Laicidade do Estado como princípio: O que temos nós espíritas a ver com isso?, por Marcelo Henrique Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Tempo de leitura: 5 minutos

Marcelo Henrique

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

A Universidade Estadual do Estado de Amendoeiras (fictícia), no Mestrado em Ciência Política, dada a considerável presença de espíritas, um terço da turma, decidiu organizar uma pesquisa com a finalidade de subsidiar a redação de um artigo para finalização de uma disciplina.

“- Kardec, se entre nós, encarnado, curtiria essa atividade”, palpitou um aluno.

Utilizando-se da escala Likert, um método no qual afirmativas são apresentadas e o respondente é convidado a emitir o seu grau de concordância com aquela frase, construiu-se um conjunto de sentenças no qual a nota zero seria discordância máxima e a nota dez seria concordância máxima. Como em qualquer instrumento de pesquisa ou aferição de opinião (pessoal) sobre dada temática, a nota cinco significa o ponto médio, ou seja, no nosso caso, nem discorda nem concorda, o ponto “neutro”. E os números entre um e quatro e entre seis e nove representam a gradação entre os pontos mínimo e máximo da escala em tela.

Assim, a turma montou na internet esse instrumento e o difundiu, focando no público formado por espíritas e simpatizantes, residentes no território nacional.

Na pesquisa, as sentenças a seguir foram apresentadas (e lhe convidamos que, ao ler cada uma delas, você anote, de zero a dez, a sua opinião, quanto à discordância total até a concordância total):

  1. O Espiritismo precisa de parlamentares que o representem oficialmente;
  1. O movimento espírita deve se envolver diretamente na discussão e na  defesa de projetos de lei, inclusive nas atividades doutrinárias;
  1. Dirigentes espiritas devem, nessa condição, emitir publicamente suas opiniões eleitorais e indicar candidatos;
  1. Concursos como capelania militar ou professor de educação religiosa devem ter cotas para espíritas;
  1. O Estado deve financiar as atividades doutrinárias que também envolvam ações de promoção social;
  1. Ao se candidatar, o espírita deve deixar claro sua vinculação religiosa e indicar que defenderá os ideais correlatos com a doutrina espírita;
  1. Espírita não pode defender nas redes sociais candidato que tenha bandeiras consideradas como anti doutrinárias, como o aborto e a pena de morte;
  1. As escolas públicas deveriam ter professores ensinando doutrina espírita para a formação moral das crianças e adolescentes;
  1. A arte espírita deve ser financiada por recursos públicos, como por exemplo as disposições contidas na Lei Rouanet;
  1. O Estado deve proibir práticas religiosas que sejam estranhas à cultura predominante no país;

Nesse ponto do presente artigo, estimado leitor, esperamos que você tenha feito a sua análise dos dez itens acima e, conforme antes sugerido, tenha atribuído pontuação a cada um deles. Bem, se a soma das suas notas ultrapassou cinquenta pontos, talvez a reflexão que faremos aqui lhe interesse muito, que será a relação da laicidade do Estado como princípio democrático e de que forma isso dialoga com a vivência no meio espírita, pautado pelas ideias de Allan Kardec, nessa conturbada terceira década do Século XXI, onde esse debate bate à nossa porta e ingressa em nossas relações cotidianas em diversos setores ou áreas da vida.

Na história da humanidade, e olhando o universo dos países, nem sempre a religião foi algo separado do poder político. Aliás, essa laicidade pura é fictícia. A república traz com força o ideal da laicidade, da separação do poder público do poder religioso, como apregoa a nossa Constituição Federal, a despeito da menção a Deus em cédulas e da presença de crucifixos em órgãos públicos, como tribunais judiciários e repartições dos poderes Executivo e Legislativo.

No caso do Brasil, temos alguns séculos da relação intrínseca das denominações religiosas com o Estado, seja na gestão da política social em suas diversas matizes, até a inserção de dispositivos específicos de matiz religiosa em leis e a existência de partidos políticos com clara vinculação a denominações religiosas (inclusive em termos de seus estatutos constitutivos, devidamente registrados nos órgãos competentes).

O Estado é laico, mas não é ateu, asseveram alguns, em tentativas de aliviar as múltiplas intervenções dos governos nas religiões e das religiões na atividade estatal. Vale dizer que, no caso do Espiritismo, entendido para fins dessa discussão como uma denominação organizacional e prática com características religiosas, sempre se preza por, nas atividades correlatas, de forma majoritária, ter a laicidade como princípio, admitidas certas interações e correlações, algumas muito sutis. Exemplificando, na questão tributária, as instituições espíritas costumam se valer da afirmação de serem organizações religiosas para gozarem do beneplácito da imunidade tributária, deixando de recolher, em relação à sede de suas instituições, o imposto predial e territorial urbano (IPTU), por exemplo.

O Estado laico é, por definição, uma forma de proteção da atividade religiosa do cidadão, entendida aqui como algo da esfera privada, bem como uma garantia do aspecto universalista e plural do Estado frente a particularizações reivindicadas por certas  denominações religiosas, em uma arena de confronto e luta, dado que a esfera religiosa naturalmente permeia o poder pela sua influência em grupos e nos seus julgamentos morais e, em muitas situações, apresenta dicotomias quanto às obrigações de dar/fazer/não fazer (lembrando a disciplina da norma civil brasileira), para umas e outras religiões.

Então, por que interessa a nós espíritas essa discussão no momento atual? Primeiro, por sermos declaradamente e estatisticamente uma minoria….Segundo, por termos (pelo menos em tese, dadas as premissas contidas na Filosofia Espírita originária, a obra de Kardec) um pensamento plural e não salvacionista…

Neste sentido – sem crítica à crença de cada um e à forma como cada religião pacificamente entende a vida, o universo, os humanos e as relações “entre o Céu e a Terra” –, a pauta sobre a laicidade do Estado deve ser uma preocupação essencial para a contemporaneidade brasileira (e mundial), justamente para que não se repitam – nem em pequena escala ou efeitos – episódios anteriores da nossa história humana, em que foram balizadas as manifestações, o direito de expressão do pensamento e as organizações da sociedade com parâmetros de UMA religião, a dominante, a “oficial” do Estado, em detrimento de todas as outras. Em distintas palavras, que se garanta – como está na letra constitucional – tanto o caráter laico do Estado (de não estar associado a nenhuma conformação de natureza religiosa) como a total liberdade de expressão, assim como de organização institucional e práticas, de todas as religiões presentes na contemporaneidade, em manifestações pacíficas.

E isto, assim, deixa de ser uma questão “particularmente espírita” e passa a ser um assunto de interesse (genuíno e premente) geral, uma vez que, sempre que houver uma (ou mais) religião(ões) proeminentes e, até, “dominantes” num contexto macro, o da sociedade brasileira, as que não estiverem em posições destacadas, poderão ter limitações e impedimentos, assim como desconsiderações ou nulificações, como já se viu em períodos da nossa existência humana.

A laicidade estatal – assim como, de regra, a das questões públicas e de interesse público e do bem comum – não importa, jamais, uma marca de arreligiosidade ou falta de espiritualidade. Pelo contrário. Cada um de nós, como ser presente neste Universo, tem suas crenças (íntimas, pessoais) e as utiliza nas distintas esferas de relação em que atua. Daí a condicionar os demais, por “força” de uma religião a comportamentos decorrentes da crença de uns (mesmo em maioria numérica), afastando-se todos os demais, é algo que não (mais) pertence à pauta da vida social planetária.

Se evoluímos, enquanto raça humana para esta condição de respeito – ao menos nas nações civilizadas e democráticas – pela liberdade de convicção e de expressão religiosas, não temos qualquer interesse em voltar passos atrás…

Imagem de Septimiu Balica por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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2 thoughts on “Laicidade do Estado como princípio: O que temos nós espíritas a ver com isso?, por Marcelo Henrique Marcus Vinicius de Azevedo Braga

  1. É na verdade um tema muito interessante. Se eu tivesse que responder ao questionário eu responderia Não em todas, por uma razão simples, Espiritismo Não é religião. A política não deveria emiscuir-se com religiões. Vejamos no tempo actual as guerras que ainda neste séc XXI estão a travar-se em nome de Deus, e de todos os lados invocam Deus como seu protector, no caso dos sionistas de Israel, dá-se o cúmulo da hipocrisia afirmando que são o povo de Deus. As guerras ao longo dos milénios têm sido feitas em nome desse deus, que ninguém viu e que todos afirmam que conhecem. O Estado deve ser laico, mas efectivamente laico, nenhuma religião devia ser privilegiada. Se a laicidade oficial dos Estados existisse, talvez não houvessem guerras inúteis, como as que estão em curso ainda nos nossos dias. Os milénios vão passando e nesse sentido, nada tem mudado.

  2. Henrique respondi e obtive 20 pontos dos 100 possíveis. A 6 vejo um ponto neutro, pois cada um decide o que importa na hora de fazer sua propaganda política; A 7 nenhuma dúvida tenho: quem defende algo contra os princípios doutrinários terão minhas críticas, sem dó, nem piedade (hehehe); A 8 novamente fiquei no ponto neutro, afinal se há ensino religioso e filosofia, há sim espaço para uma bela palestra a respeito da Doutrina, não só em escolas públicas, privadas e confessionais, como também em capelanias militares. Fui militar por mais de duas décadas e nas datas comemorativas fazíamos eventos da Cruzada dos Militares Espíritas como parte da comemoração. Bem diferente de ter-se um capelão espírita. Todas as demais foi ZERO a resposta. Estou convicto que daríamos uma chance para a paz se os fanáticos religiosos do Irã (xiitas) não ameaçassem seus irmãos islamitas sunitas. Ou seja, você está coberto de razões ao afirmar “UMA religião, a dominante, a “oficial” do Estado, em detrimento de todas as outras”. Parabéns pelo exercício e pelas ideias apresentadas. Claro que vamos divergir, mas isso é café pequeno.