Divaldo Franco e a cara do movimento espírita brasileiro, por Marcelo Teixeira

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Marcelo Teixeira
Imagem de _Marion por Pixabay

“Oi, amigo. Lamento, mas não estou lendo esse tipo de material.”

Estava começando a pensar de onde partiria para escrever este artigo quando recebi a mensagem acima transcrita, vinda de uma pessoa espírita conhecida minha. Havia enviado para ela e muitos outros amigos de ideal alguns textos criticando a homenagem que o médium e tribuno baiano Divaldo Pereira Franco recebeu do atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Divaldo, no início de julho de 2022, foi agraciado com uma comenda em honra ao trabalho social por ele desenvolvido.

Eu e muitos outros companheiros de doutrina espírita (sim, somos muitos) jamais aceitaríamos algo semelhante vindo de um presidente que é pródigo em desrespeitar a vida com declarações escancaradamente machistas, homofóbicas, racistas e misóginas. Um presidente que tem, como ídolo, um torturador; vive fazendo ‘arminha’ com as mãos e, por tabela, incentiva a população a andar armada. Um presidente cuja postura violenta abriu a porteira para desmatamentos, garimpo ilegal, assassinato da população negra, truculência policial, feminicídios e perseguição aos povos originários. Um presidente, por fim, que, ao negar a ciência, atrasou o início da vacinação contra a Covid (o que poderia ter evitado milhares de mortes), declarou não ser coveiro quando questionado sobre o alto índice de óbitos e, suprema crueldade, imitou um paciente com falta de ar à época em que a cidade de Manaus, um dos epicentros da pandemia, sofria com a falta de oxigênio.

A doutrina espírita, organizada e divulgada por Allan Kardec em meados do Século XIX, na França, explica os ensinamentos de Jesus à luz da imortalidade da alma. Isso abre um leque enorme de conhecimento e de responsabilidades para quem estuda e divulga o Espiritismo. Afinal, por meio dele, sabemos que somos Espíritos imortais presos temporariamente a um corpo material e que reencarnaremos na Terra quantas vezes for necessário. Motivos: desenvolvermos potencialidades, acertarmos as contas com eventuais desafetos de vidas passadas, superarmos imperfeições e, por conseguinte, ajudarmos no progresso dos nossos irmãos em humanidade e, também, no do planeta. Isso significa lutarmos para sermos pessoas melhores, bem como sermos participativos no que tange à construção de uma sociedade onde haja trabalho, saúde, educação, moradia e salários dignos para todos, independentemente de sexo, etnia, orientação sexual, classe social ou credo religioso. Estou falando de justiça social ampla, geral e irrestrita. Sem ela, estaremos, reencarnação após reencarnação, às voltas com as mazelas de sempre, principalmente se insistirmos em repetir padrões comportamentais que já deveriam estar superados. Daí o espanto de muitos espíritas ao verem um dos mais badalados representantes do Espiritismo no país aceitando ser homenageado por um governante cuja conduta está em total desacordo com o que Jesus e Kardec preconizam.

Divaldo, conservador e moralista

Divaldo Pereira Franco está na casa dos 90 anos. Vem de uma época em que a doutrina espírita conquistou grande número de adeptos graças a médiuns como ele, Yvonne Pereira, José Raul Teixeira e, principalmente, Chico Xavier. Adeptos, em sua grande maioria, vindos da classe média, e por motivos como perda de um ente querido, problemas pessoais, desavenças familiares e perturbações de ordem mediúnica. Gente que encontrou no Espiritismo alívio para as dores e explicações lógicas e consoladoras para as questões que os afligiam. Creio que está na hora de esta gente bronzeada se conscientizar que é preciso dar um passo além e debater sobre as questões sociais e políticas que fazem do nosso país um dos mais injustos do mundo.

Tais convertidos, vamos assim dizer, eram, até então, em sua maioria, católicos, assim como haviam sido católicas as pessoas que, à época, eram porta-vozes da doutrina trazida por Allan Kardec. Como nação catequizada por jesuítas portugueses, trazemos na nossa conduta, atavicamente, sem percebermos, um catolicismo popular e conservador. Isso acabou influenciando na forma tupiniquim de praticar a doutrina espírita. Resultado: o que temos até hoje é um movimento espírita conservador e moralista, pouco afeito a debater ideias progressistas e refratário a temas tidos como polêmicos. Entre eles, política, homossexualidade, racismo e aborto sob a ótica de acolher e proteger a mulher que foi vítima de estupro ou está em situação de vulnerabilidade social. Um movimento espírita que prefere se limitar à reforma que cada indivíduo deve realizar em seu mundo íntimo para viver melhor consigo e com parentes, amigos e colegas de trabalho, mas se esquece de ampliar a questão para as profundas reformas sociais pelas quais o Brasil e o mundo precisam passar para que todos tenham “vida em abundância”, conforme diz o Evangelho de João, cap. 10, versículo 10.

Divaldo acaba sendo – até mesmo sem perceber – a personificação desse Espiritismo que, ao não se aprofundar em assuntos de ordem social e política, perpetua o machismo, o racismo estrutural, a homofobia, as injustiças sociais, o risível medo de comunismo (embora o mesmo tenha vindo abaixo em 1989, com a queda do Muro de Berlim) e o receio que muita gente possui de viver num mundo mais igualitário. Pois é; falamos tanto sobre o mundo de regeneração; mas, no fundo, morremos de medo dele. Santo paradoxo!

O movimento espírita federativo – seja em âmbito municipal, estadual ou federal – prefere, pelo visto, se manter isento ao opinar sobre as já citadas questões sociais. Como exemplo, cito a decepção que um amigo sofreu ao navegar pelos sites e redes sociais das citadas federativas e não encontrar uma palavra de solidariedade às famílias dos então 500 mil mortos pelo coronavírus. Idem quando o atual governo afrontou solenemente a ciência com posturas abertamente negacionistas. A doutrina espírita possui um tríplice aspecto: ciência, filosofia e religião. O movimento espírita deveria, por essa razão, se pronunciar em defesa da ciência. Nada! Ibidem quando várias comunidades religiosas se manifestaram recentemente para defender a lisura do próximo pleito eleitoral. Silêncio total do órgão federativo espírita de nível nacional. O mesmo se dá com relação aos ataques que os templos de religião de matriz africana vêm sofrendo de evangélicos fundamentalistas e também aos assassinatos de jovens negros e pobres, de membros da comunidade LGBTQIA+, de ativistas ambientais e de indígenas. Como diz a mensagem que transcrevo no início, muitos espíritas preferem ignorar determinados assuntos, talvez para não se comprometerem ou por receio de macularem a pureza doutrinária, como se o Espiritismo existisse somente para tratar de assuntos das nuvens para cima. Ou então porque são pobres em cultura geral e utilizam o Espiritismo para esconder as próprias limitações. Ou simplesmente por julgarem que supostas lideranças espíritas são intocáveis e imaculadas. Afinal, devido ao atavismo católico, muitos espíritas deixaram de ser devotos de santos para sê-lo de médiuns, palestrantes ou Espíritos desencarnados. Bobagem! Todos eles são seres em evolução e em aprendizado, assim como nós.

Por um movimento espírita plural

Divaldo Pereira Franco é, portanto, fruto de uma construção social que, ao se esquivar de falar sobre política e outros temas, contribui para que a classe média que compõe o movimento espírita fique na média do que é a classe média brasileira, ou seja, inculta, reacionária, ranzinza, hipócrita, moralista, temerosa do comunismo e avessa ao progresso social, já que o mesmo implica em ascensão das classes que adoramos manter subalternas para limpar nosso chão, recolher nosso lixo, fazer nossa comida e lavar nosso banheiro.

A literatura espírita é vasta e seus profitentes, os que mais leem. No entanto, ninguém é culto só porque lê livros espíritas. Ganharíamos muito se estudássemos assuntos como sociologia, teoria política, semiologia e antropologia à luz da doutrina espírita. Se o fizéssemos, decerto um candidato bem mais capaz estaria, hoje, presidindo a nação. A meu ver, de nada adianta ficarmos maravilhados ante as minudências além-túmulo que os livros espíritas evidenciam se, na vida civil, repetimos, com o nosso voto e a nossa mentalidade, comportamentos sociais escravagistas, opressores e injustos que, há décadas, nos infelicitam. Para mim, o Espiritismo existe para ajudarmos a transformar a Terra num lugar bacana para todos, e não para nos tornarmos catedráticos em vida espiritual, mediunidade e afins enquanto o couro come do lado de fora do centro espírita e nós fingimos que nada temos a ver com fome, violência, miséria, preconceito ou aquecimento global porque a verdadeira vida é a espiritual.

E mesmo quando algum figurão espírita se pronuncia a respeito de algum destes temas, geralmente o faz de forma evasiva. Ou então, evoca a questão cármica para dizer que todos os problemas que estamos enfrentando são resultado de maldades que praticamos em vidas passadas. Raramente alguém tem a coragem de dizer que a questão é mais política que cármica. Com isso, o debate se restringe a uma fraternidade rasa, que não passa da esfera íntima ou do convívio doméstico. Daí para apoiarem uma criatura despreparada ou mal-intencionada que seja candidata a cargo público é um pulo.

Felizmente – e principalmente de 2016 para cá –, vários espíritas sedentos de justiça social e insatisfeitos com a dinâmica dos centros espíritas convencionais passaram e se articular pelas redes sociais. Com isso, surgiram vários coletivos, nos quais o debate é politizado e vai fundo em assuntos tidos como tabus pela banda conservadora. Isso mostra que, com o tempo, retóricas como as de Divaldo e congêneres ficarão cada vez mais datadas, abrindo espaço para um movimento espírita plural, dialogando abertamente sobre as questões que visem à diminuição ou até à solução das injustiças sociais seculares que tanto têm massacrado o Brasil.

Administrador site ECK

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

24 thoughts on “Divaldo Franco e a cara do movimento espírita brasileiro, por Marcelo Teixeira

  1. Boa noite. Sem tirar nem por uma vírgula sequer. Sofremos muito aqui em Santos com este quadro e não de agora mas de muuuuuito tempo. O Brasil é isto tudo que tu falou e isto nos obriga a lutar lutar e lutar que é o que toda sociedade plural exige e espera de nós.

    1. Caro, irmão em fé raciocinada e ideologia, que texto certeiro e “incômodo”, para certos leitores. Parabéns, pela clareza e didática.
      Desde 2016 que fui me afastando do Centro do qual eu frequentava no Rio de Janeiro, num dos bairros mais neoreacionários na cidade.
      Pensei que essa fé que em outrora me consolava, me trazia respostas, estava sendo provocada, confrontada e consequentemente superada por novos e inquietantes questionamentos em que a doutrina acabava por cair no senso comum.
      Esse conformismo, passividade silêncio da doutrina em momentos recentes e tão limites do nosso país me desiludio, confesso.

  2. Perfeita análise! Estamos todos no meio desse embate, que ocorre dentro dos Centros, nas comunidades, nas diversas instituições, no mundo à fora e inclusive em nossas relações familiares. Há muito por fazer, em busca desse mundo de regeneração, de um Brasil que realmente possa um dia vir a ser exemplo do Evangelho de Cristo! Hoje o que temos é muita luta e dificuldades para vencer essas barreiras conservadoras de ódio, ignorância e atraso.

  3. Concordo com tudo que você falou. Divaldo é apoiador de primeira hora desse governo! Vejo como grande discrepância tal atitude, destoando completamente do que prega o Evangelho do Cristo, bem como os ensinamentos da Doutrina Espírita, por aquele considerado por muitos, figura exponencial da doutrina.

  4. Ainda bem que o rumo que norteia o ECK …está amplamente disseminado por muitos lugares e muitas mentes. Parabéns ao autor do texto..ele serve para o Brasil e não só…o Espiritismo está -se a reeguer ,ou não tivesse ele emanado de uma fonte de ideais cristalinas.

  5. O fato é incontestável. Os atos de Divaldo Franco são do Divaldo, como cada um de nós, e não representam a Doutrina Espírita. Eu lamento essa posição de um valoroso trabalhador como Divaldo, e outros mais. O fato é que se o cidadão se omite dessa discussão e escolha, a sociedade brasileira pode piorar, e muito.

    1. Outro problema são as críticas que já vi Divaldo fazer a outras correntes espiritualistas como a Umbanda, por exemplo, ao dizer que os pretos velhos são espíritos muito ignorantes. Arrogância é algo que atravessa o espiritismo conservador que se julga a última bolacha do pacote.

  6. Falou bonito, muito curto o senhor, más não sou culta, transcrevo que palavras são palavras, nada mais que palavras, quer ver ação, ja q I ssenhor e à favor do Socialismo, comece dando exemplo, pegue pelo menos 05 moradpres de rua e leve pra sua casa, dei-lhe, comida e roupa lavadora, estado e tudo que um ser humano merece pra viver dignamente, se todos os socialistas fizessem isso acabaria as diferencas e tanta pobresa no mundo. Comece por você, nao espere pelos outros.

  7. Concordo com quase todo o texto, mas tenho que acentuar q o movimento espírita não tem representantes. Divaldo foi um dos divulgadores. Mas não é representante.

  8. Que artigo perfeito!
    Realmente o que acontece dentro do movimento espírita é muito triste e me incomoda de forma particular.
    Assistimos manifestações por parte de todas as religiões , quanto as questões sociopolíticas e econômicas do nosso país, e a Federação e/ou palestrantes e/ou dirigentes Espirita em silêncio sepulcral.
    Disseste tudo de maneira clara e didática. Muito obrigada.

  9. Que artigo perfeito!
    Realmente o que acontece dentro do movimento espírita é muito triste e me incomoda de forma particular.
    Assistimos manifestações por parte de todas as religiões , quanto as questões sociopolíticas e econômicas do nosso país, e a Federação e/ou palestrantes e/ou dirigentes Espirita em silêncio sepulcral.
    Disseste tudo de maneira clara e didática. Muito obrigada.

  10. Quero frequentar, me encontrar e aprender mais com este tipo de espírita, pois o que vi (e me fez decepcionar) foi exatamente isso: Não posso ter como lema “fora da caridade não há salvação” e ver um dirigente fazendo arminha e apoiando um idiota irracional que combate tudo aquilo que aprendi com Kardec.

  11. Bom dia, Amigo!
    A Paz esteja com você!

    Emmanuel pede para que “Examina a própria aflição para que não se converta a tua inquietude em arrasadora tempestade emotiva.”

  12. O comentário anterior foi de Emmanuel.

    Registro aqui a minha impressão a respeito.
    Sou nada e ninguém na ordem do dia. Engatinho ainda nos primeiros raios, quasse pálidos, da luz divina do Espiritismo, pois que estou ainda no lusco fusco do romper da aurora. No entanto, pelo pouco que vi, acredito que haver algum equívoco, não no seu posicionamento político, mas na sua conduta diante de uma situação que não lhe cabe resolver. A Doutrina Espírita me ensinou a praticar o amor mesmo quando somos invadidos pelos charcos da vida, fazendo brilhar a nossa, pois que a luz atravessa o pântano sem se sujar, e não buscar ofuscar os nossos irmãos. Basta lembrar que Jesus almoçou com publicanos. Basta lembrar Jesus disse que não veio para os sãos. E se a tua visão política coloca alguém nestas condições, Divaldo Franco nada mais faz que seguir os passos do Mestre.
    Não tenho autoridade e muito menos conhecimento para julgar se você está certo ou errado, no entanto, aprendi com a Doutrina dos Espíritos, que somos responsáveis pelo que resulta nossos atos e palavras ditas e/ou escritas. O que vi, falo por mim e não pela Doutrina Espírita, foi o avivamento do ódio no coração dos irmãos que comentaram em sua postagem. Concordaram com seus pensamentos. A Doutrina também nos ensina sobre as afinidades.
    Perdoa se me mostro inconveniente, mas, vou repetir Emmanuel: “Examina a própria aflição para que não se converta a tua inquietude em arrasadora tempestade emotiva.”

    Que o amor imensurável de Jesus se aposse do seu coração.

  13. Se há uma pessoa coerente em suas palavras e atos é o nosso confrade Divaldo Franco. Estou ao lado dele em qualquer situação. No dia em que um de vocês tiver uma vida pautado em 10% da dele poderei começar a pensar em dar-lhe atenção. É impressionante que nem os postulados espíritas conseguem acordá-los.
    Abraços fraternos.

  14. Excelente texto. Estava à espera de encontrar algo assim, preto no branco, verdadeiro, sem artificialismos.
    O Facto de Divaldo Franco ter mais de 90 anos não significa que não saiba o que está a fazer. Sabe muito bem e isto significa que o atavismo e conservadorismo lhe pertencem mentalmente. Além de acreditar no “carma punitivo e libertador”.
    Outra questão é o endeusamento que muitos espíritas fazem a Chico Xavier, ele que foi um católico espírita, que atraiu para o espiritismo, que se queria isento de dogmas religiosos, discursos dogmáticos de igreja, e cuja psicografia foi feita numa linguagem difícil de digerir.
    Chico Xavier enalteceu e bajulou os militares torturadores da ditadura que avassalou esse país e Divaldo nos tempos que correm fez o mesmo.

  15. Excelente texto.
    Penso exatamente assim. E Jesus nos ensinou o amor, a tolerância, o perdão, afinal somos todos irmãos.
    Também fiquei estarrecida e triste com o Divaldo e também com alguns companheiros que apoiavam na política o candidato oposto do que aprendemos na doutrina espírita.
    Esse foi um dos motivos que me afastei da Casa Espírita a qual frequentava e trabalhava vários anos em Goiânia/Go.
    Me senti enojada!
    Hoje vejo que muitos não aprenderam nada e que se Jesus descesse entre nós seria apedrejado do mesmo modo.

Deixe uma resposta para Katia Walmrath Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.