Faz Política quem vai, e quem fica, por Célia Aldegalega

Tempo de leitura: 7 minutos

Célia Aldegalega

Se Rivail-Allan Kardec estivesse agora encarnado na Terra, seria de esquerda, ou de direita? E Jesus de Nazaré, foi de esquerda?

“Quando bem compreendido, se houver identificado com os costumes e as crenças, o Espiritismo transformará os hábitos, os usos, as relações sociais.”

Erasto, em resposta à questão 917, de “O livro dos Espíritos”, de Allan Kardec.

Para começo de conversa, a expressão foi alheia a Jesus, mas não terá sido a Rivail-Kardec, já que a sua origem remonta ao período revolucionário francês, apenas para designar os lugares no parlamento onde se sentavam os políticos, sendo que os simpatizantes do Antigo Regime, se sentavam à direita do presidente do parlamento, e, logo, os revolucionários, à sua esquerda, por exclusão de partes. O século XIX viu a emergência de ideologias chamadas de esquerda, primeiro abrangendo republicanismo, socialismo, comunismo e anarquismo; na atualidade é extensível, sumariamente, a movimentos ambientalistas e sociais, defensores de direitos humanos, ativistas de todas as causas. O que é forte indício da conveniência em refletir sobre o significado desta amalgamação sob a mesma expressão, de todos os movimentos que se oponham a algo instituído e/ou sigam uma agenda de transformação.

As filosofias marxistas-leninistas vieram a impelir movimentos políticos, que por sua vez produziram embates sociais, que pressionaram o poder político e financeiro à negociação. O contexto da emergência dessas filosofias e desses ideários políticos, é o das duas revoluções industriais do “carvão” e do “aço”, com a emergência de um segmento social a que esses mesmos movimentos chamaram operariado. Se queremos ser historicamente assertivos, e corretos, temos que admitir ser por força da ação dessas ideologias, que, na atualidade, grande parte de nós beneficia de direitos laborais. O que seria motivo para gratidão, a amenizar qualquer antagonismo ideológico descambado em esquerdofobia.

Não foi por coincidência – porque não há coincidências – que o Espiritismo surgiu na segunda metade do século XIX. Na sequência da Revolução Francesa, e do Iluminismo, o século XIX inicializou um processo de transformações sociopolíticas, culturais, científicas, e econômicas, que impactaram o desenvolvimento da humanidade, como nunca antes. E ninguém duvida que o século XX foi aquele em que a humanidade avançou mais e rapidamente, em tecnologia, em ciência, em consciência de igualdade e justiça social, económica, de gênero, racial, etc., ainda que muito esteja por fazer, e que os avanços sejam desiguais, e as aquisições tecnológicas e científicas gerem efeitos secundários que demandam vigilância. Nada, aliás, que deva surpreender os espíritas, já que corresponde ao processo evolucionário. Fechemos os olhos e consideremos quanto ocorreu em apenas dois séculos, por comparação ao ocorrido na história moderna da humanidade. Passos de gigante, prosseguindo numa acelerada evolução tecnológica e científica, desafiadora da moral, para quem for de moral, ou da ética, para quem for de ética.

Rivail encarnou sob a égide do famoso lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, fundacional de todas as democracias modernas, cuja criação remonta a FÉNELON (o clérigo nascido François de Salignac de La Mothe, Duque de Fénelon), sendo particularmente associado à sua obra “As Aventuras de Telêmaco” (1699), a viagem do filho de Ulisses ao encontro do pai, na companhia e sob orientação e proteção de Minerva, disfarçada de Mentor (soa familiar?). Inspirado na “Odisseia”, de Homero, escreveu-a para instruir o neto de Luís XIV nas artes de governar, mas a obra caiu mal ao avô, que o acusou de conspiração contra o seu reinado. Meio século depois, Fénelon seria considerado o arauto da Revolução Francesa.

Vale a pena mapear as intervenções deste Espírito nas obras fundamentais do Espiritismo (além de várias entradas na “Revista Espírita”). Vamos a elas.

Em “O livro dos Espíritos”, ele assina os Prolegômenos, juntamente com a equipe de Espíritos dinamizadores e mentores do Espiritismo. A resposta à questão 917 (“Qual o meio de destruir-se o egoísmo?”), é sua, e cite-se: “Quando bem compreendido, se houver identificado com os costumes e as crenças, o Espiritismo transformará os hábitos, os usos, as relações sociais”.

Em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, discursando acerca da terceira revelação e da revolução moral do homem (cap. I, 10), tem-se: “A nova cruzada começou: apóstolos da paz universal, e não da guerra, modernos São-Bernardos, olhai para a frente e marchai! A lei dos mundos, é a lei do progresso”; depois, sobre o homem de bem e os tormentos voluntários (cap. V, 22 e 23); adiante, acerca da lei de amor (cap. XI, 9), citando-se: “[…] ora, qual é o limite do próximo? Será a família, a seita, a nação? Não! É toda a humanidade! […] E o vosso planeta, destinado a um progresso que se aproxima, para a sua transformação social, verá seus habitantes praticarem essa lei sublime, reflexo da própria Divindade”; finalmente, dois textos, um sobre o ódio (cap. XII, 10) e outro tratando do emprego da riqueza (cap. XVI, 13).
Contido em “O livro dos Médiuns”, no capítulo das “Dissertações Espíritas” (XXXI, 2.ª parte, itens XXI e XXII), disserta sobre reuniões espíritas e a multiplicidade e as potenciais rivalidades dos grupos espíritas.

Rivail encarnou no país que produziu a “Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão” (e evoque-se a sua contrapartida feminina, a muito desconhecida, “Carta dos Direitos das Mulheres e Cidadãs”, de Olympe de Gouges, datada de 1791), que é, nada menos, nada mais, do que a laicização dos preceitos morais das religiões, assim transpostos para ética universal. Inspirada no Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau, é o “rascunho” da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, pós II Guerra Mundial, que muita gente precisaria reler com a maior urgência, se é que alguma vez leu.

Rivail, discípulo de Pestalozzi que foi influenciado e inspirado por Rousseau, educador de toda uma vida, estruturou uma doutrina condizente com a sua época, seminal para uma humanidade em vias de produzir, beneficiar, encarar e vivenciar os desenvolvimentos e desafios que se seguiriam. Uma humanidade pronta para acolher a transcendência dissociada da crendice e do dogma, disponível e capacitada para começar a apreender, pela descodificação científica e racional, a naturalidade da fenomenologia até então taxada como sobrenatural. Uma humanidade ciente dos seus direitos inalienáveis, em transição para alcançar condições mais favoráveis de desenvolvimento material e moral.

O mais singelo dos espíritas, como eu sou, sabe que a ampliação da consciência é processo individual sujeito a contingências, influências, circunstâncias, determinantes para as decisões próprias do exercício do livre-arbítrio. Esses itens e o modo como lidamos com eles, fazem toda a diferença. Encarnar no Brasil ou em Portugal entre o século XX e o XXI, não é a mesma coisa. Que o enquadramento socioeconómico e cultural seja favorável, ou desfavorável, complica ou descomplica. Apesar de todas as particularidades e idiossincrasias, somos seres sociais. Sejamos da moralidade ou da ética, da caridade ou da solidariedade, do amor ao próximo, ou da empatia, estamos, quer queiramos ou não, todos ligados, todos dependemos de outros. Cada ação alheia nos atinge, ou nos resgata. Nos atrasa, ou nos impulsiona. Nos estimula, ou nos adormenta.

Encaro dois enigmas no pensamento espírita: 1) As nossas experiências de espíritos materializados na Terra, são opções, necessidades ou imposições? E, 2) A experiência material é, na essência, educativa ou purgativa? Se acharmos que, à primeira questão, a resposta é imposições e, à segunda, purgativa, então todos estão tendo o que merecem. Todas as vítimas já foram algozes e estão colhendo o que plantaram. Além de um tanto cínicos, e algo falhos em compaixão, legitima-se o sofrimento, a injustiça, a desigualdade, contraditando até o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, porventura o texto mais evoluído produzido por humanos terrenos.

Os nazis foram culpados da guerra, do genocídio, da eugenia, e das inadmissíveis atrocidades, mas a responsabilidade é partilhada por todos aqueles que os consentiram. Os nazis não fizeram um golpe de estado; foram eleitos, é preciso recordar! Neste momento tumultuado, em que o mundo se angustia ante a evidência da fragilidade da espécie, do corpo físico derrubável por um micro-organismo invisível ao olhar, na era do Antropoceno, em que a humanidade é predadora dos recursos naturais do Planeta, e sua eventual extinção, emergem velhas agendas de extrema-direita, e a história ameaça repetir-se, está se repetindo em muitos lugares. Não agir, não falar, é consentir. Faz política quem vai (intervém), e quem fica (na sua).

Talvez fosse cordato desvincular-nos da polaridade esquerda-direita, redutora.

Espíritas são da esquerda, ou da direita? Seguramente são do progresso, elemento basilar da filosofia espírita. Se as ideias progressistas são mais próximas dos ideários ditos de esquerda, é que, na sua essência, a letra desses ideários é progressiva. Muitos foram e continuam sendo os que distorceram e distorcem ideologias, acomodando-as a seu bel-prazer, praticando o mal intrínseco que dimana da sua embriaguez egoica. Frequentemente, também, as argumentações são individualistas, evocando experiências pessoais, apresentadas como razões para estar do lado, ou rejeitar, líderes antagónicos entre si, reduzindo o debate a uma polaridade que compromete o alargamento da visão a outras potenciais opções.

A pedra-de-toque universal, que independe de crenças, culturas e política, é o “catecismo laico” expresso na tal Declaração Universal dos Direitos Humanos, e todo aquele dirigente político que a descumpre, mereceria ser veementemente rejeitado por adeptos e praticantes do progresso. Rejeitar um tirano, não se restringe a mero ato político, é humanismo e impulso evolutivo. Consenti-lo, é o reverso. Aclamá-lo, é desumano e regresso.

Se Kardec se pronunciou negativamente sobre a política nos centros espíritas, tal se deveu à tumultuada fase sociopolítica, em França, e por toda a Europa. A Revolução Francesa resultou crucial para a evolução da humanidade, ateou um rastilho que despoletou uma “revolução mundial” conhecida como “A Primavera dos Povos”. Em França: Revolução de 1830; Revolução de 1848; golpe de Estado em 1851, em que Luís Napoleão Bonaparte se autoproclama imperador, um regime autoritário que vai concedendo liberalidades precisamente sob pressão social. Este o contexto político de Allan Kardec e do surgimento do Espiritismo. O pronunciamento de Allan Kardec é o argumento mais recorrente da parte de todos os espíritas que escolhem ficar no cimo do muro. Mas, a que propósito esses movimentos revolucionários convulsionam, liderados e nutridos por almas a que tantos gostam de chamar espíritos missionários? Porque não esperarmos placidamente que todos atinjamos a condição de espíritos evoluídos? Qual será, então, o objetivo final do processo de transformação individual, se não é a evolução coletiva? Se a tal transição planetária tem fundo de verdade (com data ou sem ela, com ou sem moratória…), como preconizam a sua concretização os detratores da intervenção sociopolítica de espíritas? A quem cabe a responsabilidade da evolução do Planeta, se não a todos os espíritos nele encarnados? E os que têm conhecimento e não dinamizam, sequer inspiram, mudanças no mundo, não serão mais responsáveis do que os que ignoram?

Os humanos terrenos têm demonstrado uma “habilidade inata” para o sectarismo, valorizando as diferenças e os diferendos, em detrimento das proximidades e do interesse comum. Daí o ruído de esquerdopatas e esquerdofóbicos, daí a fricção de espíritas esquerdofóbicos, com ou sem consciência de o serem, com aqueles que advogam um papel ativo do Espiritismo junto das sociedades, inspirando e promovendo a mudança. A crer no que acham certos espíritas, a doutrina seria privilégio de minorias luminares, ocupadas consigo mesmas, resumindo a sua parte na mudança do mundo ao ensimesmamento, limitando-se a prodigalizar assistencialismo, investindo moedas, preces e algum tempo livre. E, enquanto isso, figuras de referência do Espiritismo alinham-se publicamente com líderes malformados, que promovem, mal influenciando.

Quanto a Jesus, seria catalogado à esquerda, já que o termo passou a designar sumariamente todo aquele que se oponha ao poder instituído, à injustiça, à tirania, a todo o contestatário em geral, a todo o agente de mudança. Ironicamente, foi executado por crime de sedição, execução política, por equívoco, desentendimento do sentido de “o meu reino não é deste mundo”, ou por ter sido tomado pelas autoridades como mais um dos muitos autoproclamados messias hebraicos, aspirantes ao poder temporal e divino. Ou talvez não, talvez afinal, os decisores tivessem antevisto a profunda transformação que seguir as orientações do palestiniano de Nazaré poderia trazer ao mundo.

Na dúvida, de que lado estaria Jesus?

Imagem: Pixabay

Acesse os textos da edição em cada link:

Faz Política quem vai, e quem fica, por Célia Aldegalega

O Espiritismo e a legítima luta por um mundo melhor, por Manoel Fernandes Neto

Por que o espírita deveria ser apolítico? por Nícia Cunha

Devemos participar das políticas públicas?, por Geylson Kaio

A Política em moldes espíritas, por Raimundo de Moura Rêgo Filho

A imersão política na essência ética, por Nelson Santos

Participar para evoluir!, por Leopoldina Xavier

 

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