Marcelo Henrique [1]
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Naquela tarde-noite de 24 de dezembro algo diferente aconteceu. Inesperado e instigante. Muito mais do que se esperava…
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A mesa está preparada, caprichosamente. O aroma dos quitutes, preparados com esmero, enche o lar, fazendo salivar bocas. Em um canto, da sala principal, uma árvore de Natal do tamanho que as condições financeiras permitem e, sob a mesma, alguns pacotes para serem trocados antes da ceia.
Eis um cenário que é bastante comum às mulheres e homens do nosso tempo, como dos anteriores. Particularmente, tenho registros na tela mental destas situações, desde tenra infância. Certamente não me lembro dos presentes ou dos quitutes, mas me lembro de abraços, beijos, sorrisos e da “atmosfera” familiar e de congraçamento que invadia o lar.
Hoje, como antes, é bem possível que, neste fim de tarde e início de noite de 24 de dezembro, todos estejam se preparando para tomar banho e se vestindo com as melhores roupas. Afinal, para muitos, é a grande oportunidade de rever familiares e amigos – talvez a única do ano…
É exatamente aí que entra o nosso personagem: o Magrão! Você já deve ter lido esse nome em outros artigos, aqui no ECK. É a forma carinhosa, de proximidade íntima, com que nos referimos ao homem que mudou a história ocidental, com sua mensagem — apesar, é claro, da aura mística e mítica que a cristandade lhe impingiu, distante (e muito!) daquele simples (e singular) moço da Galileia: com barba espessa, cabelos cumpridos, túnica e sandálias. De face mais escura, queimada do sol árido daquela terra e descendente judeu de uma região bem distante do padrão alvo e loiro da Europa da renascença – e das telas encomendadas pela Igreja.
Diante da relativa inquietude e ansiedade do preparo da Ceia de Natal, eis que o Magrão bate à sua (nossa) porta. Não vem, ele, com nenhum adereço cristão, nem, tampouco, com qualquer aura de santidade ou espiritualidade. Trajado daquelas mesmas roupas, simples, talvez não a túnica — já que este traje não pertence à nossa cultura no Ocidente — sem qualquer adorno ou aparato. Toca a campainha, e um de vocês (nós) precisa atender…
Quem será? Ainda é cedo para a confraternização. Para a hora marcada ainda falta relativo tempo, horas talvez. Será algum pedinte? Um vizinho precisando de algo? Alguém perdido tentando se localizar? Um entregador de IFood ou de alguma encomenda da Shopee ou Mercado Livre? Todas essas ideias, rapidamente, preenchem o cérebro, enquanto se direciona até a porta.
O homem que aparenta uma idade adulta, mas com ar jovial, lhe acena com um largo sorriso e lhe cumprimenta. Você retribui, ainda que num misto de surpresa, incredulidade e impaciência, pois há muito, ainda, que fazer, nos preparativos da “grande noite”. E, ele, então, diz: — Vim te trazer a paz e a alegria, meu irmão (ou minha irmã)! Deus sê convosco!
Você se prepara, na sequência, para o que “deve” vir. Com certeza algum dos petitórios comuns dessa época, para ajudar financeiramente algum lar de crianças, hospital, asilo ou alguma família que não tem o mínimo de sobrevivência digna, seja no Natal, seja nos demais dias… Talvez não peça dinheiro, mas alimentos, roupas ou sapatos…
Os segundos em que você imagina isso passam depressa. Mas o pedido não vem. O homem continua ali, sorrindo e desejando que você faça algum gesto, ou continue a conversa. Em vão!
Você, então, arrisca um questionamento: — Meu amigo, o que você deseja? Estou tão atarefado(a)… E o homem esguio, calejado pelo tempo, mas de boa aparência e cativante energia, apenas repete: — Vim te trazer a alegria e a paz!
Você apenas agradece, laconicamente, os votos, dizendo que tem muito a fazer, lá dentro, pedindo escusas, apertando-lhe as mãos e, logo, fechando a porta. Mas, ao invés de deslocar-se para dentro de casa, para os tais “afazeres”, fica ali, por um ou dois minutos pensando no que viu, refletindo sobre o que aquele homem lhe havia dito…
A perplexidade ante o ineditismo da cena logo se transmuda em indignação. Como assim? — você indaga — quer dizer que não tenho paz? Que não convivo em alegria? O que ele sabe de mim? Quem é ele para me dizer isso! Eu sou feliz!
E segue, novamente, para abrir a fechadura e ver se ainda o ousado e impertinente personagem está pelos arredores. Sai à rua, olha para todos os lados e nada vê… O homem não mais está ali, nas cercanias. Talvez, você imagina, esteja importunando algum vizinho. E, ora, ora, deve ter encontrado algum “emotivo” ou “incauto” que lhe deu guarida, fazendo-o sentar na sala. Quem sabe, até, lhe ofereceu água, café ou um refresco… Mas que coisa!
Você olha para o relógio e precisa se apressar. Logo, logo, aí, sim, seus amigos e parentes vão chegar para os abraços, beijos, sorrisos, apertos de mão e papos descontraídos na Ceia. Logo você esquece do personagem…
A noite transcorre com a tranquilidade habitual dos festejos. As risadas sobre lembranças e casos pitorescos e a curiosidade diante de fatos novos denota um ambiente de alegria e paz. Um momento ímpar, é verdade, uma pausa merecida diante do infindável corre-corre pela sobrevivência que TODOS os humanos têm, nos dias presentes. E não é que estamos em paz e alegria? E o enigmático personagem volta à sua tela mental…
Aquela indignação de horas antes, após fechar a porta, dá lugar a um tímido sorriso. Você olha pra baixo, meio envergonhado. Sua face até ruboresce um pouco. Mas, felizmente, ninguém percebe. É algo seu, totalmente íntimo e os demais seguem entre comentários e risos, saboreando a sobremesa e um gole de espumante ou suco…
Você olha no entorno, fita seus convivas, vê algo que irradia de seus rostos, para além das palavras. Toca uma música natalina de fundo, mas é outro “som” que você ouve: o seu íntimo. Lá está ele, novamente, com um sorriso — agora maroto e um olhar ainda mais doce e convidativo. E, fitando-te, ele diz (ainda que só você escute a sua maviosa e compassada voz): — Eu te disse! Só quis te trazer paz e alegria! Fique bem! E conserve-as, em teu viver!
Uma lágrima, arredia, teimosa, desce pelo canto de seu rosto. Um ou outro amigo percebe e questiona: — Está tudo bem? O que houve? Algo que dissemos?
Você apenas sorri e balança a cabeça, negativamente: — Está tudo bem! É só a alegria e a paz que estou sentindo! Muito obrigado!
Um ou outro também procura um guardanapo para assoar o nariz ou secar alguma lágrima e todos se entreolham com carinho e reconhecimento.
É, Magrão… Você conseguiu! Você me trouxe, de fato, alegria e paz, muito mais do que eu esperava…
Um Natal do Magrão para todos vocês! Para todos nós! Hosana!
Notas do Autor:
[1] Texto recebido, por inspiração, de Herculano Pires, na manhã de 22 de dezembro de 2025.
Imagem IA – FreePik




