Espíritas fora do prumo, por Marcelo Teixeira

Tempo de leitura: 8 minutos

Espíritas fora do prumo

Marcelo Teixeira

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O Espiritismo é progressista. Não dá para se colocar, ao mesmo tempo, como uma pessoa conservadora e se dizer espírita. Conservadores são aqueles que querem conservar tudo do jeito que está porque convém a eles. Isso é um contraponto às propostas de Jesus e Kardec.

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A cidade de Petrópolis, na Região Serrana do RJ, sediou, no início de maio de 2024, a primeira edição do Festival Literário Internacional de Petrópolis (Flipetrópolis), que lotou os jardins do Palácio de Cristal, um dos pontos turísticos mais bonitos da Cidade Imperial.

De 1 a 5 de maio, um público ávido por informação, cultura e debates de cunho progressista compareceu em massa, não deixando vazios os auditórios montados para a ocasião, muito menos a livraria, que permaneceu lotada por todo o evento. Isso sem falar nas longas filas que o público enfrentou para conseguir um autógrafo dos escritores convidados, que foram muitos e de significativa importância.

Falo de nomes como Jefferson Tenório, vencedor do Prêmio Jabuti 2021 pelo incensado “O avesso da pele”; Conceição Evaristo, primeira mulher negra a fazer parte da Academia Brasileira de Letras (ABL) e uma das mais festejadas intelectuais da atualidade; João Cândido Portinari, engenheiro, filho do famoso pintor homônimo e autor do elogiado “Arquitetura e urbanismo – Comunicação e artes”; Rosiska Darcy de Oliveira, igualmente imortal da ABL e conhecida na luta pelos direitos das mulheres e pela liberdade de expressão, entre outras frentes; Itamar Vieira Júnior, geógrafo e autor do aclamado e muito premiado romance “Torto arado”; Ana Maria Machado, ativista social desde os tempos da ditadura e festejada escritora com obras voltadas tanto para o público adulto como para o infanto-juvenil; Ailton Krenak, que além de poeta e escritor, é uma das maiores lideranças indígenas do país e recém-empossado na ABL; André Trigueiro, respeitado jornalista e ativista ambiental e autor de livros como “Viver é a melhor opção”, “Mundo sustentável”, “Cidades e soluções: como construir uma sociedade sustentável”…

Também marcaram presença os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso e Carmem Lúcia, que falaram sobre direitos humanos, liberdade de expressão, defesa do Estado Democrático de Direito, entre outros tópicos que precisam ser abordados neste Brasil que ora vivemos. Conduzindo os debates, jornalistas como Sérgio Abranches, Flávia Oliveira, Jamil Chade e Miriam Leitão.

Houve também a programação infanto-juvenil em homenagem à escritora Sylvia Orthoff, apresentações musicais, batalhas de rimas e de slam, bem como debates com escritores locais e internacionais, como a ruandesa Scholastique Mukasonga, convidada especial. Scholastique é a única sobrevivente de uma família que foi toda dizimada quando do genocídio em Ruanda, em 1994. Ela pertence à minoria tutsi. Uma mulher que tem muito a dizer, escrever e denunciar. Um exemplo de vida e resistência por meio da literatura.

Os temas abordados foram vários. Impacto da inteligência artificial no ofício de escrever, reparação histórica devida ao povo negro, dignidade humana para refugiados, inclusão social, respeito à natureza, preservação da memória… Enfim, uma lista rica e diversificada, que intensificou a necessidade de mergulharmos cada vez mais fundo nesses assuntos para construirmos uma sociedade livre, democrática, tolerante, plural, sustentável e com pleno acesso à educação e cultura. Palavra de quem acompanhou o evento atentamente.

Tudo isso e muito mais levou ao Palácio de Cristal um público de cerca de 40 mil pessoas, que tomaram um banho de cultura, informação, diversidade, lucidez e encantamento. E gratuitamente, diga-se de passagem.

Dias depois do fim da Flipetrópolis, uma amiga igualmente espírita e progressista me enviou uma postagem em que Delúbio, reacionário integrante do movimento espírita local, fez nas redes sociais. Abraçado a um artista circense (no caso, o palhaço Chicó) que compôs a programação do evento, Delúbio deu nota 10 a ele e zero às “autoridades” (as aspas são dele) que discursaram no I Festival Literário Internacional de Petrópolis. Na opinião dele, o evento foi “um palanque armado para a esquerda e seus formadores de opinião”.

Em primeiro lugar, foi desonesto Delúbio utilizar um palhaço como “escada” para destilar seu ódio a um evento literário ao qual nem deveria ter comparecido. Mesmo porque, muito provavelmente Chicó estava no evento não só ganhando o pão de cada dia, mas também porque, como artista que é, comunga das ideias e ideais que a Flipetrópolis trouxe à baila. Chicó, embora seja um palhaço circense, não merecia ter “sido feito de palhaço” (agora, no sentido pejorativo, claro), quando Delúbio o procurou para tirar uma foto. Ele utilizou um artista da festa literária para aviltá-la. A isso, damos o nome de falta de caridade. E também de educação, civilidade, cultura etc.

Delúbio é uma espécie de símbolo local do que boa parte do movimento espírita dito federativo se tornou: um valhacouto de gente de classe média branca, conservadora, inculta, preconceituosa, avessa ao debate progressista e enamorada de ideias totalitárias. Aquele tipo de cidadão que julga haver uma trama internacional para implantar o comunismo no Brasil, entre outras tolices. Não à toa, era comum ver Delúbio junto a seus pares na Praça D. Pedro (a mais conhecida de Petrópolis) pedindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff, fazendo campanha para Bolsonaro e também acampado, dias a fio, em frente ao quartel do Exército, clamando por intervenção militar quando Lula venceu o pleito de 2022.

Organizada e divulgada pelo francês Allan Kardec em meados do século 19, a Doutrina Espírita é, em essência, progressista. Ela se alicerça na imortalidade da alma e na sobrevivência do Espírito após a morte do corpo físico para mostrar que voltaremos à vida física (reencarnaremos) quantas vezes necessário for e que precisamos acompanhar o progresso das ciências exatas e humanas, a fim de construirmos uma sociedade cada vez mais articulada e engajada nas lutas por dias mais justos e equânimes. Dias estes que resultarão em livre acesso à cultura; ao lazer; à informação; ao trabalho, ao salário e à moradia dignos; à saúde e educação em níveis de primeiríssima qualidade… Enfim, um mundo onde todos possam ter pleno acesso a tudo e no qual todas as pessoas atuarão pelo bem-estar de todos. Por isso, o Espiritismo é, enfatizo, progressista. Não dá para se colocar, ao mesmo tempo, como uma pessoa conservadora e se dizer espírita. Mesmo porque, conservadores são aqueles que querem conservar tudo do jeito que está porque convém a eles. Isso é um contraponto às propostas de Jesus e Kardec.

Por que será, então, que vemos tantos espíritas insistindo em engatar a marcha-a-ré quando o assunto é oportunidades iguais para todos, justa distribuição de renda e afins? Há algumas evidências. Tentemos contextualizá-las.

A jornalista, pesquisadora e educadora Dora Incontri, no livro “Para entender Allan Kardec”, expõe como um dos fatores o fato de o caráter do brasileiro ter sido formado sob forte influência religiosa (leia-se católica e conservadora) e fraca tradição científica e acadêmica. Tanto que, diferentemente de outros países do continente americano, que tiveram suas primeiras faculdades criadas nos séculos 16 e 17, o Brasil só foi ter instituições de ensino superior no século 20. Isso quer dizer que somos vítimas de um baita atraso quando o assunto é desenvolvimento do pensamento científico e filosófico. Nosso ensino de base, por sua vez, não é dos melhores. Enfrenta problemas como falta de professores, baixos salários, escolas mal equipadas, evasão escolar etc. Além disso, os alunos que conseguem entrar para as universidades são, em geral, filhos da classe média e optam por cursos como administração, engenharia, medicina, contabilidade, odontologia e similares das áreas biológicas e exatas, os quais costumam enfatizar o ensino da área em que os futuros profissionais atuarão. Nem sempre, portanto, há a preocupação em estudar disciplinas fundamentais para que entendamos a natureza humana, bem como o fato do porquê de o brasileiro ser como é. Falo sobre história, sociologia, teoria política, antropologia e língua portuguesa, entre outras que deveriam constar da grade curricular de todo e qualquer curso universitário, do primeiro ao último ano. É a base humanista fundamental.

Outro fator seria a lamentável herança escravagista que ainda rege o nosso comportamento. Vide os inúmeros casos de racismo e aporofobia (ódio ao pobre) que sempre são denunciados pela grande mídia. Por essa razão, todo governante que trabalhar pela ascensão social das classes menos favorecidas será atacado por todos os flancos. Sempre haverá uma classe média branca, ruidosa e moralista, que irá levantar as bandeiras do combate à corrupção e à dissolução dos costumes para que governos conservadores, truculentos e nada comprometidos em melhorar a vida dos mais pobres assumam o poder. Foi assim quando do suicídio de Getúlio Vargas, no golpe militar de 1964 e no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, fato este que levou à ascensão de uma tosca figura de extrema direita, que subiu a rampa do Palácio do Planalto em 2018, referendada, inclusive, pelo voto de vários espíritas. Um total contrassenso!

Sobre essa faceta da personalidade do brasileiro, o sociólogo Jessé Souza tece importantes considerações em duas excelentes obras: “A elite do atraso” e “Como o racismo criou o Brasil”. Jessé deixa a questão bem clara quando se refere aos “branquinhos histéricos” que tomaram as ruas de todo o país vestindo a camisa da seleção brasileira para bradar contra a suposta corrupção dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Esse mesmo grupo, todavia, se mantém em silêncio quando a corrupção diz respeito aos partidos de centro ou direita. Os branquelos convivem muito bem com ela, obrigado. É uma tolerância complacente. Essa suposta indignação nunca foi, portanto, contra a corrupção, mas o resultado do ódio secular que o branco tem em relação aos negros e também aos brancos que não conseguiram ascender socialmente. Mesmo que um governo de esquerda seja pra lá de exitoso, mesmo que as elites tenham lucros exorbitantes e mesmo que tal governo nem de longe mexa no sagrado direito à propriedade privada, sempre haverá o ódio arcaico da casa grande, que não quer ver a senzala com os mesmos benefícios e oportunidades que ela possui.

Como bem ressalta Dora Incontri, esse conservadorismo social e político, no movimento espírita federativo (onde a classe média branca que se acha rica predomina), “se manifesta em forma de assistencialismo acrítico e de adesão a políticas de direita […] procura-se ajudar a quem precisa, dentro do espírito de caridade cristã, mas raramente há um questionamento das estruturas econômicas e sociais, do sistema de exploração vigente, das injustiças que geram a miséria, a fome e a ignorância. Não se quer uma mudança real, apenas se alivia o sofrimento decorrente das injustiças, como um paliativo que alivia a consciência das classes privilegiadas”.

Trazendo esse texto para a agitação do dia a dia, nos deparamos com Delúbio, que se diz espírita, mas pelo visto não prima pelo estudo aprofundado das obras de Allan Kardec, não se interessa por cultura geral, se julga um megaempresário só porque possui uma pequena empresa, luta pela manutenção dos privilégios que crê possuir, pratica a caridade até a página dois e tem o desplante de ir à primeira edição da Flipetrópolis não para participar dos debates e tentar se ilustrar, mas somente para dar uma volta no jardim, utilizar um artista para fazer uma postagem ofensiva ao evento e criticar a obra e a postura de nomes como Itamar Vieira Júnior, Conceição Evaristo, Aílton Krenak, Rosiska Darcy, Jamil Chade e Jeferson Tenório sem sequer se interessar pelo que eles têm a dizer.

Em “O livro dos Médiuns”, Allan Kardec enfatiza, no cap. 31, item 9: “Espíritas!  amai-vos, eis o primeiro ensinamento; instruí-vos, eis o segundo”. É necessário, antes de tudo, amar, isto é, respeitar as diferenças, conviver com a diversidade de ideias, vertentes religiosas, etnias, culturas e orientações sexuais. Em seguida, é vital que nos instruamos uns aos outros, o que significa trocar conhecimentos, dividir experiências e estarmos abertos à necessidade que o mundo possui de mudar incessantemente, abandonando ideias fechadas e reacionárias e mostrando-se aberto aos debates que visam formar cidadãos de mente aberta, livres de preconceitos, falsos temores, ódios seculares e concepções ultrapassadas.

Muitos espíritas fariam um grande bem a si próprios e a outras pessoas se estivessem dispostos a sair do casulo e lerem livros fora da literatura espírita. Era o que Kardec fazia com frequência na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Afinal, e eu já disse isso outras vezes, de nada adianta sermos catedráticos em vida espiritual, reencarnação, mediunidade e completos apedeutas em matéria de geopolítica, meio ambiente, combate ao racismo e à homofobia, povos indígenas, formação da cultura e da identidade brasileira etc. É o que infelizmente acontece com frequência. Embora o Espiritismo seja uma corrente de pensamento moderna que dialoga com o progresso social e científico, muitos de seus profitentes se limitam a um moralismo raso e conservador. O resultado é gente que se diz espírita achando que a ameaça comunista paira no ar, que as famílias estão sendo encurraladas pelos homossexuais, entre outras sandices. Resultado: acabam elegendo candidatos com discursos ultrapassados e pautas cruéis.

O Espiritismo existe para lutarmos por justiça social e dialogarmos com o mundo à luz da imortalidade da alma. Caso contrário, seremos apenas mais um grupo religioso fechado em copas que, por falta de cultura geral, reproduz o modus operandi da classe média inculta e arrogante que a nossa acidentada história formou. Delúbio e seu papelão na I Flipetrópolis estão aí para afirmar isso.

FONTES:

INCONTRI, D. Para entender Allan Kardec. 3. Ed. Editora Comenius, Bragança Paulista, SP, 2024.

KARDEC, A. O livro dos médiuns. 20. Ed. Trad. Herculano Pires. São Paulo: LAKE, 1998.

OLIVEIRA, R. P. Por que as elites brasileiras odeiam Lula? Disponível em <https://jornalistaslivres.org/por-que-as-elites-brasileiras-odeiam-lula/>. Acesso em 10. Mai. 2024.

SOUZA, J. A elite do atraso. 2. Ed. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.

_____. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

3 thoughts on “Espíritas fora do prumo, por Marcelo Teixeira

  1. Marcelo Teixeira, você foi muito feliz em suas colocações porque apontou exatamente o que vemos no dia a dia de nossa existência. Participo do movimento espírita a muitos anos e já tive a oportunidade de acompanhar embates interessantes no campo das idéias conservadoras e progressistas. Sei que é um questão de tempo que estes ditos conservadores irem murchando suas teorias, mesmo porque as gerações irão se sucedendo. Hoje eu já vejo muitos levantando novas bandeiras confrontando o ranço derivado do espírito conservador e que não mais terá espaço em novas rodas de discuções sobre a espécie humana. Parabenizo sua bela colocação sobre um evento cultural tão importante mesclado com um pagajoso cidadão que se diz espírita.

  2. Excelente registo sobre a situação de um país que é grande e que tem gente grande dentro dele, apesar dos contratempos , criados pela gente pequena que só olha para o seu próprio umbigo. Se pensarmos bem, não é só no Brasil, é o que se passa no Mundo, com mais ou menos precisão. Tenho esperança na juventude que pensa e não se deixa convencer pelas falácias. Sou optimista.

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