As Dez Leis de Kardec, por Milton Medran Moreira

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Sempre que vem à tona a questão do papel de Allan Kardec no processo da sistematização do espiritismo, aponto a pergunta número 648, de “O livro dos Espíritos” como emblemática.

A terceira parte desta obra, tratando das Leis Morais, é, sem dúvida, a síntese filosófica de toda a obra. Diz com as consequências do conhecimento espírita. De nada adiantaria situar o espiritismo como uma nova ciência – aquela que trata da origem, natureza e destino dos espíritos e de suas relações com o mundo material – se desse conhecimento sistemático não defluíssem consequências realmente transformadoras do homem e do mundo.

Kardec reservou isso para a parte terceira de sua obra prima e o fez buscando sintetizar todas as grandes questões de seu tempo no bojo de dez fundamentais leis – Adoração, Trabalho, Reprodução, Conservação, Destruição, Sociedade, Progresso, Igualdade, Liberdade e Justiça/Amor/Caridade – que coroam a teoria espírita e lhe conferem significação ético/moral.

E quando eu digo “Kardec reservou isso…”, quero exatamente salientar que a iniciativa, ali, como nos principais temas demarcadores da doutrina espírita, parte precipuamente do Professor Rivail, e, apenas complementarmente, dos espíritos por ele entrevistados.

Veja-se, com efeito, que o enfoque teórico das grandes questões éticas, sociais e políticas do Século 19, distribuídas em 10 (dez) leis, é uma proposição que parte de Kardec: “Que pensais da divisão da lei natural em dez partes (…)?”, perguntou aos espíritos que, com ele concordando, acrescentaram poder essa classificação “abranger todas as circunstâncias da vida”: uma verdadeira síntese, pois, das questões mais relevantes para a humanidade.

Com isso, absolutamente, não se quer secundarizar o trabalho dos espíritos. É adequado, creio, se afirmar que a participação deles tem maior relevância no que diz respeito à parte fenomênica, aquela que dá origem e suporte fático à teoria espírita. Cabia-lhes, precipuamente, dar respostas concretas a estes dois importantes temas antes pertencentes ao misterioso mundo dos mitos e das crenças: a) existem espíritos – que são as almas dos homens que já morreram; e b) esses espíritos influem no mundo material, podendo com ele estabelecer comunicação. Essa seria a grande e decisiva tarefa dos espíritos.

Conjugavam-se, naquele momento histórico situado em meados do Século XIX, condições muito especiais, claramente propiciadas pela iniciativa dos espíritos objetivando traduzir em fatos comprováveis essas duas grandes questões de todos os tempos. Ocorria ali, o que autores como Arthur Conan Doyle e J. Herculano Pires classificam como uma “invasão organizada de espíritos”. A quantidade e a intensidade desses fenômenos chamaram a atenção do Professor Rivail que acorreu às experiências das mesas girantes e mesas falantes. Desenvolve-se, a partir daí, um trabalho conjunto de Kardec e uma plêiade de espíritos selecionados que qualificam o fenômeno, conferem-lhe método e seriedade, dando origem à sistematização do conhecimento espírita.

Mesmo nessa fase, onde caberia prevalência às entidades espirituais na “revelação” do mundo espiritual, Allan Kardec assume a tarefa de sistematizar o conhecimento, pelo eficiente método de questionamentos endereçados aos espíritos, com eles discutindo cada uma das questões. Como já o fizera Sócrates, pela maiêutica, Kardec, na inteligente formulação das perguntas, deixava claro já pressupor a resposta, porque, a priori, detinha os conceitos ali trabalhados. Recordo-me, aqui, de uma frase atribuída ao Duque de Lévis, segundo a qual “é mais fácil avaliar o espírito de um homem pelas suas perguntas do que pelas suas respostas”.

No caso de Kardec, em seu hercúleo labor de sistematização do Espiritismo, as perguntas, em sua maioria, já continham o gérmen do conceito que se corporificaria na formatação da teoria espírita. Se, como disse Johan A. Simone Jr., “a chave da sabedoria é saber as perguntas certas”, Allan Kardec, em toda a obra produzida em conjunto com as entidades espirituais, demonstrou sabedoria e posse de conceitos pessoais muito firmes, no mesmo sentido e com conteúdos idênticos aos confirmados pelos espíritos aos quais formulava perguntas, mas com os quais também discutia conceitos. Os espíritos, naquele momento, poderiam levar sobre ele a vantagem da vivência, da experiência concreta na dimensão espiritual, mas os conceitos teóricos discutidos eram amplamente e “a priori” dominados por Kardec.

Entretanto, como dizia no início destas reflexões, é, especialmente, na terceira parte de “O livro dos Espíritos” que Allan Kardec demonstra com força e persuasão sua condição de, mais do que mero codificador, verdadeiro fundador da doutrina espírita. De pronto, formula as chamadas dez leis morais, dando aos grandes questionamentos morais da humanidade uma sistematização que os espíritos não hesitam em classificar como abarcadora de “todas as circunstâncias da vida”. Depois, busca, especificamente, os temas mais angustiantes de seu tempo, rico em questionamentos filosóficos, sociais, jurídicos e políticos, e propõe sua análise a partir daqueles pressupostos antes fixados: a sobrevivência e imortalidade do espírito, sua evolução e a interconexão entre a humanidade encarnada e desencarnada.

Allan Kardec era um pedagogo e essa condição se faz fortemente presente quando trata da questão ética. Herdara isso, com certeza, de Pestalozzi de quem fora discípulo. Humanista, vislumbrava no ser humano um imenso potencial a ser aprimorado pela educação. A ideia do progresso, de forte presença em todos os campos do saber humano no Século XIX, aliada à teoria da evolução e da reencarnação, permite vislumbrar no espírito humano uma extraordinária capacidade de transformação individual e social. Partindo de uma filosofia deísta (expressa na Lei de Adoração), que pressupõe a existência de uma “inteligência suprema”, “causa primária de todas as coisas”, confere à vida um sentido que transcende à realidade material, mas que depende de sucessivas experiências na matéria para chegar à plenitude por ele chamada de “perfeição”.

A “Lei de Progresso” é força que impulsiona todos os campos do saber humano. Esse processo de contínuo crescimento individual e social, diferentemente da visão espiritualista até então adotada pelas religiões – e, especialmente pelo cristianismo – não se dá pela “graça divina”, privilégio dos que creem e que, pela fé, aderem à “revelação”, mas está ínsito na consciência humana. É a “lei natural”, sinônimo de “lei divina” (questão 614, de “O livro dos Espíritos”), que, antes de resultar de qualquer “revelação”, está gravada na própria consciência, no âmago da alma humana (questão 621).

A partir dessa visão otimista de homem e de mundo, Allan Kardec não precisa vincular o crescimento moral do ser e da humanidade às revelações religiosas, embora veja nelas fontes de interpretações da lei moral compatíveis com seu tempo. A moral está ínsita no espírito imortal e repousa em leis naturais por si mesmas cogentes, coercitivas, pois que a tão almejada felicidade, as bem-aventuranças, na terminologia cristã, são resultantes da adequação da ação humana a essas leis. Não são, como já o afirmara Spinoza, recompensas por boas ações a serem oferecidas depois da morte. A prática do bem, por si só, em qualquer tempo e lugar, gera efeitos saudáveis ao indivíduo.

Em contraposição, a ação em sentido contrário às leis naturais é causa de sofrimento. Kardec, nas perguntas inaugurais, mediante as quais introduz cada um dos valores morais em capítulos específicos, questiona seus interlocutores espirituais sobre se aquelas leis morais constam na Natureza: “A necessidade do trabalho é uma lei da Natureza?”, e o “instinto de conservação”, a necessidade de destruição, a liberdade, a igualdade, etc., etc., são, mesmo, leis que estão na Natureza? Termina por coroar todas essas leis com aquela por ele proposta como a que resume todas as demais, a Lei da Justiça, do Amor e da Caridade.

Com essa abordagem das leis morais, Allan Kardec, no seu rico diálogo com os espíritos, que, como já se salientou, parte de uma estrutura por ele proposta, oferece uma brilhante contribuição ética à humanidade. Nela se pode vislumbrar um moderno compêndio de direitos humanos, abrangendo todos os grandes questionamentos da modernidade, onde a autonomia do ser humano é reafirmada como valor primordial. Na base de suas proposições estão todas as conquistas da modernidade, mas ampliadas por uma visão transcendente e imortalista da alma humana.

Enfim, mesmo que, por sua modéstia, Allan Kardec tenha rejeitado o título de construtor da doutrina espírita, preferindo atribuí-la aos espíritos, não dá para conceber sua estruturação sem a presença de alguém, encarnado, dotado da competência e lucidez demonstradas pelo eminente Mestre de Lyon. Especialmente no que diz respeito às consequências morais advindas da teoria espírita, a presença pessoal de Kardec é notável e decisiva. Vinculando a moral às leis naturais e, logo, não a uma religião ou cultura, demonstra serem aplicáveis a toda a humanidade, universalizando a proposta espírita e lhe conferindo caráter eminentemente livre-pensador e não sectário.

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