Wilson Custódio Filho
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Em tempos em que a visibilidade se tornou um valor, inclusive entre espíritas nas redes sociais, sedentos por flashes, é prudente lembrar que o gesto deve refletir a sinceridade da intenção, e que a modéstia, tão prezada pelo Espírito de Verdade, não se dilua em imagens que acabam por desviar o olhar do essencial.
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Introdução: a pergunta de Kardec e o mistério da senhora
Kardec (1864), no Capítulo XIII, item 4 (“Os infortúnios ocultos”), de “O evangelho segundo o Espiritismo” (OESE), apresenta a seguinte questão: “Quem é aquela senhora de ar distinto, de trajes simples mas bem cuidados, seguida de uma jovem que também se veste modestamente?”.
Quando a grama espírita já não floresce
Tenho para mim que este é, senão o mais belo, ao menos um dos capítulos mais iluminados do evangelho espírita.
Sua textura revela uma rara combinação de poesia e filosofia que nos conduz a reflexões profundas sobre o valor da simplicidade, do desprendimento, do anonimato e da dedicação desinteressada ao outro.
É sem dúvida alguma um verdadeiro retrato da elevação moral expressa por meio da humildade. Metaforicamente, o texto se abre a um leque de adjetivos subjetivos — e, talvez por isso mesmo, tão humanos.
Infelizmente, essas qualidades estão se tornando cada vez mais raras em nossos dias. Podemos observar o vizinho e refletir sobre o que ocorre em suas religiões, crenças, filosofias ou ciências, mas confesso: é o nosso próprio quintal — a grama espírita — que mais me chama a atenção.
É aí que me pergunto: o que temos feito com os valores que nos foram confiados — éticos, morais e espirituais? Parece-me que estamos vivenciando um esfriamento dos sentimentos. Acentua-se um distanciamento de Allan Kardec entre seus fervorosos adeptos. Algo me diz que estamos fora da ordem — fora da ordem espírita.
Hoje, maçante, dogmática, mítica — quase papal — assim tem se tornado, paradoxalmente, a vivência desses princípios.
Visivelmente, os estudos — antes aliados à prática doutrinária — têm se transformado em retóricas empoeiradas e vazias, seja nas tribunas ou nas salas de aprendizado. Tudo se tornou plástico, superficial, metódico — sem cor, sem alma, sem vida.
Eis que nos assalta a pergunta: teria o afeto perdido seu abrigo? Ou fomos nós que o deixamos do lado de fora da Casa Espírita?
A filha cresceu e o silêncio perdeu espaço
Teria a filha “daquela senhora”, mencionada nos “Infortúnios Ocultos”, crescido, tornando-se adulta e, ao longo do caminho, se desviado dos princípios testemunhados pelo amor materno?
Você se lembra disso? “Nada mais simples: aprende a fazer trabalhos úteis… dessa maneira, tu darás algo de teu”. Tudo isso se conjectura, dirão, dentro da conjuntura do Movimento Espírita.
Mediante meus devaneios, permanece a pergunta: quem é ela? Como se chama? Ela é espírita? Pouco importa! O que sabemos é que seu trabalho junto aos seus tutelados não busca aplausos, pois é feito no silêncio – desinteressada, discreta, sem necessidade de reconhecimento.
Quando o silêncio se perde na luz dos holofotes.
Como escrito no Evangelho, em uma de suas passagens mais delicadas — “quando a mão esquerda não souber o que faz a direita…” —, o gesto despretensioso permanece como medida da verdadeira caridade e conforme o OESE, “um cântico de bênçãos se eleva ao Criador. Católicos, protestantes, judeus, todos o bendizem”.
“Psiu! — diz ela — Não o digas a ninguém.”.
“Assim falava Jesus.”.
“Oh! Poder! Oh! Bondade! Oh! Beleza! Oh! Perfeição!”. Dessa maneira são os mahatmas.
Pois é… Não é assim que nos ensina o Mestre Jesus? “Minha Paz vos deixo, minha Paz vos dou. Eu não vos dou a paz do mundo. Eu vos dou a Paz de Deus, que o mundo não vos pode dar”.
Diante do exposto, urge uma pergunta — ou melhor, várias. A primeira: — Na perspectiva espírita, a que preço temos construído a paz?
E, outra: — Não há algo de contraditório diante de tanta pompa e tão pouca ação efetiva?
Causa-nos inquietação a evasão, por parte de muitos espíritas, das diretrizes básicas estabelecidas pelos Espíritos a Allan Kardec — especialmente aquela que nos deveria distinguir: a Caridade Moral.
Na essência, apesar dos pesares, que escola incrível, meus amigos! Basta vivê-la sob o prisma da fraternidade universal:
“Amemo-nos uns aos outros e façamos aos outros o que quereríamos que nos fosse feito. Toda a religião, toda a moral, se encerram nestes dois preceitos. Se eles fossem seguidos no mundo, todos seriam perfeitos” (OESE, Cap. XIII — “Que a mão esquerda não saiba o que faz a direita”).
O encontro além das páginas: a Senhora e o Homem de Bem
Assim, permitam-me contar o que aconteceu nos bastidores dos ambientes das grandes almas. Relatos dizem que, certa vez, a Senhora dos Infortúnios Ocultos (do Capítulo XIII) encontrou-se com o Homem de Bem (do Capítulo XVII), ambos de OESE. E foi, nesse encontro, que se estabeleceu o seguinte diálogo:
Homem de Bem:
— Bem sabeis, senhora, que, em todas as circunstâncias da minha existência, fostes minha guia e inspiração.
— Com vossa presença, aprendi a não exaltar minhas qualidades ou talentos em detrimento dos outros. Não me considero modesto; ainda assim, busco sempre enaltecer as virtudes alheias.
— Contudo, inquieta-me — fico triste — perceber que, apesar dos ensinamentos de Kardec, ainda há entre nós uma fração de irmãos espíritas que caminham na contramão de tua “bondade fecunda e infinita”.
Senhora:
— Querido amigo, tua fala me comove.
— Ao acolheres a prática da caridade, selaste no espírito um tesouro que nem traça consome, nem ferrugem corrói:
a paz que acalanta,
a esperança que revigora,
a fé que sustenta.
— São mais que palavras ditas — são os pilares vivos que amparam os corações em dor.
— Legítima é tua preocupação; contudo, compreende que o crachá de espírita não autentica, por si só, o homem de bem. Recorda-te do Bom Samaritano? Acalma tua alma — e eleva-te em prece ativa.
— Conforme ensinam os Espíritos Superiores, este se revela não pelo rótulo que carrega, mas por reconhecer, em seus semelhantes, os mesmos direitos que deseja para si, respeitando-os como expressão autentica das leis eternas e imutáveis da Natureza — leis que são obra da vontade divina.
Homem de Bem:
— Inclino-me diante de ti, ó soberana, incontáveis vezes quantas meu espírito clama – como outrora, num grito silencioso de gratidão e amor.
Senhora (concluindo):
— Vinde comigo, singelo amigo… ó Homem de Bem!
— Vedes que, seja nas choupanas, nas palafitas, nas mansões ou castelos — pouco importa o lugar — onde houver uma única lágrima de dor e sofrimento, é lá que estaremos.
— Lembrai-vos, querido: é entre os humildes e necessitados que Jesus faz morada.
— Sigamos, pois… lado a lado, até que tudo passe — e reste apenas o amor que soubermos semear.
No sussurro da caridade, a voz do Nazareno
E ele narra: “Essa troca delicada de ensinamentos brota entre almas que compreendem que a verdadeira grandeza não se manifesta na exibição dos atos, mas na serenidade da consciência reta”.
Em tempos em que a visibilidade se tornou um valor, inclusive entre espíritas nas redes sociais, sedentos por flashes, é prudente lembrar que o gesto deve refletir a sinceridade da intenção, e que a modéstia, tão prezada pelo Espírito de Verdade, não se dilua em imagens que acabam por desviar o olhar do essencial.
A Senhora dos Infortúnios Ocultos: Revelação Final
Mas o segredo persiste… Deixai-me, então, romper o silêncio: quem sois, senhora dos infortúnios ocultos? És tu, CARIDADE — a maior entre as virtudes, segundo ensina o apóstolo:
“Agora, pois, permanecem estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade; mas entre elas, a maior é a caridade” (I Coríntios 13:1-7, 13).
Longe de ti, CARIDADE — a alma se perde do caminho; pois, parafraseando Allan Kardec, fora de ti, não há salvação.
Colegas de doutrina, compreendamos, por fim, que o espírito da Caridade, conforme ensina Kardec, não é um conceito distante, mas uma presença cotidiana em nossas ações, até nos gestos mais simples.
E, se por acaso a reencontrarmos — talvez na fila do passe, ou varrendo discretamente o salão, ou, ainda, entre os assistidos em busca do alimento que lhes sacie o estômago — então, amigos, que sejamos capazes de reconhecê-la não pelo nome, mas pela vibração.
Porque onde estiver o amor, ali estará também a Senhora dos Infortúnios Ocultos, a veneranda Caridade. E, nesse instante sublime, que não nos falte o ouvido da alma para escutar o sussurro eterno do Mestre: “Não o digas a ninguém”.
Fontes:
Bíblia. (2025). “A Bíblia Sagrada”. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, [s.d.] (Referência ao trecho de I Coríntios 13:1–7, 13).
Cáritas. (2025). “Prece de Cáritas”. Disponível em: <https://www.google.com/search?q=prece+de+c%C3%A1ritas>. Acesso em: 26. fev. 2025.
Kardec, A. (2003). “O evangelho segundo o Espiritismo”. Trad. J. Herculano Pires. 59. Ed. São Paulo: LAKE.
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Edição: Junho de 2025
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