Wilson Garcia
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O Espiritismo, como doutrina progressiva, não se congela em sua origem. Permanece vivo na medida em que se deixa interpelar pelas questões atuais e responde a elas com o método da razão, da pesquisa e da fé raciocinada.
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Vivemos, sem dúvida, a fase do aperfeiçoamento do Espiritismo. Depois de sua aurora no século XIX e do esforço de sistematização realizado por Allan Kardec, coube às gerações seguintes não apenas preservar a herança recebida, mas também ampliá-la, revendo equívocos e incorporando novos horizontes de reflexão.
Nosso tempo é marcado pela aceleração do conhecimento humano e pela expansão dos meios de comunicação. Nesse cenário, o Espiritismo encontra uma dupla tarefa: de um lado, retornar às fontes genuínas do pensamento kardequiano, revendo interpretações imprecisas e sedimentações religiosas que se afastaram de seu caráter filosófico-científico; de outro, abrir-se à interlocução com as descobertas contemporâneas da ciência e com os debates atuais da filosofia e da espiritualidade, como o fez com as fontes que geraram as obras clássicas do espiritismo, no pós-Kardec.
O corpo doutrinário hoje
Quando se fala em Doutrina Espírita hoje, é preciso compreender que a referência não se limita aos cinco livros básicos de Allan Kardec nem apenas aos pilares filosóficos fundamentais que ele ergueu com rigor pedagógico. O corpo doutrinário é mais amplo e dinâmico: nele se incluem as obras e pesquisas que, desde o lançamento das primeiras formulações, contribuíram e contribuem para a ampliação de conceitos e informações, desde que alicerçados na mais firme metodologia da ciência racionalista.
É nesse sentido que se pode falar de um Espiritismo progressivo: não fechado sobre si mesmo, mas em diálogo com a razão crítica e com as descobertas que o tempo e o esforço humano produzem. As investigações de Ernesto Bozzano sobre a sobrevivência da alma, os estudos de Léon Denis que ampliaram a dimensão filosófica da doutrina, a defesa do método kardequiano feita por José Herculano Pires, ou ainda os trabalhos contemporâneos sobre consciência e experiências de quase morte (Greyson, Van Lommel, Batthyány), são exemplos de desdobramentos legítimos. Eles não substituem Kardec, mas o prolongam, mostrando que o Espiritismo não é apenas um ponto de chegada, mas um ponto de partida.
Esse corpo doutrinário, portanto, não deve ser confundido com um cânone imutável. Kardec nunca pretendeu construir um dogma; ao contrário, defendia que o Espiritismo se corrigiria diante da ciência e da razão. O que dá legitimidade às contribuições posteriores é justamente o espírito metodológico kardequiano: observação, comparação, crítica, universalidade de ensinos, e acima de tudo, a recusa a aceitar cegamente qualquer afirmação que não passe pelo crivo da lógica e da experiência.
Assim, o Espiritismo de hoje é fiel ao de ontem não por repetir fórmulas, mas por continuar a obra em sua dinâmica original: uma doutrina em evolução, atenta ao diálogo com a ciência, aberta ao progresso do pensamento humano e comprometida com o aperfeiçoamento moral da humanidade.
O movimento espírita
O mesmo raciocínio se aplica ao que chamamos movimento espírita. O que se solidificou historicamente como uma constituição integrada por instituições doutrinárias, associações e indivíduos a elas vinculados, transformou-se, ao longo do tempo, em algo mais amplo e complexo.
Hoje, o movimento espírita já não se restringe às casas, federações e organismos de representação oficial. Ele inclui um campo diversificado de atores sociais que assumem sua adesão – e até sua militância – em torno dos postulados fundamentais do Espiritismo, nascidos com Allan Kardec. Entre esses atores estão desde intelectuais independentes que pesquisam e publicam sobre a doutrina, até grupos informais de estudo que utilizam os meios digitais para difundir ideias e promover debates, passando por artistas, cientistas, jornalistas e educadores que incorporam a visão espírita em seus respectivos campos de atuação.
Nesse sentido, o movimento espírita é um fenômeno social plural. Conta – com ou sem a aquiescência das instituições representativas – com a presença de todos os espectros da sociedade que, em graus diferentes, reconhecem a contribuição do Espiritismo e se vinculam a seus princípios. Tal amplitude mostra que a doutrina extrapolou os limites das estruturas organizacionais e passou a integrar o tecido cultural mais amplo, influenciando consciências mesmo quando não se traduz em filiação institucional direta.
Isso revela que o Espiritismo, além de ser uma doutrina de base filosófico-científica e moral, é também um movimento vivo, que pulsa dentro e fora das instituições formais. Seu vigor não está apenas na preservação de tradições organizadas, mas na capacidade de inspirar novas gerações a pensar, sentir e agir à luz de seus princípios.
Ampliação e limites
É preciso, no entanto, reconhecer que esse caminhar progressivo não se faz sem riscos. Aqui e ali surgem aqueles que, movidos por intemperança, exageram nas suas reflexões e incorrem no equívoco – por vezes incontrolável – de querer mudar tudo a qualquer custo. No ardor de suas convicções, acabam instaurando um movimento de ruptura que, paradoxalmente, contém em si o germe da violência. São, muitas vezes, partidários da paz, mas não percebem que ao absolutizar a sua leitura e impor mudanças de forma precipitada, reproduzem os mesmos mecanismos de intolerância que pretendiam superar.
Além disso, há pontos que precisam ser enfrentados com seriedade, sob pena de comprometer todo o edifício doutrinário. Entre eles, destacam-se as alterações textuais introduzidas sem o devido critério histórico-crítico, que podem desfigurar o pensamento de Kardec, bem como as teorias duvidosas que surgem aqui e ali, revestidas de modernidade, mas carentes de fundamentos sólidos.
Sem dúvida, o movimento espírita é hoje mais amplo e complexo, mas não é um mundo caótico de uma doutrina despedaçada.
Evidentemente, há também as intromissões maliciosas, advindas tanto de encarnados, por interesses pessoais ou ideológicos, quanto de suas silenciosas comunhões com inteligências das sombras. Esses movimentos visam confundir e até mesmo destruir as bases do conhecimento espírita, na pretensão descabida de evitar seus efeitos positivos para a sociedade humana. Kardec já advertia contra esse risco em A Gênese, ao lembrar que a doutrina seria alvo de manobras ocultas e de tentativas de adulteração. Léon Denis, por sua vez, reforçava que a “obscuridade organizada” teme a luz da razão, procurando deturpar ou paralisar a marcha do progresso espiritual.
Esse alerta não deve servir como freio à evolução, mas como sinal de maturidade. O verdadeiro aperfeiçoamento não se dá pelo radicalismo destrutivo, mas pelo discernimento que sabe distinguir entre o que é essencial e o que é secundário, entre a necessária revisão e a precipitada demolição. Como lembrava Herculano Pires, o Espiritismo é uma obra aberta, mas que exige fidelidade metodológica e respeito ao princípio da fé raciocinada.
As chamadas experiências de quase morte (Greyson, 2010; Lommel, 2006), as pesquisas sobre a consciência não local (Batthyány, 2022) e os avanços da neurociência oferecem hoje dados que dialogam com o arcabouço espírita, convidando a uma nova etapa de estudos comparativos e aprofundados. O mesmo ocorre no campo da ética e da política, onde a visão espírita da dignidade humana e da fraternidade universal desafia o sectarismo e as polarizações de nosso tempo.
O Espiritismo, como doutrina progressiva, não se congela em sua origem. Permanece vivo na medida em que se deixa interpelar pelas questões atuais e responde a elas com o método da razão, da pesquisa e da fé raciocinada. Por isso, falar em “fase de aperfeiçoamento” é reconhecer que a obra de Kardec não se fecha em si mesma, mas abre caminhos.
Talvez estejamos, hoje, diante de uma das mais vibrantes etapas de sua história: aquela em que, sustentado pela herança do século XIX, o Espiritismo se projeta para o futuro como proposta de diálogo universal – entre ciência e espiritualidade, entre filosofia e religião, entre tradição e inovação.
Assim, a “sonata dos estudos e pesquisas” não é apenas metáfora, mas a própria música da evolução espiritual, que nos convida a ouvir, refletir e continuar a compor.
Fontes:
Batthyány, A. (2023). Threshold: Terminal lucidity and the border of life and death. St. Martin’s Essentials.
Greyson, B. (2010). Implications of near-death experiences for a postmaterialist psychology. Psychology of Religion and Spirituality, 2.1: 37.
Van Lommel, P. (2006). Near-death experience, consciousness, and the brain: A new concept about the continuity of our consciousness based on recent scientific research on near-death experience in survivors of cardiac arrest. World Futures 62,1-2: 134-151.
Imagem de Istvan Brecz-Gruber por Pixabay
Edição: Agosto de 2025
Editorial: sem medo de pensar!, por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos
O Espiritismo e os direitos da mulher, por Jon Aizpúrua (Português e Espanhol)
A Educação, sendo o entendimento espírita, por Ronel Barbosa
A Mediunidade em Crianças e Jovens e o Mito da Proibição, por João Afonso G. Filho
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