Jesus Crucificado: O Farisaísmo no Movimento Espírita, por Wilson Custódio Filho

Tempo de leitura: 6 minutos

Wilson Custódio Filho

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O farisaísmo espírita é sutil, mas corrosivo. Ele se esconde atrás de reuniões bem organizadas, de discursos eloquentes, de eventos beneficentes que não tocam a alma. E, assim, Yeshua é novamente crucificado — não por ignorância, mas por vaidade, por medo da verdade que exige renúncia, revisão e autenticidade.

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Introdução

“Mas ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais, nem deixais entrar aos que estão entrando” (Mateus 23:13). [1]

Hoje despertei assim — estranhamente cristão. Reflexivo, veio-me à memória a passagem evangélica acima transcrita 23 que, para os de bom senso, ressoa como um manifesto moral e ético. De fato, quase um plano de reeducação sociopolítica, religiosa-educativa e cultural para os dias atuais. Para outros, porém, ecoa como heresia — propostas necessárias, mas ainda distantes da realidade existencial dos homens. Por vezes consideradas desnecessárias por alguns (ou muitos!) — justamente por exigirem esforço, desconforto e mudança.

Nesse clima de verdades indigestas, refletidas no capítulo em questão, é certo que, se Yeshua surgisse hoje, seria cancelado — nas redes sociais, nas igrejas em geral e, sim, nos CENTROS ESPÍRITAS, onde o estudo virou formalismo, o acolhimento tornou-se protocolo e até os gestos cotidianos perderam a espontaneidade.

Sua presença, aliada ao verbo desafiador e sem concessões, incomodaria não apenas os sistemas religiosos e políticos — poderes institucionais e ideológicos que perpetuavam injustiças, algo muito presente na cultura judaica da época, sob domínio romano, e ainda na atual — mas também aqueles que, em nome da espiritualidade, se afastaram da simplicidade e da coerência que o evangelho propõe: “Amai uns aos outros como eu vos amei.”

A proposta de Kardec

Allan Kardec, ao codificar o Espiritismo, não o fez para criar mais uma estrutura religiosa, mas para oferecer uma ferramenta de esclarecimento e transformação moral. Em “O evangelho segundo o Espiritismo”, ele afirma que “reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que faz para domar suas más inclinações” [2]. Essa proposta exige coragem, lucidez e ação — não apenas estudo ou discurso.

Por isso, causa espanto ouvir, com frequência, a repetida máxima entre os espíritas: “Falta estudar o Espiritismo!”. Como se o estudo, por si só, teórico, fosse suficiente para garantir coerência, ética e vivência espiritual. A grande maioria dos desvios não nasce tão só da ignorância, mas da cátedra espírita — onde o saber virou palanque, e o conhecimento doutrinário, instrumento de vaidade. O estudo tornou-se égide, não espelho. E assim, o evangelho é citado, mas raramente vivido.

Farisaísmo e vaidade espiritual

Homens de pouca fé — bate-se no peito e se glorifica diante dos céus: “Eis-me aqui, Senhor. Vosso servo fiel, bem sabeis — ainda que dita no inconsciente — que não sou como esses publicanos”.

Essa postura — sutil, quase sempre inconsciente e, por vezes, tendenciosa — revela traços existenciais que se perpetuam ao longo da jornada do Espírito, encontrando abrigo em estruturas que preferem o brilho da aparência à luz silenciosa da sabedoria vivenciada.

É aí então que a disputa pela liderança no movimento espírita dá forma aos seus sacerdotes — e sustenta, em torno deles, os que preferem a segurança da forma à inquietação da verdade.

Exemplos clássicos disformes, que ligam o passado ao presente, acendem um alerta para o futuro do Espiritismo. Entre eles o fato de que os expositores disputam espaço para falar, priorizando títulos e currículos, enquanto evitam temas desafiadores ou autocríticos. Na tribuna, em vez da coragem do profeta, ergue-se a vaidade do doutor.  O público se contenta com o aplauso; o expositor, com o título. Ambos se afastam do Evangelho vivo. 

Muitas vezes, assim, a tribuna se transforma em vitrine de erudição, onde o objetivo é impressionar, e não transformar. O resultado é um distanciamento entre o expositor e a plateia, que sai sem reflexão ou motivação para um despertar ético.

Naquele tempo, pães e peixes saciavam multidões sem distinção — plebeus, soldados, membros da corte — todos acolhidos sob o olhar do Nazareno. Hoje, cestas básicas e ações assistenciais seguem seu curso justo, mas a distância entre as classes não apenas persiste: tornou-se parte do cenário, naturalizada pela rotina institutional espírita — tudo isso tutelado pelo verniz da caridade.

O Farisaísmo no Movimento Espírita

O farisaísmo não é uma figura do passado. Ele sobrevive, disfarçado de zelo doutrinário, de autoridade moral e de aparente fidelidade aos princípios. No movimento espírita, ele se manifesta quando o estudo vira ritual, o acolhimento se torna protocolo e a caridade se converte em evento.

Há, então, uma crescente preocupação com a forma, com o discurso correto, com a aparência de espiritualidade — enquanto a essência espírita, de base científica, filosófica e moral, aquela que esclarece, liberta e transforma, vai sendo esquecida.

Yeshua — o homem, e não o Cristo teológico — denunciou os fariseus por limparem o exterior do copo, enquanto o interior permanecia impuro. Hoje, muitos CENTROS ESPÍRITAS parecem repetir esse padrão: priorizam a imagem pública, a estrutura organizacional, os títulos e cargos, mas negligenciam o compromisso íntimo com a reforma moral e com o Evangelho Redivivo.

A fé raciocinada, proposta por Kardec, tem sido substituída por uma fé protocolar, onde o estudo é mecânico e a prática, condicionada por conveniências. Isso quando não se promove uma verdadeira miscelânea, deturpando e distorcendo princípios basilares da Doutrina dos Espíritos em nome de ideologias pessoais.

O verdadeiro espírita, no entanto, é aquele que se aprofunda nos estudos, pesquisa, observa, renova-se e debate — sem perder o filtro da consciência, nem o respeito às diferenças, sobretudo no campo social, no ambiente familiar, na própria casa espírita e no movimento que escolheu servir.

Vale recordar que o conselho de Erasto, em “O livro dos Médiuns”, permanece atual e necessário: “Ao aparecer uma nova opinião, por menos que vos pareça duvidosa, passai-a pelo crivo da razão e da lógica. O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente” [3].

Esse comportamento, embora sutil, revela um risco maior: o de que o Espiritismo, em sua essência, seja desfigurado pela institucionalização precoce e pela perda de sua proposta original. 

Espiritismo em Risco

Allan Kardec, em “Obras Póstumas”, já alertava para o risco da institucionalização do Espiritismo. Ele dizia que o movimento deveria se manter livre, simples e comprometido com a verdade — sem se deixar contaminar pelos vícios das religiões tradicionais. Como ele próprio afirma no capítulo Constituição do Espiritismo – § I. Considerações Preliminares [4]

“Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora exporem-se a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos.”

Quando o Espiritismo se afasta da humildade e da coerência, ele se aproxima do erro que Yeshua combateu com firmeza.

O farisaísmo espírita é sutil, mas corrosivo. Ele se esconde atrás de reuniões bem organizadas, de discursos eloquentes, de eventos beneficentes que não tocam a alma. E, assim, Yeshua é novamente crucificado — não por ignorância, mas por vaidade, por medo da verdade que exige renúncia, revisão e autenticidade.

O movimento espírita, mesmo carregando contradições desde a época de Kardec, nasceu em sua essência como um espaço de acolhimento, esclarecimento e transformação moral. Quando bem vivido, é capaz de unir razão e sentimento, estudo e prática, fé e ação. Mas, ao se afastar dessa essência, torna-se apenas mais uma estrutura religiosa — com seus ritos, cargos e aparências.

Encerramento

Afinal, como advertiu Yeshua aos fariseus, com palavras duras, mas necessárias: “Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno?” (Mateus 23:33) [1].

O inferno físico, dantesco, já não nos assombra — mas a animosidade moral, alimentada por vaidades e incoerências, ainda arde em nossas atitudes e escolhas.

A nós, espíritas que defendemos a fé raciocinada, cabe uma pergunta essencial: seremos capazes de escapar dos erros que ele denunciou – ou seremos nós os novos fariseus, vestidos de espíritas? 

Resta a advertência do discípulo: “E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.” — Tiago 1:22 [5].

Por fim — mas que não se encerra — cá estamos, aprendendo. Vida longa ao conhecimento teoprático [A].

Nota do Autor:

[A] Sobre o termo “teoprático”: é uma construção conceitual derivada da junção de Theós (Deus) e prático (relativo à ação), propondo a ideia de uma espiritualidade vivida — onde o conhecimento divino se traduz em prática ética, consciente e transformadora. Trata-se de uma síntese entre fé e ação, ou entre o saber espiritual e a coerência existencial.

Fontes:

[1] Bíblia Sagrada. “Evangelho de Mateus”. Capítulo 23, versículos 13 e 33.

[2] Allan Kardec. “O evangelho segundo o Espiritismo”. Cap. XVII, Item 4. Tradução de José Herculano Pires. São Paulo: Editora LAKE.

[3] Allan Kardec. “O livro dos Médiuns”. Cap. XX, Item 230. Tradução de José Herculano Pires. São Paulo: Editora LAKE.

[4] Allan Kardec. “Obras Póstumas”. Tradução de José Herculano Pires. São Paulo: Editora LAKE.

[5] Bíblia Sagrada. “Epístola de Tiago”. Capítulo 1, versículo 22.

Imagem de Chil Vera por Pixabay


Outubro de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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2 thoughts on “Jesus Crucificado: O Farisaísmo no Movimento Espírita, por Wilson Custódio Filho

    1. Agradeço, minha amiga! Fico feliz que o texto tenha cumprido seu propósito. Seguimos firmes, pensando Kardec com seriedade e respeito. A leitura, a análise e a opinião de vocês são estímulo para continuarmos.