Augusto Pinho
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Fé Raciocinada? Ora, um acreditar apoiado na razão, na lógica e na ciência já não se inscreve na definição de fé; pode estar em erro, mas é o saber que a razão, a lógica e a ciência alcançam.
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Richard Dawkins, numa nota em “O Gene Egoísta”, diz acerca da fé:
“Fé é um estado mental que leva as pessoas a acreditar em algo, não importa o quê, na ausência total de evidências que o possam confirmar. Se essas provas existissem, então a fé seria supérflua, pois as evidências levar-nos-iam, de qualquer modo, a acreditar. A fé não move montanhas, mas é suficientemente poderosa para imunizar as pessoas contra todos os apelos à piedade, ao perdão, a toda a decência humana. A fé leva as pessoas a acreditar tão fortemente numa coisa que, em casos extremos, elas se dispõem a matar e a morrer por ela, sem necessidade de quaisquer justificações adicionais. A fé religiosa merece um capítulo, por direito próprio, nos compêndios das tecnologias de guerra”.
Não parece fácil de refutar.
Acreditar não é saber; o acreditar sem ver do episódio de Tomé (Novo Testamento da Bíblia cristã — manual de maus costumes, segundo José Saramago) é um convite à felicidade da ignorância — e a ignorância é a raiz de todos os males. Mas segundo o mesmo livro, conhecer a verdade liberta… da ignorância. Portanto, o saber é superior ao acreditar. Aliás, no apócrifo conhecido como Evangelho Copta de Tomé, este discípulo que preferia o saber ao acreditar teve um tratamento único que, a ser verdade, o equiparava ao Mestre (versículo 13).
E qual Evangelho vale mais? O canônico que defende a fé pelo fato de, às denominações cristãs, lhes interessar ter os homens submissos, ou o apócrifo que defende o saber e as denominações cristãs rejeitam? Depois de tanta oralidade, interpretação, tradução, adulteração, adição, supressão, a probabilidade de que, quer os Evangelhos canónicos, quer os apócrifos, reproduzam com fidedignidade o que Jesus terá dito é reduzida — isto no sentido das frases, porque a reprodução exata dos termos era impossível. Além disso, onde há contradição, as proposições anulam-se; não podem estar todas certas — mas podem estar todas erradas. Posto isto, os Evangelhos são mais uma questão de fé do que de evidências a reconhecer.
Temos depois a “fé raciocinada”, conceito central no Espiritismo, que defende uma fé que se apoia na razão, na lógica e na ciência, em oposição à “fé cega”.
Porém, um acreditar apoiado na razão, na lógica e na ciência já não se inscreve na definição de fé; pode estar em erro, mas é o saber que a razão, a lógica e a ciência alcançam. Daí que “fé raciocinada” seja um eufemismo utilizado para não ferir suscetibilidades. Dado que o Evangelho ficou central no Espiritismo, a fé também teria de permanecer.
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P.S.: E por falar em “subtilezas”, a pergunta: “Qual é o ser mais perfeito que Deus ofereceu ao homem para servir-lhe de guia e de modelo?”. A resposta, no original francês, é “Voyez Jésus” (Vede Jesus). Nas edições em português, de Portugal e do Brasil, numas surge conforme o original, noutras simplesmente Jesus. Acontece que não é a mesma coisa, o alcance é diferente. Não é inocente este “descuido”.
Sendo a resposta simplesmente “Jesus”, ela absolutiza, não dando lugar a alternativas; sendo “Vede Jesus”, serve como exemplo, mas dá espaço a alternativas. Entende-se que a falar para a cristandade Jesus seja a referência a apresentar; afinal, a cristandade não aceita outra, se conhece qualquer outra. Todavia, não parece descabido supor que a falar para outras culturas, para outras regiões do globo, os avatares seriam outros: Krishna, Zoroastro, Sidarta Gautama, Confúcio, Maomé… E, pelo mesmo motivo, de não aceitarem outra referência…
Imagem de Yves por Pixabay





Um texto profundamente filosófico que nos leva a meditar sobre a fé que simplesmente acredita sem necessidade duma explicação lógica, ou a fé raciocinada com base na razão e na lógica e qual delas a que cada um de nós professa. Grata pelo texto.