Paulo Freire, somos seus alunos!, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 5 minutos

Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Imagem: Slobodan Dimitrov, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons

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No dia alusivo ao professor, 15 de outubro, homenageamos um dos maiores mestres brasileiros, Paulo Freire.
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A unanimidade é burra, escreveu Nélson Rodrigues. Estudar a alma humana e detectar detalhes psicológicos é tarefa para poucos.

Neste dia do Professor poderíamos homenagear distintos mestres. Em áreas ou especialidades plurais. Preferimos escolher um, para considerar não só a cátedra, a excelência de ensinar, mas para ressaltar a essência do povo brasileiro: Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997).

Paulo Freire, professor por excelência, pernambucano, filho de um policial e de uma dona de casa, pertencia à classe média. Viveu e entendeu a vida de forma sublime, dinâmica e amorosa. De que vale saber se Ivo viu a uva, se a barriga sente fome e a mente nunca viu, nem Ivo e muito menos saboreou uma uva?

Angicos bem poderia ser o seu codinome. Referência à revolução de Angicos – episódio a dividir estruturas e desmoronar exclusões, no qual trezentos adultos, trabalhadores, moradores da cidade que tem esse nome, aprenderam a ler (em quarenta horas de estudo) e a entender o que liam, para, depois, num ato de profunda libertação, reivindicarem nada mais (nem menos) do que seus direitos como humanos produtores de riquezas. Seres de riquezas. Múltiplas.

Estava lançada, para tais seres, a independência a partir dos saberes, estimulando-os ao pensamento filosófico e político, de uso em larga escala na vida.

Freire é Honoris Causa – Doutor Honoris Causa. Título deveras marcante e, mais ainda, quando 42 Universidades o contemplam, na qualidade de professor emérito, “Distinguished Educator”, investigador reconhecido de várias universidades brasileiras e estrangeiras. Além disso, foi laureado com prêmios dos mais variados: “Educação para a Paz” (Unesco) e “Ordem do Mérito Cultural” (governo brasileiro). Também integra o “International Adult and Continuing Education Hall of Fame” e o “Reading of Fame”, documentos que listam pessoas ou líderes educacionais de todos os tempos, no planeta.

Além disso, tem seu trabalho reconhecido e aplaudido em todo Planeta, como um dos maiores especialistas em Pedagogia, sendo estudado e citado em um inumerável conjunto de trabalhos acadêmicos, de Graduação ao Pós-Doutorado. Ao mesmo tempo que seguido e amado, é perseguido e incompreendido, de seu tempo até os dias atuais.

Relembremos que, com o golpe (militar) de 1964, impondo a censura e a perseguição aos homens livres, Paulo foi preso e o seu Plano Nacional de Alfabetização viu-se desmoronado. Em seu livro “Cartas a Cristina” (1994), o educador faz um paralelo entre dois momentos de sua vida. No primeiro, relembra uma voz a dizer: repete, repete que aprendes, na Inglaterra, em sua capital Londres. A única geografia que conhecia era a dos quintais arborizados, cujas frutas podiam saciar a fome. Roubara um mamão e fora pego pelo dono da fruta – que lhe passou um sermão – quando tudo o que ele necessitava era a polpa daquela fruta, mas recebeu palavras, palavras que pouco entendeu. Essas não aplacaram as fomes: a do corpo e a da busca. No segundo, anos mais tarde, ouviu: “Capitão, mais um passarinho pra gaiola”, quando os Anos de Chumbo o alcançaram.

Livre do cárcere, prosseguiu em sua tarefa, a de despertar pessoas – justamente o mote para a sua detenção e consequente tortura. Porque ensinara que a educação deve servir para a liberdade, pois o ser humano precisa ser livre para fazer escolhas, construir estruturas necessárias aos seres que compartem consigo a sociedade. Não deveria ser possível condenar muitos homens à cegueira (intelectual), enquanto a poucos é revelada a vida. Paulo entendeu todos os porquês. Compreendeu as reais necessidades do educando, sobretudo a dos adultos colocados de lado, em época tão empobrecida de valores sociais.

Filósofo – apesar de ter se formado em Direito e em Linguística (Filosofia da Linguagem) –, é considerado o Patrono da Educação Brasileira, estudou e ensinou até a sua morte. Na sua madureza, pôde contribuir largamente com a Pedagogia em área governamental, sendo Secretário de Educação do Município de São Paulo (1989-1991), no governo de Luíza Erundina.

A filosofia, neste sentido, tem no seu cerne a observação. Filosofar é ter a capacidade de entender o presente e detectar o futuro, não num exercício de mágica ou de adivinhação, mas, essencialmente, de lógica, de percepção. Isso Freire teve de sobra. Poderia se dizer que era dono de uma “sensibilidade visual”. Entendia as pessoas e via nelas o potencial a ser despertado. A educação e a consciência de classe como caminho para a modificação social.

Num cenário de tantos problemas sociais, quando consultado, Freire assim respondeu:

“Se, porém, você que me lê agora, me perguntar se tenho receita para a solução, lhe direi que não a tenho, que ninguém a tem. Uma coisa, contudo, eu sei e digo por que a história nos tem ensinado, a história dos outros e a nossa, que o caminho não é o do fechamento antidemocrático, dos regimes de exceção, de governos sectários, intolerantes e messiânicos, de direita ou de esquerda. O caminho é o da luta democrática pelo sonho possível de uma sociedade mais justa, mais humana, mais decente, mais bonita, por tudo isso.”

A história parece se repetir. Estamos diante de momentos em que a ameaça de ampliação de poderes de um governo sectário, intolerante e messiânico põe em risco nossa (ainda frágil e jovem) democracia. O sonho de Freire é o nosso. E nossa atitude deve espelhar-se na dele, em seu tempo.

Sua trajetória nos enobrece. Saber que possuímos tão vasto material para contribuir na mudança de paradigmas sociais, nos faz grande. Palavras simples e certeiras em toda sua obra, a qual revolve as mais duras certezas, mudando, mas sem receitas.

(PF)

Pois hoje, em tempos infelizes como se viveu outrora, nosso Patrono tem sido chicoteado em seu nome e sua obra. A unanimidade, citada na fala de Rodrigues, no preâmbulo deste artigo, difícil de ser alcançada, em termos de compreensão, sobretudo daqueles que ainda vivem na obtusidade dos conceitos e na necessidade da imposição de suas “verdades”, impede que se enxergue a magnitude de um trabalho que traz como bandeira, apenas e tão-somente, a real essência do humano e da humanidade.

Os que não o leram, e os que, se leram, não o entenderam, minimizam seu trabalho e restringem a visão para padrões de política partidária ou de cegueira, por vezes histérica, que pressente um inimigo inexistente. Todavia, um novo tempo está surgindo e, às vezes, é preciso que o ser se arraste rente ao chão para entender necessidades. O oprimido (e sua pedagogia) ressurge, porque entende sua força, e se agiganta se enxergando no outro em busca da luta pela vida com dignidade.

É, de fato, a educação que ressurge – e, por educação, se entenda o respeito ao pensamento e às aspirações alheias. É o ato contínuo e progressivo de viver em sociedade, com livre arbítrio, mas respeitando o conjunto – e o outro, sabendo que dele sairão ideias distintas e elas devem ser expressadas. Nem a um lado nem a outro, mas sim à Liberdade. A Educação como prática da Liberdade e do Amor. E, nisto, o próprio ato de existir, como a rotina de viver e de modificar a forma de entender, com a individual responsabilização pela educação e, em consequência, pelo coletivo social.

Seu corpo não existe mais; contudo, suas ideias vivem naqueles que foram despertados pelo seu saber, seu jeito franco e aberto, sua percepção e a capacidade “percebedora” dos que vieram para alavancar a humanidade. Paulo conviveu e viveu para construir e desconstruir valores e o status quo, pois não se aprende sem desaprender, não se ensina sem amar, para aprender é preciso se sentir parte daquele que nos estende a mão, pensar certo e para tanto não ter certezas. Porque cada uma das certezas, se alcançadas pela frágil permanência, nos tolhem a capacidade de criação, porque ensinar é aprender junto.

Ensinar é, assim, freireanamente, um gesto de doação, de amor, portanto de extrema sensibilidade. A mesma sensibilidade que queremos seja a diretriz a motivar nos indivíduos – e, sobretudo, nos homens de poder de nosso tempo e do nosso Brasil – a empatia e a ação educadora que livre todos de todas as indigências, as materiais e as morais.

Prosseguimos, Paulo, sendo seus alunos…

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

3 thoughts on “Paulo Freire, somos seus alunos!, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

  1. Não conhecia na sua essência o pensamento de Paulo Freire. Surgem de quando em vez na nossa urbe,espíritos que se destacam pelo brilhantismo das suas ideias que nem sempre são reconhecidos como merecem. Esta é certamente uma justa homenagem a um desses seres com uma mente brilhante que não esteve ao alcance de todos os seus contemporâneos compreendê-lo Excelente.

  2. Um belíssimo texto do sempre presente mestre Paulo Freire, uma simbiose de biografia e conceitos educacionais de amor, despertar e liberdade.

  3. Eterna admiração ao educador Paulo Freire! Sou e serei sempre sua aluna!. Embora a triste lembrança de vê-lo passar pelo constragimento de se manter calado e sentado no dia da colação de grau da minha turma de Serviço Social de 1979 – FMU/SP, jamais sair da minha mente. Infelizmente a mão dura da ditadura calou a voz do nosso Patrono, diante de mim e dos meus colegas. Porém não conseguiu impedir suas ideias, as quais reverberam no tempo, porque estão impregnadas de amor, carinho e respeito a capacidade de cada um de nós. Obrigada, por tudo, querido! 🙏

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