Marcelo Henrique
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Uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais.
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Foge no tempo e na memória a primeira vez que ouvi a expressão “todos aprendemos uns com os outros”. Pode ter sido em alguma conversa familiar, naquelas lições que mães ou pais nos legam em conversas “descompromissadas”, entre garfadas ou ações corriqueiras no lar. Ou, então, entre algumas aulas enfadonhas, com a “decoreba” de fórmulas ou conceitos, em que um Mestre se destacava como ouro em meio a bijuterias.
Eis que a frase ficou e reverbera até hoje. Os aprendizados são diários. Basta, como teria dito aquele Carpinteiro Sublime, o Magrão (Mt; 13:15), ter “ouvidos de ouvir” ou “olhos de ver”. Porque, como muito tempo depois o nosso Zé Perri — que esteve em terras florianopolitanas com o seu aviãozinho — consagrou em “O Pequeno Príncipe”: “o essencial é invisível aos olhos”. Porque é com outras lentes e outras orelhas que precisamos perceber…
O fato é que as lições vêm e tomam conta de nós, justamente quando nos apercebemos que, mesmo, por vezes, em situações, contextos e palavras simples, encerram grande sabedoria. Aliás, esta, a sabedoria, é um “plus” em relação à intelectualidade e ao conhecimento propriamente dito. Saber é mais que conhecer. Saber importa ter alcançado, no percurso, aquele diferencial de quem, já conhecendo, aplica. Ou seja, vive o que entende e fala. Este “caminho”, também, registre-se, veio da fala “descompromissada” (ou, nem tanto) de uma outra professora — de quem, nos escaninhos da memória, o tempo fez apagar: “primeiro pensamos, depois falamos, para agirmos: eis a fórmula de entender a vida”.
Quero falar de alguém que tem me “ensinado” bastante. Ou, para honrar o título, que tem contribuído para NOS (eu, ele e os demais que conosco convivem) afastarmos dos fanatismos que nos rodeiam. E são muitos! Mas é preciso contextualizar o(s) fanatismo(s), para que não reste qualquer dúvida sobre o alcance dele(s).
Porque, a princípio, se associa o fanatismo APENAS ao contingente/contexto/cenário religioso. Porque, em verdade, é no seio das religiões, seitas e crenças que ele aparece com mais força e destaque, convenhamos. Mas a sua aplicabilidade exorbita a religião ou a fé, podendo estar presente em diversificadas áreas, temáticas e locais de convivência.
Conceitua-se, assim, o fanatismo como a adesão do indivíduo ou de grupos, de forma exacerbada ou exagerada, a crenças, causas ou ideias, afastando qualquer perspectiva de questionamentos, assim como a possibilidade de discussão, a partir de outros vieses ou pontos de vista, por vezes com intolerância ao(s) diferente(s). Não raro, os fanáticos excluem de suas relações e “vidas”, aqueles que pensam diversamente, justamente por serem incapazes de considerar outras visões e interpretações, substituindo o raciocínio (razão e lógica) por dogmas.
Feito esse (necessário e oportuno) introito vamos falar do nosso amigo: o Neco, Manoel Fernandes Neto. Já são algumas décadas de convivência e uma sólida amizade. Vou buscar uma outra metáfora, lá da adolescência, para explicar a minha “saga” com o Neco: “amizade é uma planta que se rega diariamente”. Sim! É preciso cuidar da amizade (e dos amigos), ao mesmo tempo em que é essencial deixar-se cuidar por eles. Os amigos são os únicos que nos dizem verdades, porque sua intenção não é bajular, concordar ou aprovar incondicionalmente o que fazemos e o “como” somos. Um verdadeiro amigo critica — construtivamente — com aquele carinho de quem quer que sejamos melhores e mais felizes. Sempre!

Esses dias o Neco escreveu uma instigante crônica que falava sobre os fanatismos (veja o link ao final). Nela, meu amigo jornalista, editor e curador de conteúdos, NOS apresentou um provocativo autor israelense (e sua obra), Amós Oz, falecido em 2018 e autor de “Contra o Fanatismo” (2002, Ediouro), que, segundo ele, é a “compilação de conferências proferidas por Oz na Alemanha, em 2002”, permanecendo atual – inclusive para nós, geográfica e culturalmente bem distantes do “mundo” oziano. Diz Fernandes Neto (2025, s. p.): “Suas reflexões continuam atuais, em um planeta que ainda não compreendeu os fanatismos e segue sendo devorado por eles”.
Devorados é uma expressão autofágica porque o fanatismo não está no exterior, nas coisas, nos outros. Está em nós. E nos consome, porque assim permitimos. Simbolicamente, nos recordamos das aulas de biologia, estudando a endocitose e, nela, um tipo mais específico, a fagocitose, caracterizada pela entrada de substâncias em uma célula. Pois bem, o fanatismo é “fagocitado” por nós, ou seja, nós permitimos que ele entre em nossas ideias e sentimentos e “tome conta” de nosso Espírito.
Amós tem uma trajetória que nos inspira para as batalhas (diárias e permanentes) contra todos os fanatismos possíveis e imagináveis. Ilustra Neco: “Dentro de Israel, transitou com suas palavras, debates e diálogos pela esquerda, centro e direita; sempre ouvido, criticado e ponderado por intelectuais e autoridades — em um país que preserva seus pensadores e não bloqueia seus debates”.
Esta é uma importante lição para o hoje e para a posteridade. Afinal de contas, num mundo cada vez mais plural, em face do próprio progresso humano-social (e das legislações que asseguram direitos, apesar da gangorra política das nações, que alterna regimes mais conservadores ou progressistas, fechados ou abertos, castradores ou libertadores), é fundamental respeitar-se mutuamente, dentro da premissa de liberdade de pensamento, convicção e expressão. Mesmo que a ideia do outro nos pareça estapafúrdia e incoerente, ela serve para ele e, nesse sentido, não está sujeita ao nosso crivo de aprovação e permissão.
Manoel reitera a importância dos escritos do israelense para a compreensão ampla dos fanatismos na atualidade planetária, prenhe “de fanáticos em esferas políticas e sociais. E, reportando-se a Amós, transcreve seu pensamento (2002:15):
“Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de forçar as outras pessoas a mudarem. A inclinação comum de melhorar seu vizinho, de consertar seu cônjuge, de guiar seu filho ou de endireitar seu irmão, em vez de deixá-los ser.”.
Nas relações interpessoais este cenário é repetitivo, porque há dois “tipos” de “corretores personalísticos” entre nós: uns, invejosos, vaidosos, orgulhosos, que não desejam o sucesso do outro, seu destaque e reconhecimento, e, portanto, não raras vezes, se travestem em “amigos fieis” para censurar “com muito tato e cortesia” aquilo que fazemos, visando que não sejamos virtuosos ou reconhecidos; outros que, mesmo movidos pelo sentimento verdadeiro de afeição e amizade, acreditam estar nos ajudando com seus “conselhos”, castrando nossa liberdade, pelo “nosso bem”, isto é, acreditando piamente que as nossas escolhas não são boas e que, se estivessem no nosso lugar, fariam isso ou aquilo…
Isto está no “universo” oziano (2002:15): “a essência do fanatismo reside no desejo de forçar as outras pessoas a mudarem. A inclinação comum de melhorar seu vizinho, de consertar seu cônjuge, de guiar seu filho ou de endireitar seu irmão, em vez de deixá-los ser.”.

Oz reposiciona o conceito com novas definições, sem alterar a sua essência de preconceito, intolerância, destruição e morte. Para o autor, o fanático quer obrigar as outras pessoas a fazerem exatamente o que ele quer.
Mas há um componente “político” muito importante — sobretudo para tempos como os nossos em que, a partir do FlaFlu infinito e interminável entre os que assumem ideologias antagónicas, é preciso estar “nem tanto ao Céu e nem tanto à Terra”, para que se estabeleçam e mantenham as (necessárias e úteis) dialógicas dos distintos ambientes em que se convive. A esses Amós chama de moderados, os únicos capazes de enfrentar e deter os fundamentalistas de lado a lado.
Esta é uma mensagem importante para os dias atuais, em que se busca impor uma/algumas ideia(s), filosofia(s) ou crença(s), como se todos devessem entender a realidade e o mundo de uma única maneira. O fanatismo. Inclusive é ainda mais perigoso e com efeitos devastadores quando a imposição de crenças alcança os cenários social e político. Corre-se sérios riscos. De ditaduras: religiosas, políticas, conviviais-sociais.
Por isso, é importante que a linguagem seja clara, mas respeitosa. Que não se imponha ao outro, sob qualquer hipótese. Porque a finalidade da comunicação é ser ponte (e não muro) entre as pessoas.
Então, mesmo considerando a materialidade do mundo, onde a realidade se impõe e se consagra, não devemos deixar de lado a imaginação — que é criativa e transcendente — que plasma um mundo melhor, à frente, sobretudo porque ela permite que, em muitos casos, a vida não seja assim tão dura.
Amós, então, nos convida a imaginar e viver, aperfeiçoando nossa linguagem e nos afastando de qualquer fanatismo. E eu agradeço o Manoel Fernandes Neto por ter NOS convidado a refletir a partir dos paradigmas do escritor israelense. Até uma próxima, dica, Neco!
Imagem de Alana Jordan por Pixabay
Fontes:
Saint-Exupéry, A. (2013). “O pequeno príncipe”. Trad. Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: Agir.
Fernandes Neto, M. (2025). Amós Oz: fanatismos, linguagem e imaginação. “Jornal GGN”. Opinião. Disponível em: <Acesse o texto>. Acesso em 2. Nov. 2025.
Oz, A. (2002). “Contra o fanatismo”. São Paulo: Ediouro.




