Encanto, Desencanto e Inquietude, por Eugenio Lara (in memoriam)

Tempo de leitura: 4 minutos

NOTA INTRODUTÓRIA DO ECK

Hoje, deixa-nos, Eugenio Lara, livre pensador espírita, irrequieto e anarquista, parte para uma jornada transcendental, liberta-se da carne para uma nova jornada na incansável busca de novos horizontes de progresso. Sua visão laica, humanista, progressiva e progressista ficará perpetuada por seus livros e artigos e nos permitirá sentir um pouco menos sua ausência no plano físico.

Na jornada existencial navegamos, por vezes, em águas tormentosas, entre o caos e a distopia, por outras, em águas bonançosas, entre a paz e a utopia. Para Pessoa, um caleidoscópio de sensações e vivencias, existindo entre o físico e o metafísico, nada é meramente simples e muito menos inalcançável, entre dois caminhos que norteiam a vida, a abstenção e o limite da perfeição absoluta, mas entre esses há as divagações qual busca-se a harmonia, diz Bernardo Soares, um de seus heterônimos, em “O Livro do Desassossego”: “Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso.”. Navegar é exato, norteado por astrolábios e bússolas; em meio da navegação, de porto a porto, há medos, inseguranças, insistências, consistências, persistências e transições; navegar é viver, sonhar, ousar, realizar, permear, conquistar, navegar é viver, e a vida é imortal.

Como efêmera é nossa existência, nunca é um adeus, mas sim, um até breve, esperamos que em outras plagas possamos nos reencontrar e alegremente debater as nuances e os meandros da Filosofia Espírita.

Deixa-nos, um texto, inédito, encaminhado ao jornal Opinião do Centro de Cultura Espírita de Porto Alegre – CCEPA, e não publicado, sendo, pois, inédito, que ora publicamos a seguir em sua memória:

Eugênio Lara era arquiteto de formação, jornalista e designer gráfico por gosto e competência. Foi diagramador dos jornais “Espiritismo e Unificação” e “Abertura” (este, em seus primeiros 10 anos). Trabalhou no jornal “A Tribuna de Santos” e junto com José Rodrigues, foram editores do site “Pense – Pensamento Social Espírita”. Fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CP-Doc). Desencarnou em 7 de junho de 2024, no Hospital Vicentino, no litoral de São Paulo, cidade de São Vicente (SP).

 

Encanto, Desencanto e Inquietude

Eugenio Lara (in memoriam)

 De vez em quando surge em mim, de modo insidioso, um certo sentimento de desinteresse pelo Espiritismo, dentre outras coisas da vida. E sempre fico a me perguntar se é algo passageiro ou permanente, ainda que, no caso, tal sentimento carregue consigo uma razoável dose de desencanto.

Sim, desencanto, talvez seja essa a palavra mais exata, no momento, para definir o que há muito tempo sinto em relação ao Espiritismo. Não chega a ser decepção. Mas, do desencantamento à desilusão, à decepção é um pulo, um mero suspiro.

Todavia, a decepção pode permear os sentidos, o pensamento. Fico então a me perguntar, de modo metafórico: eu falhei com o Espiritismo ou foi o Espiritismo que falhou comigo?

Falsa questão, mas que, em termos poéticos, simbólicos, traduz um certo sentido.

Afinal, que é o Espiritismo senão um movimento social formado por pessoas, por seres humanos encarnados e desencarnados que te inserem numa situação natural de (con)vivência e vicissitude moral, interpessoal?

Por melhor que seja, nenhum ideário jamais será o suficiente para se moldar um laço duradouro, um elo, unir determinado grupo apenas pela comunhão de princípios e objetivos. Há fatores emocionais envolvidos que sempre devem ser considerados. Boas ideias com pessoas sem boa vontade, ambiciosas e de mau caráter não dão certo, não florescem, ainda que estas pessoas sejam aparentemente eficientes no que fazem. É a tal da figueira estéril da parábola evangélica.

Por conta disso, a decepção pode estar sempre presente, como a Espada de Dâmocles sobre nossa cabeça. Porém, há algo que se sobrepõe a tal circunstância: a ternura e a convicção.

Minha inserção no Espiritismo não perdura por fatores interpessoais, mas, sobretudo, por uma forte convicção filosófica, firmada em um tempo de estudo, experiência e leitura, difícil de se mensurar. Não foi da noite pro dia. Isso não significa que não possa sofrer turbulências e abalos sísmicos. Enquanto a ternura pelo Espiritismo ainda é a mesma, desde o início, como aquele amor à primeira vista, sincero e inocente, que nunca será esquecido, mas que um dia pode acabar, como a paixão fugaz, passageira.

O desencanto é passageiro, fugidio, tanto quanto o próprio encanto, que se não for controlado, trabalhado pode redundar no fanatismo, em posturas fundamentalistas, dogmáticas e sectárias. O encanto desmedido, quando desmorona e se desvanece, quase sempre vira desilusão.

Porque o que sobra mesmo é o senso de dever, o profundo sentir, a paixão permanente, mesmo que adormecida. Pelas ideias. Por um ideal. Por uma forma de ser e estar no mundo que seja ao mesmo tempo livre e sensata, na busca da plenitude inalcançável, ainda que possível, porque o Espiritismo é também uma utopia.

“Lógica, razão e bom senso”, o pálio trinário de Allan Kardec, era sua bússola, a Pedra de Toque. Como os povos celtas, ele gostava do número três: “Trabalho, Solidariedade e Tolerância” também foi seu lema. Sob o ponto de vista intelectual e ético, a referência kardequiana ainda é o melhor antídoto contra qualquer tipo de desencanto, desânimo, de distorção doutrinária ou traição aos princípios nucleares da Filosofia Espírita.

Raramente escrevo em primeira pessoa, no entanto, creio que o momento exige, por isso compartilho com os leitores deste Opinião minha relação aparentemente conflitante e angustiada com a filosofia espírita. A angústia aí é aquele sentimento de algo inacabado, não conhecido. Não se trata daquela ansiedade pueril, incômoda e desagradável, mas, antes de tudo, de uma sinistra inquietude, que o Espiritismo provoca em nós de modo permanente, na medida em que nele adentramos.

Essa inquietude pode e deve ser o motor de propulsão, o estímulo permanente no manejo da ideia espírita, nem sempre tratada pelos próprios espíritas com o devido respeito, seriedade e profundidade que ela exige e merece.

Fotos do Eugenio: Arquivo ICKS e Centro Espírita Allan Kardec

Imagem de destaque de HeungSoon por Pixabay 

 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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2 thoughts on “Encanto, Desencanto e Inquietude, por Eugenio Lara (in memoriam)

  1. Que haja paz e luz para o companheiro Eugênio Lara, trabalhador da causa espírita. Creio que esse sentimento de coisa inacabada, faltante, que gera angústia, não é só dele, não. Esta encarnação consolidou os ideais espíritas em nós, e os levaremos para o futuro.

  2. Uma forte convicção filosófica, baseada no estudo e na sua aplicação na minha vivência com o meu entorno. Isso é para mim também o Espíritismo.