O elã da imortalidade, experimentos e covardias, por Manoel Fernandes Neto

Tempo de leitura: 4 minutos

Por Manoel Fernandes Neto

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Um conceito para o cotidiano, ainda pouco utilizado. 

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Encontrei um texto meu chamado “O elã da Imortalidade”. Elã, palavra que vem do francês, significa impulso, ardor, mas pode ser ímpeto, entusiasmo criativo, ou algo repleto de força. Uma inspiração incontrolável e envolvente. Com a imortalidade também é assim: algo sem fim, que todos nós sonhamos. Ou aquilo que devemos sentir como algo constante, com suas causas e consequências.

O conceito vai mais além. Existe quem tem o elã da mudança e da transformação; alguns, o da contemplação. Uns, muitos elãs; outros, poucos. Não existe elã destrutivo ou sádico. Elã é inteligência e sabedoria. Dalai Lama, Buda e Jesus: “caminho, verdade e vida” [ 1 ], como dizia este último. Sócrates foi arrebatado pelo elã do autoconhecimento: respirava-o em seus diálogos com discípulos e amigos e nas suas discussões produtivas com sua esposa, Xantipa.

Tenho o elã da insistência. Acordo às 5 da manhã para ter mais inspiração. Cabelos desgrenhados, café forte bem passado, a busca pelo texto perdido… Tenho feito e sentido coisas surpreendentes, aleatórias. Toda semana, assisto o filme “Ainda estou aqui” para ouvir a música do Erasmo Carlos e sentir o que quero ser: coração e resistência. Me arrependo dos livros que “arranquei” da estante e ofereci a alguém como presente: desapego com data de vencimento.

Sessenta anos espalham-se pelo meu corpo, entre dores e fricções. Óculos sujos, ou a minha visão é que está embaçada? Imortalidade é termo premente em mim, entre a  “letra que mata e o espírito que vivifica” [ 2 ].  Penso de imediato: eu deveria ter aproveitado mais os anos 1990, com todas as suas liberdades e paradoxos. Aflito, busco a frase desassombrada que talvez encante o leitor. No muro — um sonho? — um rosto grafitado: uma carranca com máscara de oxigênio. Assim me vejo, em busca de algum espaço para respirar.

A palavra elã, todavia, parece envelhecida em nosso cotidiano e arredores. Ao contrário do dicionário, resumir a abrangência do termo a momentos efêmeros ou a um simples impulso é insuficiente. Elã é constância:  um hábito natural e espontâneo e, como tal, não precisa ser vigiado.

Ciência e infinito

Mahatma Gandhi viveu na plenitude o elã da não-violência e da liberdade. Sua atitude pacífica e pacificadora atingia em cheio o “fígado” do opressor. Mahatma (“A Grande Alma”, em sânscrito) não fazia nada deliberadamente previsto. Estava, isto sim, envolvido no elã necessário que orquestrava cada um de seus atos. Mas isso antes dos cancelamentos da internet.

Imortalidade do Espírito: aceito e duvido, na minha posição atual de constante “corda bamba”. Duvidar é pesquisar e abraçar saberes. Herculano Pires, na nota 51 da sua tradução de “O livro dos Espíritos”, pela editora Lake, nos fala sobre o filósofo Henri Bérgson e sua obra “A Evolução Criadora”. Esse autor francês desenvolveu a teoria do elã vital:  “todo o curso da evolução, partindo da matéria mais densa, dirige-se à liberação da consciência no homem, aparecendo este como o fim último da vida na Terra”. O professor Herculano, diante disso, completa: “O Espiritismo vai além, admitindo a ‘escala dos mundos’, através da qual a evolução se processa no infinito, sempre com a finalidade da perfeição”.

Com tanto saber me deleito, mas desconfio. Penso constantemente na matéria densa, que se desmancha diante de nós. Porém, me animo com as conquistas da ciência: o remédio para cura dos danos na coluna; a vacina contra vários cânceres perto de ser alcançada; o Alzheimer cada vez mais desvendado; um novo implante no olho para dar luz a quem não tem. As IAs científicas fazem milagres sem andar sobre as águas e transformar água e vinho. Ou tudo tem a mesma origem?

Originalidades

O elã da imortalidade é um convite ao futuro, admito. Ser e estar. Esperança ou realidade. É o elã necessário ao cotidiano da nossa sobrevivência, que traz a certeza de que tudo passará e levará para um mundo melhor: sem racismo, misoginia, homofobia, desumanidades. Ou, sem aumento do custo de vida, distante do etarismo, longe da destruição planetária, de golpistas e bandidos, sempre em busca de alguma proteção ou anistia.

“Somos jornadeiros do progresso”, muitos bradam, felizes, em movimentos igrejeiros. Que progresso é esse? Até que ponto o elã da vida que não cessa nos transforma? Está em cada relação que mantemos? Na prática da imortalidade diária? Esta força propulsora que nos dá racionalidade, tolerância e esperança. Diz  Denis Villeneuve: “Apesar de conhecer a jornada e onde ela leva eu a acolho. E saúdo cada momento dela.”  [ 3 ].⠀

Uma análise franca de todas essas questões demonstra que não há experimentos suficientes do elã da imortalidade em nossa convivência. Estamos envolvidos por um cabedal de conhecimento, assistimos a aulas e palestras, estudamos, fazemos lives, indicamos livros, citamos autores renomados, marcamos encontros incessantes para proclamar utopias… Mas, na hora de fazer diferente, nos acovardamos. Belchior é uma ficção. Eu choro pela minha própria morte. Nem tudo precisa ter referência!

A imortalidade nos apavora. Mantemos o mesmo padrão. Não gostamos de experimentar. Repetimos e refazemos as mesmas lógicas. E o diferente não passa de uma intolerância a menos e um gesto compreensivo a mais.

O original é a generosidade que surpreende sobre a soberba deixada de lado. O “eu” em segundo plano, espontâneo. O singular é não cochichar iniquidades, mas sim, disseminar em alto e bom som experiências e dúvidas. O inédito é a eliminação de formalismos, normas, métodos, parágrafos únicos e a inclusão da espontaneidade, do diálogo e da dialógica (olha o ECK aí, gente!), da humildade na resolução dos conflitos, do bom senso.

Experimentos

Sentir pulsar serenamente o elã da imortalidade na nossa vida pessoal não é somente uma questão doutrinária. Na obra “Quem se atreve a ter certeza”, de José Pedro Andreeta e Maria de Lourdes Andreeta, a questão dos experimentos é esmiuçada de forma competente sob a ótica da filosofia. Dizem os autores: “Experimentar é uma forma de transcender a nossa individualidade. Quando experimentamos, toda nossa atenção está voltada para o experimento. Neste caso, somente o experimento existe, e nós, de acordo com a física atual, somos parte integrante dele. Não há quem observa; só há experimento. O observador está integrado, sentindo, fazendo parte do experimento”.

Perceber o elã da imortalidade é viver experimentos. Diários, no cotidiano de nossas relações sociais, mas, principalmente, nas nossas relações espirituais. Nelas podemos eliminar nossas miúdas idiossincrasias, nosso medo de viver novas experiências. Reciclar convicções cristalizadas por milhares de encarnações.

Na convivência, o elã da imortalidade deve ser exercido em sua plenitude, sem medo do contraditório. Ao “confiar”, agimos com autêntica amorosidade, racionalizamos atávicos rancores e integramo-nos plenamente em experimentos cada vez mais inovadores, pois criam e recriam o novo a cada encontro e reencontro.

Encontrei um texto meu chamado “O elã da Imortalidade”; mas ele não existe mais…

Notas

[1] Citação no evangelho de João (14:6).

[2] Referência a Paulo, em sua Segunda Carta aos Coríntios (3:6)

[3] Frase do Filme “A Chegada”, do referido diretor.

Imagem de Ofoto Ray por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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3 thoughts on “O elã da imortalidade, experimentos e covardias, por Manoel Fernandes Neto

  1. Ah, que delícia! Texto leve, mas profundo. Das nossas “neuras” e dos nossos “álibis”. Das nossas “manias” e dos nossos “roteiros”. Das “agruras” e das “compensações”. Poético-lírico, com acidez moderada, para que não deixamos de ser ESSENCIALMENTE HUMANOS… Parabéns, mano Nequinho!