Igualdade Divina e desigualdade humana, por Alexandre Júnior

Tempo de leitura: 7 minutos

Alexandre Júnior

Do que se trata então a igualdade, que não seja uma busca coletiva pelo aprimoramento das leis que suscitem melhor qualidade de vida para todas, todos e todes aqueles que estão conosco nesta aventura planetária chamada vida? De que serve a aquisição individual de bens terrenos, se em nome da abastança os nossos irmãos de jornada Terrena, vão ajuntado dores da alma e adoecendo, da baixa autoestima, da depressão, do desamor e da desesperança?

Kardec pergunta aos espíritos no O Livro dos espíritos pergunta 803, “Todos os homens são iguais perante Deus?” E os espíritos respondem: “Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos. “O sol brilha para todos”, e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais.

Este pensamento espírita obedece a uma verdade divina, porém, parece não estabelecer uma realidade social. Desta forma, estes raciocínios parecem ser incongruentes.

Precisamos estabelecer os significados apresentados pela referida resposta, e a dissonância com a prática social. Somos iguais, enquanto sujeitos espirituais, criados simples e ignorantes, sujeitos espirituais que representam a parte inteligente da criação, e segundo o pensamento espírita, vinculados às suas relações com as leis divinas.

Mas, quando nos referimos a nossa vivência social, e comparamos as realidades que compõem os povos que formam as sociedades e os referentes grupos sociais, percebemos que na prática a teoria é diferente. E o que nos assusta, é o quanto uma parte das pessoas espiritistas, negando as realidades sociais, não conseguem fazer esta leitura de mundo, e confundem o que seja a ação da igualdade mediante uma compreensão divina e espiritual, e a produção da desigualdade, enquanto ação comportamental, social e humana. De fato, nos fazendo acreditar existir, uma demanda reprimida na produção destas discussões.

Pois bem, o objetivo deste artigo é propor uma discussão plausível, que tenha como objetivo a partir da lei de igualdade, contida na terceira parte do O livro dos Espíritos, cogitar uma reflexão social e não igrejeira, afetiva e não estabelecedora de determinismos absolutos, amorosa e não punitivista.

Reiteramos este pensamento utilizando o que afirmamos no livro “Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades: um Diálogo com as Questões Sociais”: “A reencarnação tem uma ação educativa em vez de punitiva. Divina e diametralmente oposta a demoníaca; libertadora e antagônica a qualquer tipo de postura aprisionante. Sua ação sobre nós é de possibilidades de aprendizado através de sucessivas oportunidades, nas quais vamos, por intermédio dos embates sociais, concordando e discordando, formatando-nos como cidadãos cósmicos, seres universais, criaturas divinas, constituindo- -nos naquilo que somos”.

A ação que nos convida a uma reflexão que tem como objetivo a invisibilização das questões sociais torna-nos alienados, o Movimento Espírita Brasileiro Hegemônico Federativo Institucionalizado é negacionista, quando simplesmente ignora a realidade social e insiste em uma práxis que tem como fim, estabelecer dogmas que não sejam questionados por seus seguidores, e que não encontram consonância com a realidade social de nosso tempo.

Dizemos que a reencarnação é educativa e não possuí o caráter punitivista, a reprodução de saberes e conhecimentos que tornam o espiritismo dogmático possuem o fim de manutenir Status Quo, e foge do caráter providencial da doutrina espírita.

Recorremos a pergunta 804, de “O livro dos Espíritos”, para darmos continuidade as nossas reflexões. Nela Kardec questiona: “Por que Deus não deu as mesmas aptidões a todos os homens?”. A resposta: “Deus criou todos os Espíritos iguais, mas cada um deles viveu mais ou menos tempo e por conseguinte realizou mais ou menos aquisições; a diferença está no grau de experiência e na vontade, que é o livre arbítrio: daí decorre que uns se aperfeiçoam mais rapidamente, o que lhes dá aptidões diversas. A mistura de aptidões é necessária a fim de que cada um possa contribuir para os desígnios da Providência, nos limites do desenvolvimento de suas forças físicas e intelectuais: o que um não faz, o outro faz, e é assim que cada um tem a sua função útil. Além disso, todos os mundos sendo solidários entre si, é necessário que os habitantes dos mundos superiores, na sua maioria criados antes do vosso, venham habitar aqui para vos dar exemplo”.

Esta resposta dos Espíritos ilustra com perfeição as digressões construídas até aqui. Percebemos que o referido movimento não consegue estabelecer que o livre arbítrio se constituí a partir das experiências que vão nos forjando enquanto espíritos. Desta maneira, nascemos “simples e ignorantes”, porém, as oportunidades que vamos constituindo em nossa trajetória, vão estruturando as diferenças que nos formam. Assim sendo, a nossa gênese obedece a mesma compreensão de justiça, mas à medida que vamos experenciando, o senso de justiça vai se moldando aos efeitos produzidos por nossas escolhas e ações diante da vida.

Surge então uma reflexão sobre a forma como o referido movimento espírita trata aquilo que chamam de “verdadeira vida”, atribuem ao mundo espiritual este título e relativizam a importância do mundo social. A difusão deste pensamento é utilizada com o objetivo de validar os porquês de não discutirmos as questões sociais, pois, segundo esta compreensão, estes mesmos temas não fazem sentido para a realidade espiritual. Dizemos que o “verdadeiro mundo”, é aquele onde nos encontramos naquele momento. Se estamos encarnados, o mundo do qual somos responsáveis é o mundo social do qual fazemos parte. Este pensamento é robustecido por Kardec na pergunta 806 do O Livro dos Espíritos, “806. A desigualdade das condições sociais é uma lei natural? — Não; é obra do homem e não de Deus”. (Kardec, 2007).

Ora! Se a resposta dos espíritos ao questionamento Kardeciano sobre as desigualdades das condições humanas, nos chama a responsabilidade, seria imprudente reputar ao mundo dos espíritos a incumbência de reparar as desigualdades sociais.

Percebemos que estás incoerências quando nos referimos ao trato com as questões sociais são recorrentes e não se trata apenas de um fato isolado, mas, uma ação deliberada, organizada e sistêmica que tem como objetivo o impedimento das discussões sobre as realidades contemporâneas.

Voltando ao nosso livro, afirmamos: “Para a edificação de uma sociedade justa e igualitária, temas como família, sexo, sexualidades, gênero, relações étnico-raciais, religião e política não devem ficar relegadas a segundo plano ou serem consideradas assuntos “anti-doutrinários”, assumindo caráter proibitivo e pecaminoso. A abordagem dessas temáticas sob a luz da doutrina espírita faz com que se construa uma base de entendimento crítica e participativa, bem como promove a desconstrução e a invalidação da vivência de preconceitos de vários matizes. Quando estudamos o Espiritismo, deparamos em seu escopo com conceitos como: a existência de Deus, a imortalidade da alma, a reencarnação, a comunicabilidade dos espíritos, o progresso que aqui serão discutidos e que em nenhum momento possuem o objetivo de justificar mazelas, desigualdades e injustiças sociais. Violência, desemprego, fome, racismo, intolerância religiosa, machismo, xenofobia, LGBTQIAP+fobia, sexismo, misoginia estão presentes de forma estrutural na sociedade contemporânea. Pesquisar o Espiritismo em todas as suas possibilidades é buscar a origem causal das estratificações sociais, não apenas do ponto de vista físico, mas também do ponto de vista das relações históricas e espirituais. Entender este processo é importante, afinal quem fomos implica diretamente em quem somos”.

A igualdade, é por atributo da nossa relação com as leis divinas, porém, a desigualdade é humana, salientamos que está mesma desigualdade provoca dores, sofrimentos e mortes a determinadas categorias sociais, é dever deste mesmo humano produzir políticas públicas que se transformem em igualdade e protejam a parte da sociedade mais exposta as violências, invisibilizações, apagamentos, cancelamentos e mortes.

Precisamos perceber a força do capital na produção desta desigualdade, o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta, com números de violência que nos assustam e se superam a cada ano, em contrapartida, somos um dos maiores produtores de grãos e de gado de corte do planeta, mas nos dias atuais, cerca de 30 milhões de brasileiros estão expostos a fome, sem segurança alimentar.

Não encontramos nas bases de conhecimentos espírita, saberes que justifiquem as mazelas e norteiem as desigualdades sociais. As concepções espíritas não visam estabelecer naturalidade na sanha desenfreada do humano capitalista e ambicioso, a ponto de encontrar justificativa para obtenção de suas fortunas e para à miséria dos outros na reencarnação e na causa e efeito, por exemplo.

Desta maneira, a igualdade divina não abona a desigualdade humana, mas, a sua compreensão, deveria ampliar o nosso senso de justiça e busca pela construção de uma sociedade mais equânime, a partir de um agir político em nossa ação no mundo. O sujeito espírita não é a representação de um apêndice na sociedade, ele é a própria sociedade, forma a sociedade, de modo, que não deve se afastar deste viver político, sob pena de se transformar em um agente alienado e incapaz de propor a partir de sua ação no mundo social, a produção do reino na Terra, como nus propunha Herculano Pires.

Deolindo Amorim no livro “O Espiritismo e os Problemas Humanos” nos elucida: “mantemos a mesma ideia de que o movimento espírita não pode ficar alheio aos problemas sociais, cumprindo-lhe por isso, interferir na solução desses problemas; devemos desenvolver e aprimorar cada vez mais a consciência de participação na vida social, em harmonia com o legítimo pensamento da Doutrina, que não quer o espírita fora do mundo, mas dentro do mundo, ajudando a transformá-lo”.

Do que se trata então a igualdade, que não seja uma busca coletiva pelo aprimoramento das leis que suscitem melhor qualidade de vida para todas, todos e todes aqueles que estão conosco nesta aventura planetária chamada vida? De que serve a aquisição individual de bens terrenos, se em nome da abastança os nossos irmãos de jornada Terrena, vão ajuntado dores da alma e adoecendo, da baixa autoestima, da depressão, do desamor e da desesperança?

Perguntamos ainda, qual o preço real da opulência que provoca a miséria? Como podemos falar de igualdade, se não reconhecermos a realidade social, que julgamos não fazemos parte? Como podemos falar de caridade, se nem ao menos soubermos o verdadeiro significado da fraternidade? Como somos Coração do mundo e pátria do evangelho, se nem ao menos compreendermos as demandas da violência, dor e morte provocadas por todos os preconceitos sociais que vitimizam as nossas companheiras e todos os nossos companheiros de jornada encarnatória?

Fica a reflexão sobre a igualdade que vivemos e a igualdade que desejamos! Que sejamos capazes de compreender que sem política pública, não haverá igualdade e justiça social, e que sem igualdade e justiça social, qualquer mundo de regeneração será, apenas e tão somente, uma falácia ilusória, um retrato de uma não verdade, uma alienação que teima em escamotear a realidade e os rastros de dores e cadáveres deixados para traz pelo capitalismo voraz que insiste em moer gentes e transformá-los, como nos diz Bauman, em “lixo humano”.

Deixemos, porém, como brisa fresca no ar, como a esperança de esperançar, que as lutas e investidas organizadas ou não, coletivas ou não, produzidas pelas humanidades, se transformarão, não sem trabalho, em atitudes de afeto e acolhimento, e culminarão com ações que busquem incansavelmente a justiça e a igualdade social.

Referências Bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Editora ZAHAR, 2004.
AMORIM, Deolindo. O Espiritismo e os problemas humanos. União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo, USE Editora, 1991.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos: princípios da doutrina espírita. Livraria Allan Kardec Editora, 2007.
JÚNIOR, Alexandre. Espiritismo, Educação, Gênero e Sexualidades: um diálogo com as Questões Sociais. Recife: CBA Editora, 2022.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

10 thoughts on “Igualdade Divina e desigualdade humana, por Alexandre Júnior

  1. Primoroso artigo Alexandre. A abordagem realmente merece uma reflexão da parte de nós espíritas. Essas tentativas seriam validadas se houvesse um movimento espírita aberto às mudanças necessárias, partindo da dialética espírita. Lamentavelmente, o movimento espírita brasileiro não é de vivos, e sim dos mortos. As ideias dos vivos são ignoradas. Parabéns!

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