A importância da História e da Historiografia Espíritas, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 6 minutos

Marcelo Henrique

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“É vital o historiador lutar contra a mentira. O historiador não pode inventar nada, e sim revelar o passado que controla o presente às ocultas”, Eric Hobsbawm.
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Dezenove de agosto é o consagrado à homenagem às historiadoras e historiadores. Um historiador é aquele que registra, para a posteridade, os fatos da história, os quais são, em sua maior porção, decorrentes das ações e das omissões dos seres humanos – para nós, espíritas, Espíritos encarnados.

Desde terna idade todos nós tivemos contato com professores de história, responsáveis pela informação acerca dos dados e fatos históricos, fazendo desabrochar nossa curiosidade e gosto por saber o porquê de tudo o que aconteceu no passado (mais recente ou remoto) na Terra. Nem todos os professores, por certo, são historiadores. Mas, mesmo assim, cumprem o papel de interpretar, a partir de (outras) fontes, aqueles fatos.

Todos os que se debruçam sobre a História, assim, emprestam determinado viés interpretativo às situações que são descritas e comentadas. Em outras palavras, não há – nem poderia haver – isenção ou neutralidade. Aliás, esperar neutralidade de seres humano-espirituais, que têm suas próprias formações, convicções, trajetórias e ideologias, é o mesmo que esperar que “Doutrina Espírita” seja algo inerte, estático, neutro, amorfo, insípido, inodoro, incolor. Doutrina Espírita, mesmo em seu nascedouro (observação dos fatos, leitura crítica sobre os mesmos, estudo de causas e consequências e configuração da teoria, assim como a revisão sobre essa teoria) é obra humana, de um encarnado com dotes intelectuais privilegiados e que trabalhou praticamente sozinho em suas digressões e atividades: Allan Kardec.

Deste modo, a “Doutrina Espírita” só é importante quando está em movimento, em ação, quando é interpretada, falada, escrita, praticada e vivenciada. Por isso, o chamado “meio espírita” (muitos, inclusive eu, utilizam a expressão “movimento espírita”) é o cadinho, a plataforma, o palco, o cenário, o laboratório, a universidade, o espaço de convivência onde o Espiritismo, enquanto Doutrina ou Filosofia, ganha corpo, cor, cheiro, essência e verdade – ainda que as verdades possam ser falácias ou pseudoverdades, fruto, é claro, do direito individual de livre-convicção e livre-interpretação.

Assim, tanto quanto em relação ao Espiritismo, assim também o é em relação à História (seja a adjetivação que quisermos dar). Hoje, aliás, fala-se com precisão em HISTORIOGRAFIA, que é o escrever sobre a história, em termos interpretativos, para que a descrição seja viva, natural, humana e, como tal, subjetiva. Toda historiografia contém, portanto, interpretação de fatos (no caso, históricos, porque para o coletivo, não interessará tanto o que a Dona Maria faz após acordar ou que tipo de condução o Seo José utiliza para ir do trabalho para casa e vice-versa). Interessa ao “grande público” (expressão jornalística, por fruto da minha embocadura pessoal-profissional-espírita), saber de fatos que sejam “para todos” (ou grande parte deles, é claro).

A “nova” História, assim, a começar por aquela que vem sendo trabalhada nos ensinos fundamental e médio do Brasil, curricularmente, não se destina a meramente “trabalhar com fatos”, mas, sim, a partir deles (os fatos) dar-lhes interpretações. E tais intérpretes, como Kardec, não serão “isentões” ou “neutros”, nem poderão ser. É como se o indivíduo se sentasse “na poltrona de seu apartamento com a boca escancarada cheia de dentes”, como cantou Raulzito, e de maneira independente, equidistante e superior, analisasse os acontecimentos como se não fizesse parte deles.

Neste conceito e parâmetros, a História deixa de ser uma mera coleção de datas, “seca” e “ideal”, para que o leitor, o estudante, o interessado apenas “decore” elementos como cenários, personagens e dias. Isto é retrospectiva cronológica. Jamais será História.

No âmbito espírita, se dá o mesmo. Biógrafos, Historiadores, Cineastas, Literatos e, até, mulheres e homens de outras ciências/áreas, se interessam pelas ocorrências da vida de determinadas pessoas, instituições ou movimentos (olha a palavra aí, novamente), registrando-as para a posteridade. É importante conhecer o passado para construir o presente mirando o futuro. É fundamental entender os processos, para aquilatar a importância de gestos, ações, palavras, livros, documentos e, é claro, a sequência histórica que desemboca nos dias atuais.

Mas, assim como na história “geral” ou “do Brasil”, a história espírita não é a mera reprodução das situações que estão na esteira (ou espiral, particularmente prefiro mais este desenho) do tempo. Ela é interpretativa e, como tal, corre o “perigo” de conter (em demasiado) a visão particular de quem a registra, publica ou comenta, porque estará sujeita ao viés ideológico ou linha(s) de pensamento de cada Historiadora/Historiador ou Intérprete.

Daí a razão de ouvir, sempre, e quando possível, mais de um “especialista” ou analista-intérprete daquilo que nos interessa ou sobre o que desejamos conhecer melhor. Para que cada um de nós possa tirar as suas próprias conclusões, evitando-se que sejamos “massa de manobra”, “rebanho”, “séquito de fiéis” ou expressões similares.

Trago à colação uma situação que tem sido (bastante, mas ainda não suficientemente) debatida nos meios espíritas, e que repousa sobre as diferenças entre conteúdos contidos em obras escritas (a princípio) por Allan Kardec. Em especial, enquadro as polêmicas – e elas existem justamente pelas diferenças interpretativas e pela ideologia que alguns professam (conscientemente ou não) – envolvendo edições publicadas por Kardec ou postumamente: “O Céu e o Inferno”, “A Gênese” e “Obras Póstumas”.

Quanto às duas primeiras, há três grupos muito claros a respeito das edições publicadas: 1) os que, comparativamente, entender haver alterações “preparadas” por Kardec e adulterações “inseridas” por terceiros em reedições das citadas obras; 2) os que, também comparativamente, entendem que as novas edições ficaram “melhores” (como se a análise fosse, meramente, estética, literária ou “ideológica”); e, 3) os que não desejam as contendas derivadas dos debates que só a dialética e a dialógica podem promover, entendendo que se trata de algo que escapa aos sentidos humanos e que não resulta nenhum proveito para as “vibrações” dos espíritas em atividades de consolo e atendimento. Quanto à terceira, os estudos sistemáticos e minuciosos ainda não ocorreram, estando “na pauta”. Afinal, é fundamental entender que, considerando as muitas dúvidas existente sobre a (real) autoria de edições póstumas, publicadas alguns meses após o desencarne de seu autor, o que podemos dizer de textos (manuscritos) “encontrados” e levados a público, trinta e um anos após a morte de seu (pretenso) autor?

Percebe-se, notadamente que há ideologia nos três grupos. E que apenas dois deles se debruçaram (e debruçam) sobre os conteúdos literário-doutrinário-filosóficos a fim de entender a História espírita. E, neste particular, vejo com mérito a atuação dos dois primeiros e com enorme pesar a atitude dos últimos. Porque, em essência, os que se abstêm de qualquer análise com “receio” dos efeitos (resultados) para as “vibrações espirituais”, ainda não entenderam que a verdadeira proposta do Espiritismo é a de SACUDIR as estruturas, sejam as próprias institucionais espíritas, sejam as sociais, promovendo atos que se enquadram na Lei do Progresso (terceira parte de “O livro dos Espíritos”).

Volto aos dois grupos “duelantes” para registrar que AMBOS possuem a natureza de HISTORIADORES/HISTORIOGRAFISTAS, porque emprestam aos fatos e aos documentos – em especial, no caso tratado, livros, edições, registros documentais oficiais e manuscritos (cartas) – a interpretação baseada na IDEOLOGIA que professam.

Para os que não estejam a par de quais tipos de IDEOLOGIAS estamos falando e porque elas se contrapõem nas situações acima trazidas, vamos nominar: Espiritismo X Rustenismo (Roustainguismo). Sim, trata-se do “pecado original espírita”, para utilizar, analógica ou figurativamente, uma expressão que é familiar a todos os que conhecem a “história” do Cristianismo (ou, como costumamos dizer, os relatos sobre a vida e obra de Yeshua-Jesus e o que foi consignado a respeito disto nos evangelhos canônicos). O “pecado original espírita” é a dicotomia e oposição entre duas teorias sobre a existência (físico-material) de Jesus: os Espíritas (segundo Kardec) entendem que o Mestre encarnou, num corpo similar ao nosso e padeceu todas as dores físicas e psicológicas de sua existência “carnal”; e os Rustenistas (Espiritualistas, já que não podemos considera-los espíritas, porquanto atentam em relação a princípios doutrinários fundamentais do Espiritismo) acatam uma teoria esdrúxula, bastante antiga, de que Jesus não teria tido um corpo carnal, mas, apenas e tão-somente, fluídico e que, portanto, as dores que lhe foram impingidas teriam sido apenas psicológicas.

O debate transcende e alcança a “Escala Espírita”, para delimitar uma outra diferença – que passa desapercebida para muitos adeptos do Espiritismo – sobre a NATUREZA ESPIRITUAL de Jesus: os que afirmam, com supedâneo no conjunto da teoria espírita, inclusive os “degraus” da dita escala, que Jesus seria um Espírito Superior (segunda ordem); e os que já consideram a sua encarnação, há dois mil anos, como a de um Espírito Puro (primeira ordem). Vale dizer que estes últimos se apegam à “forma” (os adjetivos “puro” e “pureza” apresentados coloquial ou poeticamente em frases atribuídas a Espíritos desencarnados ou ao próprio Professor francês), descuidando-se, no nosso entender, da essência: Espírito puro não mais reencarna, não mais ocupa corpo físico (material), por já ter cumprido todos os estágios anteriores, em que a necessidade da vestimenta corporal se fazia obrigatória. Veja-se que o “fundo” é o mesmo: ter (ou não), Yeshua, se apresentado corporalmente na Galileia.

Eis que as historiadoras e historiadores estão por aí. Realizando a historiografia espírita. E, como tal, com maior ou menor competência e qualificação, inclusive decorrente não só de suas formações técnico-profissionais, mas do desempenho de inúmeras atividades de estudo e pesquisa, nos trazendo elementos para que, cada um de per si, realize a interpretação secundária, já que a primária, é dos próprios pesquisadores (historiógrafas e historiógrafos), que, também com suas ideologias e convicções, nos oferecem campo de mais estudos e pesquisas.

E que, neste trabalho, estejamos imbuídos, como destaca Hobsbawm na frase que abre este ensaio, na batalha contra a mentira, a falácia e a pseudoverdade (mentira com aparência de verdade). Porque não podemos e não devemos inventar nada, revelando as circunstâncias do passado (espírita), que age como controlador oculto do presente em que estamos vivendo. Quanto mais reais, verdadeiras e descobertas forem tais circunstâncias, maiores chances de evitar equívocos, inclusive para o resgate da própria História, que as futuras gerações conhecerão e melhor aproveitarão.

A eles o nosso reconhecimento e gratidão, e que sigamos, também, a nosso modo, fazendo a historiografia espírita.

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