia e poder na figura do especialista religioso frente as Instituições. Em grande parte das casas espíritas o líder também é o médium, aquele que se comunica diretamente com os espíritos desencarnados, ele representa o sobrenatural e o canal de interação com entes queridos, espíritos que estabelecem ensinamentos ou com personagens históricos (Chico Xavier chegou a psicografar textos de Augusto dos Anjos e outros autores famosos em seu primeiro livro “Parnaso de Além tumulo”). O espiritismo está, nesta lógica, ainda vivenciando seu estágio de revelação, principalmente quando pensamos a literatura espírita.

Essa revelação constante é comandada pelos líderes e médiuns que são justificados pelos adeptos da religião. Os espíritas depositam nestes homens e mulheres um capital religioso muito forte, acreditam que eles estão em permanente comunicação com os mortos e que são orientados por estes guias desencarnados: ou seja, quando falam, não falam sozinhos. São homens de Deus e um canal direto com os espíritos evoluídos. Chico Xavier publicou mais de quatrocentos livros psicografados, todos estes atribuídos a espíritos de luz e com mensagens de fraternidade, união e progresso. Em “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”, publicado em 1938, o médium estabelece um discurso pautado na união nacional, na valorização dos símbolos pátrios e no flerte político com as ideologias em alta, como o integralismo, segundo ele o livro foi escrito por Humberto de Campos (Irmão X). Em 1971, no programa de televisão Pinga-Fogo da TV Tupi, o repórter Saulo Gomes questiona o médium sobre a ditadura militar vivenciada naquele momento no país da seguinte forma: “Que pensam os chamados benfeitores espirituais quanto à posição do Brasil atual, seja no terreno político e social?” Selecionamos um trecho da resposta de Francisco Xavier: […] sem qualquer expressão eufemística, declaremos que a posição atual do Brasil é das mais dignas e das mais encorajadoras para nós, porque a nossa democracia está guardada por forças que nos defendem contra a intromissão de quaisquer ideologias vinculadas a desagregação, precisamos honorificar a posição atual daqueles que atualmente nos governam…”. Ele segue por mais alguns minutos elogiando e defendendo a manutenção da ditadura. Chico estava, segundo o próprio, sendo auxiliado e orientado por seu guia, Emmanuel.

A opinião do líder religioso é dele e dos espíritos, do sobrenatural e do terreno. O especialista espírita preserva em si a imagem de uma ponte, capaz de transportar as verdades do mundo espiritual para os fiéis. No caso de Chico Xavier foi construído um processo de santificação, distante da burocracia católica romana mas bem próximo da religiosidade popular, que ignora fronteiras e realiza uma ressignificação do próprio ethos espírita. Chico é visto como Santo por centenas de brasileiros, seus predecessores como discípulos – é como se o poder do líder estabelece-se uma dinastia no interior da religião e assim urgem líderes da atualidade como Divaldo Pereira Franco e Carlos Baccelli, todos comprometidos com esse espiritismo institucional, ligada a FEB e continuador das obras de Francisco Xavier.

As relações entre estado e religião no Brasil sempre foram diversas, a posição da Igreja Católica durante o Império era a de religião oficial, a partir do século XX com a República, ela se reinventa, pensa novas formas de proselitismo e combate as ditas heresias. As encíclicas “Rerum Novarum” (Leão XIII) e “Fidei Donum” (Pio XII) reavaliam as atitudes da Igreja no mundo inteiro, no Brasil a influência exercida por esses dois documentos acentua a divisão interna do clero, entre conservadores e progressistas – o Estado e o catolicismo estão agora, ao mesmo tempo, em posição de amizade e em lugar de confronto, pois a Igreja é diversa. A “Fidei Donum” encaminha um combate por parte do clero contra o espiritismo, coisa que já existia, mas agora está no âmbito da legalidade. A Igreja exige que os padres firmem posição contrárias ao comunismo, ao espiritismo e ao protestantismo. Esses dois últimos conseguiram vencer o embate. O protestantismo hoje é a religião ascendente, que toma conta dos poderes do país, principalmente suas vertentes neopentecostais. O espiritismo se adaptou sempre que possível (durante o Estado Novo e durante a Ditadura militar os líderes espíritas estiveram em suposta posição de neutralidade, consequentemente, ao lado do status quo) e recriou suas práticas, na maioria das vezes a partir de seus especialistas.

A reflexão sobre essa religião na atualidade deve girar em torno destes homens e mulheres da fé, que preservam em si a especificidade de ser quem são e se comunicarem com estes planos espirituais invisíveis. Por preservarem um poder transcendental eles são agentes políticos ainda mais capacitados na compreensão de seus fiéis, para opinar e para pensar a realidade. As lideranças espíritas no Brasil estão revelando que mesmo sendo rechaçadas pelo conservadorismo (como foram durante todo o século XX), suas atitudes preservam o teor conservador de nossa sociedade. Como em toda religião os conflitos internos são característicos da prática espírita, mas fica perceptível, a partir da continuidade da tendência neutra nos assuntos políticos do cotidiano, que a ala conservadora vence no seio institucional do espiritismo. Vence e traz novos significados para as mensagens psicografadas, para os pronunciamentos de líderes consagrados e perpetua a atuação política por meio das questões simbólicos, dos discursos que fazem alusão ao patriotismo, nacionalismo e muitas vezes chegam próximos de tendências fascistas. Na década de 1930 não era de se surpreender encontrar uma imagem de Plinio Salgado sendo exposta na parede de um centro espírita, ao lado de Allan Kardec ou do próprio Jesus Cristo. Hoje, em meio a mensagens de fraternidade, amor e compaixão, podemos esbarrar em algum médium que defende o projeto de dominação do bolsonarismo e ainda justifique sua opinião a partir das recomendações de uma equipe espiritual. No estudo da História das religiões o líder espírita é um personagem que necessita de análises bem mais aprofundadas, que expliquem suas estratégias políticas, seu modo de existir no interior da religião e nas relações externas, para melhor compreendermos os efeitos de suas práticas e visões de mundo na construção das mentalidades sociais.

Nota do ECK:

O autor é Doutorando em História Social na UFF | Mestre em História (UFF) e Licenciado em História (UFPE).

Disponível em:

https://mimesiscast.medium.com

Imagem de Clker-Free-Vector-Images por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Lideranças espíritas e relações de poder, por Emanuel Antunes

  1. O autor do texto, foi delicado ao dizer que, algumas figuras conhecidas no Espiritismo são “quase” simpáticos ao fascismo. Na verdade, são facistas declarados. Tanto um, como outro, embora se odeiem. Na íntegra, o texto não poderia ser mais lúcido e verdadeiro. Parabéns!

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