Marcelo Henrique
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Em verdade, os detalhes são pontos importantes em qualquer discussão e estudo espíritas. Como o “todo” se compõe de diversas “partes”, é importante repousar o olhar sobre diversas situações ou elementos, para a compreensão do conjunto e da essência.
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Introdução.
Tempos atrás, o meio espírita passou a conhecer uma obra artística [veja a imagem], antes desconhecida, contendo um retrato (pintado) do homem Rivail-Kardec. Ali estava o mestre lionês em seu “esconderijo” preferido, o pequeno escritório em seu modesto apartamento em terras francesas. A obra artística – de sensível interesse de nós, espíritas – estaria exposta na Livraria e Edições Leymarie, em Paris. Curiosamente, de propriedade dos herdeiros de Pierre-Gaëtan Leymarie, contemporâneo de Rivail e que atuou no movimento originário espiritista, inclusive com contornos polêmicos, responsável que foi pela introdução de conceitos alienígenas nas publicações e nas práticas do Espiritismo em terras francas. Mas este não é, francamente, o objetivo deste ensaio.
Voltemos ao quadro. Nele se vê um austero professor, bem acomodado em sua poltrona favorita, tendo à sua frente a escrivaninha, com seus livros, papéis e caneta inteiro, além de um singelo abajur. Acima, um lustre de época, ressaltando-se que tanto este quanto o objeto de mesa eram com luzes de vela, já que não havia luz elétrica naquele tempo. Várias outras telas compõem o equilibrado ambiente, além de um tapete no centro do ambiente e outros elementos decorativos de secundária importância, como vasos e castiçal. Há, também, uma vistosa janela com cortinas tradicionais. Às costas de Kardec, assim como em sua frente, estantes com muitos livros, seguramente os que foram responsáveis pela erudição e cultura geral daquele homem diferenciado.
As provocações da imagem.
Haveria algo mais a se comentar, sobre o painel? Onde será que o articulista quer chegar? – poderiam pensar os (nossos) leitores… Há, sim. Veja, você, a imagem que reproduz a tela, uma vez mais, e outra…
Ganha relevo e importância, em posição de destaque no cômodo retratado, de indizível preferência e familiaridade em relação a Kardec, um objeto, mais precisamente, uma pintura, atrás do Professor francês, que provocou nosso interesse e inspiração para este artigo. Trata-se de uma pintura de uma mulher e uma criança, mãe e filho, comuns desde a época renascentista, como formas de representação de dois sublimes personagens da história planetária: Maria e o infante Jesus; Myriam e Yeshua.
Notadamente, trata-se de uma imagem sacra, apesar de não serem visualizados alguns traços daqueles tempos e escolas artísticas, quase todas sob “encomenda” ou “supervisão” da Igreja Católica, para retratar o sublime “redentor” e sua progenitora, santa, na homilia da cristandade. Tais elementos seriam as auréolas ou auras, inclusive por determinação da Santa Madre Igreja.
O que poderia representar este quadro? Ainda que não tenhamos maiores elementos históricos para aferir a religiosidade do povo francês, à época, e Rivail é um representante deste contexto, no sentido de constatar (ou não) se era comum que tal adereço fizeste parte do cenário e do convívio dos cidadãos parisienses, a tela está lá com representatividade. Vejamos um elemento crucial.
O homem Rivail.
Rivail, sabe-se, teve origem familiar católica, provavelmente sendo instruído pelo catecismo religioso vigente, esposado por seus pais. Isto até, na adolescência, ser enviado à Suíça, para estudar com Pestalozzi. Este, por sua vez, um protestante, que deve ter imprimido a moral reformada em suas técnicas, preleções e ensinos. Assim sendo, como já destacamos em outros escritos nossos, o professor francês, depois organizador da Filosofia Espírita, teve sólida formação moral-ético-religiosa com elementos do catolicismo e do protestantismo.
Mesmo que haja diferenças entre as concepções religiosas de uma e de outra escola cristã, ambas são convergentes no sentido da centralidade do personagem de Nazaré e da importância de sua mãe em toda a trajetória – de trinta e três anos – do “Mestre dos Mestres”. Várias passagens contidas nos Evangelhos Canônicos (e, algumas delas, reproduzidas em “O evangelho segundo o Espiritismo” e em outros textos kardecianos) dão destaque àquela mulher ímpar, personagem, aliás, de várias passagens, colóquios e feitos (muitos tidos como “miraculosos” pela cultura da época e das construções literário-culturais da religião cristã).
Se Kardec – porque, aí, no momento em que ele posou para a foto-pintura, já não era mais o professor de escola e contador, mas, sim, o representante da cultura espírita em solo europeu e mundial, o “chefe” da agremiação espírita originária, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) e, provavelmente, o instituidor (e, talvez, seu primeiro presidente) do “Comitê Central de Espiritismo”, naqueles dias, se a morte (por aneurisma) não tivesse abreviado sua “carreira” espírita – escolheu por adornar o seu (preferido) ambiente de trabalho com ilustração tão peculiar, há, sim, razões para tal.
E nos permitirmos lucubrar especulativamente a respeito disto.
Kardec, alcunhado de “bom senso encarnado”, reconhecido por sua lógica racional, instituidor de métodos próprios e especializados de atenção para com as “manifestações dos mortos” (psicografias e psicofonias), sistematizador tanto do processo de composição das obras originárias de Espiritismo, quanto dos critérios para a aprovação/seleção de mensagens mediúnicas, como de análise de produções não-mediúnicas, estão presentes em todos os atos de sua “carreira” espírita.
O quadro, assim, demonstra um conjunto composto por vários elementos que nos permitimos perpassar e sugerir a reflexão.
O Primeiro.
Kardec era um homem religioso. Seja em face de sua formação e educação – já destacadas – quanto de suas próprias convicções e experiências no somatório das encarnações. Mas há um capítulo, no contexto espírita, que precisa ser enunciado.
O contato com as “Inteligências Superiores” (terminologia do próprio Kardec) fez com que ele sofresse clara influência do pensamento (majoritário) cristão contido nas mensagens que ele examinou. Muitas das assinaturas (espirituais) nas psicografias são de vultos (com maior ou menor expressão) no Catolicismo. As ideias morais e os “defeitos” no entendimento das questões correlacionadas à missão, aos ensinos e aos feitos de Jesus de Nazaré, “contaminadas” pela visão clerical, influíram decisivamente na formação de homem-espírita de Rivail. Não há, pois, como separar uma de outra contingência.
Se, com “O livro dos Espíritos” (OLE, 1857), Kardec inaugurava um tempo de filosofia da ciência (ou ciência filosófica) para, a partir dos fatos, dos experimentos, das ocorrências espíritas, produzir a teoria (método dedutivo), cunhando um peculiar e fantástico tratado sobre Espiritualidade, onde se destaca, logo na abertura da obra, a visão não-antropomórfica (tradicional, nas igrejas) da Divindade, depois, esta “lucidez” vai, aos poucos, desaparecendo, para dar lugar ao encanto das palavras (muitas delas verdadeiras ou verossímeis) mas escudadas, ainda e infelizmente, na visão teocêntrica e antropomórfica de Deus.
E, com isso, de uma autonomia (plena) contida em OLE, Kardec vai abrindo espaço para a heteronomia, quando concorda e reafirma o que os Espíritos lhe relatavam, sobre a influência (direção) da “mão divina” sobre os fatos humanos e espirituais.
Vale dizer que, ainda no contexto das conceituadas “obras fundamentais” da Filosofia Espiritista, “O que é o Espiritismo” (OQEO, 1858) e “O livro dos Médiuns” (OLM, 1861), também mantêm os traços de destacada cientificidade, afastando-se das tendências de explicação “sobrenatural” derivadas da “onipresença” do Criador.
É o que se verifica e se atesta, em “O evangelho segundo o Espiritismo” (OESE, 1864), “O Céu e o Inferno” (OCEOI, 1865) e “A Gênese” (AG, 1868), quando Kardec faz desaparecer a ótica presente nas três primeiras obras e “cede” aos impulsos religiosos, passando a tomar como essência o que seria meramente acessório, derivado da forma limitada dos religiosos do passado – agora, simplesmente Espíritos comunicantes – como principal, ou seja, dando guarida a teses espiritualistas, cristãs, muitas delas com mensagens de conteúdo moral elevado, mas não genuinamente espíritas.
Isto se deu em face da sua própria condição de homem, Espírito encarnado, com suas próprias ideologias, condicionamentos, percepções, entendimentos e, é claro, a liberdade de sua personalidade. Kardec era, neste ponto, também, de “carreira” espírita, um homem em formação e aperfeiçoamento, sujeito a erros (como nós) e (muitos) acertos (também, como cada um dos Espíritos em marcha).
O Segundo.
Assim como ocorre conosco, a ilustração pode ter sido um presente de conteúdo afetivo, de um de seus convivas. Presente para ele, Rivail, ou para a mulher, Amélie, considerando, sempre, a condição de isonomia da sua relação conjugal, onde os dois eram afetuosamente ligados e o professor atestava a importância da opinião de sua consorte em todos os ramos da vida em comum.
Nada mais natural, assim, em colocar especial “regalo” numa posição de destaque no escritório de casa, como ilustra a imagem.
Note-se, ainda, que o objeto, apesar de estar em posição privilegiada, não está associado a nenhum altar, nem se reveste, pelos elementos contíguos, em lugar de veneração, como é comum em residências, até hoje, de cristãos, seja na Europa, seja no Brasil. A idolatria presente na cristandade costuma ter destinatário certo em objetos “religiosos”, os quais representam, na prática as (legítimas) manifestações da crença (fé) de cada um, conforme sua visão do mundo e da espiritualidade.
O Terceiro.
Kardec, desde as primeiras sessões, a convite do Sr. Pâtier, na casa de Mme. Plainemaison, percebeu a condição de superioridade moral de muitos Espíritos comunicantes. E a eles se referia com respeito e admiração. Mesmo na maiêutica que ele empregou para questionar, seguidamente, até por exaustão, as Inteligências Invisíveis (outra de suas expressões) sobre os mais diversificados temas, quando parecia estar “descrente” e “refratário” em relação aos conteúdos, o professor adotava a postura de homem de letras e ciências, procurando, como dissemos em outro contexto, antes, neste texto, uma equidistância motivada pela lógica racional e pelo comportamento científico.
Mas, mesmo assim, no cérebro e no coração daquele homem ímpar, seria bem possível imaginar que a afetividade e a bem-querência para com aqueles seres que já se tornavam familiares, fosse sendo, aos poucos, exacerbada.
Daí, então, a dar maior importância à figura de Yeshua – ainda que em representação infante – e sua mãe, já referida como personagem importante para a cristandade e para a missão do Pescador de Homens.
O que queremos dizer é que o componente de afeição em Rivail-Kardec é essencial, marca de um homem compromissado que teve comportamentos éticos à frente de seu tempo e que se dedicou à exaustão à obra pedagógica pública em solo francês e, sabe-se, hoje, pela revelação de muitos de seus manuscritos, recentemente descobertos e traduzidos, acostada à sua produção intelectual contida principalmente na “Revue Spirite” (Revista Espírita, RE, 1858-1869), em que merece destaque o engajamento social nas causas mais importantes de sua época e das de hoje, como o combate à indigência social, a militância pelos direitos humanos e, é claro, a própria educação da Humanidade.
Homenagear o Cristo – sim, aqui vamos chamá-lo assim, em virtude, principalmente, da pintura que serve de mote para este ensaio – colocando o objeto em destaque, sobretudo no local de sua residência onde ele passava a maior parte dos anos de sua madureza, poderia ser, além da homenagem que ele poderia tentar fazer, neste caso, servir-lhe, inclusive, de inspiração para o trabalho de Codificador.
O Quarto.
E quanto à “religião espírita”? O que dizer dela e da posição de Kardec em relação a ela? Se, em OQEOE, Kardec já tinha tido embates ideológicos com um representante do sacerdócio católico (“O Padre”), na parte introdutória desta obra, contrapondo, um a um os argumentos acusatórios do religioso, demonstrando que o Espiritismo não tinha nenhum objetivo de confrontar ou concorrer com qualquer agremiação religiosa, um outro excerto de sua produção intelectual-literária precisa ser trazido para compreender a mudança de paradigmas que se processou na mente e na condução do trabalho espírita de Rivail.
Faço um pequeno parêntese para tratar de uma questão incidental, antes de versar sobre o tópico principal da mudança, objetivamente falando, de conduta do Codificador em relação ao Espiritismo. É que a obra OESE foi publicada, inicialmente, com o (sugestivo) título de “Imitação do evangelho segundo o Espiritismo”, até, na versão subsequente receber a denominação que, até hoje, conhecemos e estudamos. Ora, uma imitação pode ter duplo sentido de expressão-entendimento: por um lado – e este não era o propósito do professor – simbolizaria algo que não chega aos pés do original, sendo uma cópia imperfeita, uma sátira, uma paródia, ou uma contrafação em relação aos textos que busca imitar, sendo um arremedo; por outro – e, neste caso, estamos inclinados a entendê-la assim, seria a reprodução ou representação de dado conteúdo, de forma mais exata possível, mas com a intenção de melhora, avanço, precisão em relação ao seu objeto.
Claramente, portanto, a publicação do “evangelho espírita”, traz um subtítulo assaz instigante e que compreende os propósitos da obra: “Contendo: a explicação das máximas morais do Cristo, sua concordância com o Espiritismo e sua aplicação às diversas situações da vida”. Deste subtítulo quero destacar as expressões: máximas morais, concordância e aplicação às situações da vida. Ou seja, o nosso evangelho se baseia nos ditos e feitos de Jesus, para compreender-lhes a essência e aplicar-lhes conforme o Espiritismo para aquelas situações que, hoje, passados mais de dois mil anos, permanecem em plena vigência. Seria uma “atualização” dos textos evangélicos, retirando-se as alegorias e as dogmáticas para a compreensão total dos ensinamentos neles contidos.
Mesmo assim, até mesmo entre os “seus”, ou seja, os adeptos do Espiritismo nascente, a obra provocou alguns sobressaltos. Muitos pensaram ser, o OESE, uma contrafação à bíblia (dos católicos ou dos protestantes), levando em conta que este livro é o documento principal da cristandade (em especial, no caso, pelo conteúdo de “O Novo Testamento”). Por isto, Kardec ousou ao apresentar ao mundo uma “nova visão” sobre informações que eram consideradas “patrimônio das religiões” e, então, sofreu na pele – vide o episódio anterior do Auto de Fé em Barcelona (1861), com a queima de trezentos exemplares de obras espíritas e espiritualistas – a oposição e o combate (ferrenho) das igrejas ao trabalho espírita. Isto, antes mesmo, de Kardec lançar à lume o livro.
Flagrante, assim, a intenção de Kardec aprofundar estudos e ilações filosóficas sobre questões (aparentemente) religiosas foi, talvez, um revide ao próprio Auto de Fé, dado o fracasso que o evento produziu. Ao contrário do que pretendia a autoridade clerical, a venda dos livros não decresceu. Pelo contrário, aumentou, sendo que Kardec teve de se desdobrar com seu livreiro para novas edições e reedições, a fim de atender aos pedidos de várias praças europeias. Feitiço contra o feiticeiro, portanto.
Religião ou não-religião, eis a questão!
Mas, sem mais delongas, vamos ao anunciado outro excerto de sua produção intelectual-literária: um texto da “Revue Spirite”. No fascículo de dezembro de 1868, praticamente um dos últimos que Kardec, de próprio punho, escreveu para o seu “Jornal de Estudos Psicológicos”, que reproduz um discurso que ele fez na SPEE, em 1º de novembro daquele ano, e que recebeu como título: “O Espiritismo é uma religião?” (KARDEC, A. “Revue Spirite”. Trad. Salvador Gentile. Revisão de Elias Barbosa. Araras: IDE, 1993).
Este discurso é, em essência, um texto que suscita discussões e defesas apaixonadas por parte dos adeptos espíritas. Há um grupo que se fixa na afirmação de “não ser” uma religião, e outro que prefere a expressão de que é, a Doutrina dos Espíritos, uma religião (cristã). Reforça o pensamento destes últimos, várias afirmações de Rivail, no curso de toda a sua produção literária – 32 obras – em que ele afirma que o Espiritismo é cristão e utiliza este termo como adjetivo em duas conformações: “Espiritismo cristão” e “espírita cristão”. Só este elemento seria suficiente para demonstrar o que dissemos no item “Primeiro”, acima, de que ocorreu uma “guinada” na forma de entendimento/expressão das ideias por parte do pensador francês em relação ao próprio Espiritismo.
Isto é, Kardec teria, então, “se apaixonado” pelo Cristo-Jesus e imprimido, segundo grande parte dos seus interlocutores, Espíritos vinculados ao Cristianismo, na obra espírita uma conotação de seita cristã? É de se ponderar…
Mas, voltando ao citado discurso, Kardec afirma de modo peremptório a impossibilidade de alinhamento da “Doutrina DOS Espíritos” (note-se o destaque dado por mim, na grafia da expressão) na categoria “religião”, consideradas as premissas que permitem tal enquadramento. São elas: rituais, dogmas, casta sacerdotal, cerimônias, privilégios, misticismo e práticas exteriores de adoração. Singularmente, devemos dizer que na concepção original de Kardec para as assembleias espíritas e na própria constituição da SPEE, estes elementos estão ausentes. Ocorre que na “prática” espírita, consideradas as instituições desse caráter que existem no Brasil e em outras partes do mundo, há a demonstração da aceitação e vivência de tais elementos, uns, senão todos, dada a incidência das ideias pessoais e a constância, dos encarnados, assim como dos desencarnados que os intuem ou secundam, nas práticas religiosas das igrejas em que estiveram, antes de se tornarem adeptos do Espiritismo. E isto é essencial na formação (e manutenção) do chamado “caldo cultural-social espírita”.
Mas Kardec dá ênfase – e praticamente se fixa em um elemento que também é característico nas religiões (embora não exclusivo delas) – que seria a “comunhão de pensamentos”. Por ela se estabelecem vínculos, seja entre encarnados, entre desencarnados e entre uns e outros, no segmento da mediunidade. Usando a expressão kardeciana (do discurso): “Comunhão de pensamento quer dizer pensamento comum, unidade de intenção, de vontade, de desejo, de aspiração”. E Kardec reforça a utilização de tal comunhão nas assembleias religiosas, afirmando que TODAS estas são fundadas naquela. E cita Jesus: “Quando diversos de vós estiverdes reunidos em meu nome, eu estarei entre vós”, conforme a poesia evangélica.
Mas, sem peias, registra a corrupção das organizações firmadas sobre o elo de natureza religiosa, para, sem escrúpulos ou ética, que, segundo ele, se afasta(ra)m do verdadeiro objetivo de tais agremiações, que seria a citada comunhão.
Então Kardec avança nos elementos que diferenciam a religião da “religião” para dizer que, da comunhão de pensamentos, que ele traduz como “laço” que une (ou religa) pessoas em sentimentos, princípios e crenças, há uma deturpação do mesmo para simbolizar “princípios codificados e formulados em dogmas ou artigos de fé”, sobrepujando os interesses pessoais aos coletivos.
E conclui: “no sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião […] porque é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre as mais sólidas bases: as próprias leis da natureza”.
Eis, aí, a essência desta “nova fase” de Rivail-Kardec. Acreditar – como, aliás, ele (e, também, os Espíritos) diz(em) em outros trechos, que “o Espiritismo se tornará crença comum”, alcançando TODA a Humanidade. Este sentido de crença não é, entretanto, a prática de uma fé, uma religião ou uma seita comum, mas o esposar (e compreender) os mesmos princípios que estão contidos nas Leis Naturais (Divinas ou Espirituais).
Então, Kardec promove um “banho de água fria” naqueles que cogitam ser, na estrutura mundana, nas organizações político-jurídico-sociais, o Espiritismo como uma Igreja (ou Religião institucionalizada). Diz ele: o Espiritismo NÃO É uma religião, “Porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da ideia de culto; porque ela desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem”. E, sendo ainda mais assertivo, contundente e conclusivo, ele consagra: “Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria aí senão uma nova edição, uma variante, se quiserem dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; ele não o separaria das ideias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião pública se levantou”.
Uma pá de cal, destarte, na ideia (equivocada) de “religião espírita” ou de “tríplice aspecto”, ou, ainda, mais particularmente a de “aspecto religioso do Espiritismo”, como, aliás, está estabelecido na teoria emmanuelina (relativa ao guia de Francisco Cândido Xavier), de um “triângulo espírita”, formado pelos três vértices (Ciência, Filosofia e Religião). Se o próprio padre Manuel da Nóbrega, em colóquio com o humilde e devotado médium mineiro tivesse se escutado, quando prelecionou ao Chico – e aos demais espíritas – que “na dúvida, fique com Kardec”, ele se pôs em dúvida, contrariando este texto de Kardec, para apresentar um conceito esdrúxulo, particular, disforme em relação à principiologia espírita e, mais que isso, não submetido ao Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos (CUEE). Pois, aí, tem-se a OPINIÃO PARTICULAR DE UM ESPÍRITO (no caso, o sacerdote) sendo tomada como regra, na “ambiência espírita”, para influenciar uma parcela majoritária de espíritas que (ainda) precisa da religião como organização coletiva e como “bengala” para as suas expressões de fé.
O mentor, assim, rasgou o seu próprio ensinamento e se distanciou de Kardec. Mas não esteve, ele, sozinho nesta empreitada, justamente porque, com base na tal “comunhão de pensamentos”, encontrou respaldo em outros comunicantes e nas instituições espíritas em geral que se constituem como templos ou igrejas, adotando, ainda que de modo adjetivo, as expressões de culto presentes nas religiões cristãs.
Conclusão.
O que uma simples pintura pode provocar, não é mesmo? Em verdade, os detalhes são pontos importantes em qualquer discussão e estudo espíritas. Como o “todo” se compõe de diversas “partes”, é importante repousar o olhar sobre diversas situações ou elementos, para a compreensão do conjunto e da essência.
Devemos dizer, por fim, que Kardec FOI, sim, um homem religioso. E que se esforçou, cremos, ao máximo para não permitir que as (suas) ideias pessoais interferissem na produção do conjunto (todo) que é o da Filosofia Espírita. Convencido de que estava, de que tais afirmações seriam revolucionárias para o conjunto da Humanidade, a ponto de, como visto, se apoiar na resposta dos Espíritos sobre a circunstância futura de todos os homens e mulheres deste orbe serem espíritas, não no sentido de alinhamento a uma mesma ideologia institucionalizada, de adesão a uma majoritária filosofia, ou de submissão a uma única religião, mas por professarem, por convencimento e certeza, os mesmos princípios que estão afirmados pelo Espiritismo.
Mesmo assim, Kardec, por sua condição natural (humana), e com as limitações da condição de Espírito encarnado, acabou tomando decisões e se expressando com as peculiaridades que estavam ao seu alcance. Teve, ele, assim, papel preponderante para a atual fase que vivemos no movimento “dos espíritas”, iniciada, aliás, com a própria publicação de OESE, e que ainda perdura, passados 164 anos (2021-1857), o chamado “Período Religioso” (ver, a este propósito, a dissertação intitulada “Período de Luta”, inserta na Revue, edição de dezembro de 1863).
Religioso que era, Kardec acabou transferindo a sua fé pessoal para a ambiência espírita, o que está marcantemente fundado nos excertos que trouxemos a exame neste artigo e, principalmente, ainda que possa merecer alguma contrafação dos leitores, na presença de um quadro religioso, de sentido místico, em seu escritório familiar, destacando-se a afeição natural de um religioso em relação a figuras da cristandade, ou, ainda, de veneração e profundo respeito aos personagens (reais), ainda que com conotação de admiração, veneração e culto (veja-se a terceira parte de OLE e, entre elas, a Lei de Adoração).
O quadro, neste sentido, fala mais do que muitas palavras…
Edição: Abril 2025
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