O negacionismo metodológico que contamina!
Marcelo Henrique e Marco Milani
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Ainda que haja muita algaravia em torno de opiniões – meras opiniões – seguimos com a verdade dos fatos e dos documentos, sem admitir uma só mentira!
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Este é mais um texto de Kardec. Sobre Kardec. E para além de Kardec. Um Kardec que muitos dizem conhecer, só porque já leram algumas de suas obras ou porque sabem de cor alguns trechos que possuem relevo e destaque, ou porque, ao invés de “deixar penetrar, em si, o Espiritismo” optam por “fazer penetrar no Espiritismo as próprias opiniões”.
Naqueles treze anos de árduo trabalho, são incontáveis os parágrafos, como, também, os itens, capítulos e os textos de sua própria lavra. Suas digitais estão, indelevelmente, por cada uma de suas magistrais obras, em 23 (vinte e três) títulos distintos, que se entrelaçam, interrelacionam e sistemicamente se unem na interpretação da Filosofia Espírita ou Doutrina dos Espíritos. Vale relembrar que esta última denominação celebra o que há de mais rico em toda a sistemática e metodologia espíritas: a mundividência (de Herculano Pires), a bilateralidade das contribuições dos humanos “vivos” e dos “mortos”.
A autoridade da Doutrina dos Espíritos é destacada por Kardec na Introdução (Item II), de “O evangelho segundo o Espiritismo”, compondo o verdadeiro e inafastável método de validação dos ensinos dos Espíritos.
Sem Kardec, obviamente, não existiria o Espiritismo como conhecemos. E, sem eles – no plural – não haveria Espiritismo, ou, então, haveria uma tal “revelação da revelação”, cujo subtítulo já é, por si só, suficientemente pedante, arrogante e prepotente.
Os homens (Espíritos) são o que são! Como esperar “neutralidade” ou “isenção” de quem, como partícipe de um mundo pouco evoluído como é a Terra, possua à flor da pele e na vibração de todos os amanheceres, vaidades, orgulhos, personalismos e intenções (nem sempre transparentes, quiçá éticas).
Kardec é um daqueles homens que se destacam pelo altruísmo e a devoção a uma causa, ofuscando qualquer desejo de proeminência ou reconhecimento dos seus pares. No seu “Viagem Espírita em 1862”, um “manual de bordo”, um “caderno de campo”, uma “agenda de suas vivências” ou um “diário tornado público”, vemos um compromissado Espírito motivado a deixar não a sua marca individual e pessoal, mas um legado para a Humanidade.
O legado atravessou um, dois, e chega ao terceiro. Poderia estar rejuvenescido e vibrante, tocando as fímbrias dos “homens de bem” (ou de “boa vontade”), mas permanece envolto nas comezinhas lutas pela superioridade “institucional” ou “doutrinária”. Poderia estar – como ele escreveu – se tornando crença comum na Humanidade, pelo reconhecimento não de suas obras, nem de seus diálogos com as Inteligências Invisíveis, mas dos princípios que (já) fazem parte da vida físico-espiritual: Divindade, Espiritualidade, Transcontinuidade, Transmutabilidade, Pluralidades (das existências e dos mundos habitados) e Transcomunicabilidade.
Isto tudo ficou em segundo plano. Transformamos o Espiritismo em objeto e em móvel de crença, pelos quais digladiam as pessoas na direção de impor a sua vontade (e os entendimentos que nela se encerram). Hoje, lamentavelmente, discute-se mais a forma do que o fundo. E é por isso que até mesmo em relação ao que ele escreveu, tentativas várias foram e continuam sendo feitas para descaracterizar, desqualificar e alterar perniciosamente o conteúdo da obra.
Como as obras formam um conjunto único com notável consistência interna, a reinterpretação ou ressignificação de qualquer uma delas reflete, necessariamente, em todas. Dada a preocupação didática do educador Allan Kardec, a clareza e a objetividade foram, por diversas vezes, enfatizadas como características essenciais para se bem compreender o edifício doutrinário. Por uma questão de lógica, não se pode aceitar, passivamente, conceitos contraditórios ou antagônicos convivendo sob a aparência de tolerância ou dinamismo.
Em pleno desenvolvimento da doutrina filosófica nascente, Kardec enfrentou diversas tentativas de desvirtuamento do ensino dos Espíritos por aqueles que se consideravam aptos para introduzir suas opiniões e concepções personalistas de mundo sem qualquer fundamentação em fatos e na universalidade. Jean-Baptiste Roustaing, por exemplo, foi um dos que, pretensiosamente, desprezou o uso de um método racional de validação das “revelações” que supunha receber de apenas uma fonte mediúnica, mesmo tendo sido alertado por Kardec sobre essas inconsistências.
Denominado por Camille Flammarion como o “bom senso encarnado”, Allan Kardec não se eximia de explicar os conceitos doutrinários com a simplicidade exigida para os mais diferentes públicos, de camponeses e operários a nobres e cientistas, sem qualquer distinção ou preconceito. A confiança metodológica garantia a unidade do ensino divulgado e a sobriedade para dialogar com contraditores e críticos, inclusive com os deturpadores internos, como Roustaing.
Após a sua desencarnação, alguns dos continuadores de Kardec não possuíam a mesma preocupação metodológica e crendices teosóficas e outros conceitos místicos que guardavam contradições teóricas com o Espiritismo foram irresponsavelmente apresentados como “avanços”, gerando distorções sincréticas. O próprio roustainguismo foi disseminado em alguns grupos mediúnicos brasileiros porque, neles, o método racional da universalidade foi substituído pela crença cega e argumentos de autoridade de médiuns e determinados “guias” espirituais.
Esse comportamento idólatra ainda deixa marcas no heterogêneo movimento espírita brasileiro, quando informações poéticas e ficcionais, carentes de comprovação, substituem o pensamento crítico kardequiano que exige validação por diferentes fontes.
Com o favorecimento das tecnologias de comunicação, não somente místicos e supersticiosos insistem em propagar bizarrices antidoutrinárias nas redes sociais, mas também oportunistas que objetivam visibilidade e retornos financeiros pela monetização de seus canais eletrônicos e venda de produtos de autoajuda disfarçados de espíritas.
Outra vertente de aventureiros é formada pelos revisionistas históricos, que praticam o anacronismo interesseiro ao reinterpretar os fatos do passado com embaçadas lentes de hoje, motivados pela tentação de reescrever os acontecimentos conforme as próprias convicções. Alguns desses pretendem adulterar as obras fundamentais do Espiritismo sob a parva alegação de que Kardec era preconceituoso, então haveria trechos inapropriados nas obras que “precisariam” ser reeditadas em versões modificadas!
Como afirmou o saudoso Herculano Pires, aqueles que desejam atualizar Kardec deveriam, primeiro, atualizarem-se em Kardec.
Por fim, encontramos exemplos de “decretadores da verdade” também entre aventureiros que assumem a tribuna ou publicam livros de questionável qualidade doutrinária e técnica para discorrer sobre complexos conceitos de física, direito, história, economia, medicina ou astronomia, dentre outras ciências, relacionando-as com o Espiritismo, mesmo sem nunca terem frequentado cursos de formação nas respectivas áreas.
A teimosia – que decorre daquelas duas maiores chagas humanas, na dicção das Inteligências Invisíveis, o orgulho e a vaidade – continuam a produzir “pesquisas”, textos longos e impróprios para o consumo do “espírita médio”, recheados de fotos de documentos “velhos”, amarelados pela ação do tempo, ou reproduções de fac-símiles ou imagens terceirizadas. E muitas ilações, é claro, a partir de tergiversações várias que são “deduções” de professores pardais, autointitulados “Sherlocks”, “Agathas” ou “Poirots”, em suas bolhas nas redes sociais.
Praticam, pois, ilicitudes. E o que é ilicitude? Algo “fora da lei”, ou seja, uma conduta aética, patrocinada por interesses mesquinhos, materiais na mais exata acepção da palavra, relativos a poder, dinheiro, honra e glória. Estes quatro elementos, separados ou (neste caso) conjugados, pautam as notícias de redes supostamente espíritas, apesar dos incautos nada perceberem.
A “massa de manobra”, todavia, segue anestesiada pelas palavras pomposas e pelos brilharecos de cada nova postagem. E há um “hino de louvores” para a “devoção”, a “dedicação” e a “folha de serviços” aos interesses “doutrinários”, como a pessoalizar a Doutrina em um ou outro de seus “representantes”. Gente que não estuda, não conhece os fundamentos espíritas, não faz qualquer associação entre os conceitos apresentados em distintas obras.
Há vários manuscritos de Kardec recentemente divulgados que auxiliam a compreensão da carga de trabalho e as características de organização de suas atividades pessoais e dedicadas ao Espiritismo. Muitos assuntos sociais e doutrinários poderiam, certamente, ser desenvolvidos se o mestre lionês continuasse em sua jornada terrena por mais tempo. Sabe-se, porém, que no final de 1868, poucos meses antes de desencarnar, Kardec enfrentou problemas de saúde que o fizeram interromper suas produções.
Eis a carta derradeira:
Carta de 13/10/1868 em que Kardec afirma que, por questão de saúde, necessitou suspender todos os trabalhos além do estritamente necessário [1].
Transcrevendo-se o documento, na parte que nos interessa:
“Devo ao excesso de trabalho uma condição que se tornou crônica e de certa gravidade; o único remédio para a qual seria o repouso, que não posso tomar. Além disso, tive um verão bastante ruim, que me atrasou em muitas coisas, pois fui forçado a não trabalhar de 18 a 20 horas por dia como costumava. Seguindo os repetidos conselhos dos Espíritos, tive que, até segunda ordem, suspender todo trabalho que não fosse o estritamente necessário, o que, por si só, já é considerável, sob pena de acidentes graves que poderiam me prejudicar e comprometer o que ainda faltava para completar minha tarefa.”
O conteúdo completo da carta, em francês e em português, em nossa versão, segue como anexo a este artigo.
Diante do vasto material de pesquisa e divulgação do Espiritismo que Kardec possuía, alguns textos foram reunidos e publicados quase duas décadas depois, intitulado “Obras Póstumas”. São escritos pessoais e, portanto, não podem ser incluídos como parte integrante do ensino dos Espíritos, estes validados pelo critério da universalidade. Mas, é claro, possuem valor histórico.
Nesse sentido, outros documentos, como a (citada e transcrita) carta em que Kardec informa sobre a interrupção de suas atividades por problemas de saúde, favorecem a compreensão do contexto e detalhes relacionados à época, mas exigem plena observância às questões jurídicas acerca de publicações posteriores à sua desencarnação, ocorrida em 31 de março de 1869.
Sejam notícias do passado ou “revelações” do presente, quaisquer informações que não tenham sido devidamente validadas por critérios metodológicos, não passa de mera opinião e deve ser considerada, no máximo, como hipótese e não como uma nova verdade.
Referências:
[1] Este e outros documentos já foram tratados em outro artigo:
Henrique, M. Como os adulteradores aproveitaram a revisão inacabada de “A Gênese” e “O Céu e o Inferno” (2023). Espiritismo COM Kardec. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/como-os-adulteradores-aproveitaram-a-revisao-inacabada-de-a-genese-e-o-ceu-e-o-inferno-por-marcelo-henrique/>. Acesso em 10. jun. 2025.
[2] Para conhecer todos os artigos do “Dossiê Adulteração”: <https://www.comkardec.net.br/dossie-adulteracao-o-eck-na-defesa-incondicional-de-allan-kardec-suas-obras-e-sua-memoria/>. Acesso em 10. jun. 2025.
ANEXO
Carta de Kardec
Paris, 13 octobre 1868
Mon cher Monsieur,
Je suis vraiment honteux du retard que j’ai mis à vous écrire, et, pourtant, je vous l’assure, il n’y a de ma part, ni négligence, ni insouciance; mais comme vos lettres étaient de celles auxquelles je me réserve de répondre moi-même, ces lettres, je les mets de côté avec bonne intention, puis elles s’accumulent, et, sans cesse accablé de travaux urgents, je remets de jour en jour, si bien que le retard se prolonge souvent au-delà de mes prévisions; j’en suis vraiment contrarié, mais la journée n’a que 24 heures!
Je dois à l’excès du travail une affection devenue chronique d’une certaine gravité; dont le seul remède serait un repos que je ne puis pas prendre. Aussi, ai-je passé un assez mauvais été, ce qui m’a mis en retard pour beaucoup de choses, car force m’a été de ne pas travailler 18 à 20 heures par jour comme je le faisais jadis. D’après les conseils réitérés des Esprits, j’ai dû, jusqu’à nouvel ordre, suspendre tout travail en dehors du strict nécessaire qui, a lui seul, est déjà considérable, sous peine d’accidents graves qui pourraient me jouer un mauvais tour, et compromettre ce qui ne reste à faire pour terminer ma tâche.
Voici donc une première excuse que j’ai dû adresser à bien d’autres personnes.
Une autre raison qui m’a fait tarder à vous écrire, c’est que je voulais prendre connaissance de votre manuscrit; car, je vous avoue, que la rapidité avec laquelle il a été écrit, en rend la lecture extrêmement difficile, longue et très fatigante. Je l’ai commencée plusieurs fois sans pouvoir aller jusqu’au bout et ce n’est que depuis peu que je l’ai achevé. Vu la multiplicité de mes occupations, je suis forcé de renoncer à lire ce qui exige trop de temps et une trop grande contention d’esprit.
Tel qu’il est, il serait impossible à un imprimeur de s’y reconnaître; car, outre qu’il n’a point la forme voulue, il est indéchiffrable en certaines parties. Les compositeurs d’imprimerie sont des machines; il faut tout leur tracer et ne pas compter sur eux pour aucun travail qui n’est pas de leur ressort. Ils ne peuvent même, de leur chef, se permettre aucune rectification. Les corrections étant payées à part, lorsque l’irrégularité d’un manuscrit en exige beaucoup, il arrive parfois que les frais d’impression peuvent être doublés. Dans le vôtre les alinéas ne sont point clairement indiqués; il y en a où il n’en faut pas, et vice-versa; il y a des phrases d’une longueur interminable qui, pour être comprises, exigent une autre rédaction; la plupart sont semées de points de suspension qui n’ont aucune raison d’être; il y a, en outre, de nombreuses répétitions, et, comme c’est le premier jet, le style n’est pas assez châtié.
Il est donc indispensable que ce manuscrit soit recopié d’une manière lisible et correcte. Si je n’avais fait ce travail pour votre livre, l’imprimeur n’en serait jamais venu à bout, et l’ouvrage aurait eu, pour le lecteur, un tout autre aspect qui, lui aurait certainement nui. Malgré cela, la correction des épreuves a été très difficile et les frais de remaniement qu’elles ont nécessité, se sont élevés à 214 frs 75 c., tandis qu’ils eussent à peine été le quart avec un manuscrit correct.
Je ne vous offre pas de faire la même chose pour votre nouveau manuscrit ; cela m’est matériellement impossible; dans la position où je me trouve, je ne pourrais même pas me charger de revoir les épreuves, ayant à peine le temps suffisant pour surveiller la réimpression de plusieurs de mes ouvrages, sans parler des publications nouvelles auxquelles je dois travailler toute affaire cessante.
Je crois que ce que vous auriez de mieux à faire, serait de le faire imprimer dans votre localité, parce qu’étant sur les lieux, vous pourriez en surveiller vous-même l’impression, et revoir les épreuves.
Quant au mémoire en lui-même, je vous dirai franchement que je ne saurais l’approuver en totalité. Tel qu’il est, j’ai l’intime conviction qu’il ne produira pas l’effet que vous en espérez, ni pour vous, ni pour la doctrine. L’expérience que j’ai acquise en pareille matière, m’a appris à connaître les causes qui peuvent impressionner favorablement ou défavorablement le public, et bien des livres, bons dans le fond, ont dû leur insuccès à la négligence de ces causes. Ce qu’il faut éviter, avant tout, ce sont les longueurs et les détails superflus. Votre meilleure apologie de la doctrine, et j’ajoute : votre meilleure justification, c’est votre livre. Votre mémoire, à mon sens, est beaucoup trop long, et gagnerait à être considérablement réduit, parce que, je le répète, il y a des choses dont vos adversaires s’empareront et qu’ils tourneront contre vous.
Tel est mon avis, que je n’ai nullement la prétention de vous imposer, et dont vous êtes libre de faire l’usage que vous jugerez à propos, et sur lequel je crois superflu d’entrer dans des détails plus circonstanciés.
Je tiens votre manuscrit à votre disposition, soit pour vous le retourner, soit pour en disposer comme vous l’entendrez.
Vous trouverez ci-joint le compte des frais d’impression de votre livre de la raison du spiritisme.
Recevez, cher Monsieur, la nouvelle expression de non sincère et fraternel dévoûment.
A.K.
P.S. Toute réflexion faite, puisqu’il faut que vous revoyiez ce travail, autant au moins que vous le fassiez recopier sous vos yeux, pour éviter une nouvelle perte de temps, je vais vous le retourner comme papiers d’affaire, ce qui est moins coûteux, mais ne pourra se faire que par le courrier de vendredi, attendu que je l’ai chez moi à la campagne.
TRADUÇÃO
Paris, 13 outubro 1868
Meu caro senhor,
Estou realmente envergonhado pela demora em lhe escrever, e, no entanto, garanto-lhe que não houve negligência ou descuido da minha parte; mas, como suas cartas estavam entre aquelas a que me reservo o direito de responder, deixei-as de lado com boas intenções, depois elas se acumularam e, constantemente sobrecarregado com trabalho urgente, adiei-as dia após dia, tanto que o atraso muitas vezes ultrapassa as minhas expectativas. Estou realmente chateado com isso, mas o dia só tem 24 horas!
Devo ao excesso de trabalho uma condição que se tornou crônica e de certa gravidade; o único remédio para a qual seria o repouso, que não posso tomar. Além disso, tive um verão bastante ruim, que me atrasou em muitas coisas, pois fui forçado a não trabalhar de 18 a 20 horas por dia como costumava. Seguindo os repetidos conselhos dos Espíritos, tive que, até segunda ordem, suspender todo trabalho que não fosse o estritamente necessário, o que, por si só, já é considerável, sob pena de acidentes graves que poderiam me prejudicar e comprometer o que ainda faltava para completar minha tarefa.
Então, aqui está uma primeira desculpa que tive de dar a muitas outras pessoas.
Outro motivo que me fez adiar a escrita é que eu queria ler o seu manuscrito; pois, confesso, a velocidade com que foi escrito torna a leitura extremamente difícil, longa e muito cansativa. Comecei-o várias vezes sem conseguir terminá-lo, e só recentemente o terminei. Dada a multiplicidade das minhas ocupações, sou forçado a desistir de ler qualquer coisa que exija muito tempo e muito esforço mental.
Do jeito que está, seria impossível para um impressor entendê-lo; pois, além de não ter a forma desejada, é indecifrável em certas partes. Os compositores dos impressores são máquinas; tudo deve ser rastreado para eles e não se deve confiar neles para qualquer trabalho que não seja de sua responsabilidade. Eles não podem nem mesmo, por iniciativa própria, permitir-se quaisquer correções. Como as correções são pagas separadamente, quando a irregularidade de um manuscrito exige muitas delas, às vezes acontece que os custos de impressão podem ser dobrados. No seu, os parágrafos não são claramente indicados; há alguns em que não são necessários, e vice-versa; há frases de extensão interminável que, para serem compreendidas, exigem outra redação; a maioria delas está repleta de elipses que não têm razão de existir; há, além disso, muitas repetições e, como se trata do primeiro rascunho, o estilo não é suficientemente polido.
Portanto, é essencial que este manuscrito seja copiado de forma legível e correta. Se eu não tivesse feito este trabalho para o seu livro, o impressor nunca o teria concluído, e o trabalho teria tido, para o leitor, uma aparência completamente diferente, o que certamente lhe teria sido prejudicial. Apesar disso, a correção das provas foi muito difícil e os custos de retrabalho chegaram a 214 francos 75 centavos, enquanto teriam sido apenas um quarto disso com um manuscrito correto.
Não estou me oferecendo para fazer o mesmo com o seu novo manuscrito; é materialmente impossível para mim; na situação em que me encontro, eu não poderia sequer me comprometer a revisar as provas, tendo tempo suficiente para supervisionar a reimpressão de várias das minhas obras, sem mencionar as novas publicações nas quais devo trabalhar sem demora.
Acredito que a melhor coisa a fazer seria imprimi-lo em sua localidade, pois, estando lá, você mesmo poderia supervisionar a impressão e revisar as provas.
Quanto ao livro de memórias em si, direi francamente que não posso aprová-lo em sua totalidade. Do jeito que está, tenho a firme convicção de que não produzirá o efeito que você espera, nem para você nem para a doutrina. A experiência que adquiri em tais assuntos me ensinou a conhecer as causas que podem impressionar o público de forma favorável ou desfavorável, e muitos livros, bons em substância, devem seu fracasso à negligência dessas causas. O que deve ser evitado, acima de tudo, são extensões e detalhes supérfluos. Sua melhor desculpa para a doutrina, e acrescento: sua melhor justificativa, é seu livro. Seu livro de memórias, na minha opinião, é longo demais e ganharia se fosse consideravelmente reduzido, porque, repito, há coisas das quais seus adversários se aproveitarão e se voltarão contra você.
Esta é a minha opinião, que não tenho a pretensão de lhe impor, e que o senhor tem a liberdade de usar como bem entender, e sobre a qual creio ser supérfluo entrar em maiores detalhes.
Tenho o seu manuscrito à sua disposição, para devolvê-lo ou para dispor dele como bem entender.
Anexo, o senhor encontrará os custos de impressão do seu livro sobre a razão do espiritualismo.
Queira aceitar, prezado senhor, a expressão adicional da minha sincera e fraterna devoção.
A.K.
P.S. Pensando bem, já que você precisa revisar este trabalho, é melhor pelo menos tê-lo copiado na sua frente, para evitar mais perda de tempo. Vou devolvê-lo a você como documentos comerciais, o que é mais barato, mas só pode ser feito pelo correio na sexta-feira, já que o tenho em casa, no interior.
Nota dos Autores: Os parágrafos, em francês e português, negritados contém a informação essencial que desfigura qualquer edição posterior das obras em comento, inclusive após a morte de Allan Kardec.