Marcelo Henrique
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Aliando os conhecimentos científicos e filosóficos que derivam das teses e da práxis de inúmeros estudiosos, de ontem e de hoje, ao padrão ético espiritual apresentado pela Filosofia Espírita, podemos, individual e coletivamente, prosseguir construindo sociedades mais espiritualizadas, com o corolário da justiça social aplicável a todos os indivíduos, de todos os povos, de todos os Estados, como se a Terra fora “um só povo” e em que todos sejam, de fato, irmãos.
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O trabalho é uma das leis espirituais vigente em todos os mundos habitados. E é um conceito transcendente. Representa, no plano do direito humano, um dos mais destacados institutos jurídicos, remontando às eras mais remotas do aparecimento do homem na Terra. E, espiritualmente, está representado na mitologia cristã, que reproduz poeticamente, o Gênesis, com o trabalho do Criador e a recomendação da entidade divinal a todas as criaturas por toda a Eternidade.
Voltando ao plano da existência física, também o trabalho é uma categoria crucial da Economia, justamente porque é preciso lutar contra a escassez e alcançar a satisfação das necessidades humanas, provendo-as, organizando-as e administrando-as.
Neste duplo espectro, assim, é o trabalho o elemento fundamental e central da vida humana, figurando como traço expressional da personalidade individual e destacada vertente identitária, dentro do espectro multifacetado da existência do Espírito, em que figuram (muitos) outros interesses.
Por ele, então, o Espírito (ser inteligente da Criação) é capaz de transformar a natureza (do mundo material) em geral, inicialmente para a própria manutenção da sua existência (circunstância que permanece, embora progressiva, na esteira do tempo) transformando seus esforços em valores econômico-financeiros para obter elementos imprescindíveis à sua sobrevivência e aos que dele dependam.
No plano da materialidade, o trabalho é atividade física e mental (com contornos espirituais), daí entendermos que Darwin e Marx sejam os mais destacados autores no sentido de promoverem a oportuna discussão acerca do homem, em termos da consciência deste em si mesmo, assim como da Humanidade como um todo. Já no plano da espiritualidade, os aportes são de Kardec, permitindo que, à conjuntura material, seja associada a espiritual, especificamente para propor, em termos de transcendência e espiritualidade, a ampliação da consciência humana, individual e coletivamente.
Como somos espíritas, há que se pontuar a obra espiritista (plena de complementaridades) que tem alguns expoentes do passado como permanentes e necessários para as transformações político-sociais-materiais-espirituais do atual quadrante humano: Rivail-Kardec, Denis, Porteiro, Mariotti e Pires.
O estudioso espírita que se debruce sobre os conteúdos – muitos, esparsos – destes cinco filósofos de matiz espírita, poderá perceber os elementos que lhes aproximam e, ao mesmo tempo, os distanciam, em termos progressivos, considerada a inexorável Lei (a do Progresso) que faz com que o que venha depois agregue valor, reforce pontos e corrija rotas.
Marx e Kardec foram contemporâneos e “beberam” ambos do riquíssimo caldo cultural europeu do século XIX, pleno de iniciativas que, derivados de outras “revoluções”, anteriores, moldaram o Espírito humano para os tempos daquele quadrante e os que se seguiram, alcançando, inclusive o nosso – porque outras mutações já se fazem, igualmente, necessárias.
Há proximidades e distanciamentos entre as filosofias marxista e kardeciana. Primeiro porque o materialismo histórico-dialético e a aversão do alemão a qualquer organização de cunho religioso lhe direcionou, como pensador livre e independente, a descaracterizar a dependência humana à religião (“ópio do povo”). Segundo porque como “o vento sopra onde quer”, a outros pensadores cabia o desenvolvimento de teses distintas – mas, complementares – para o repositório de conhecimento e de práxis da Humanidade.
O socialismo materialista, portanto, sob o viés marxista, foi determinante para a avaliação do trabalho, sua história, sua técnica, suas forças de produção, determinantes para a delimitação do modo e das relações produtivas, constitutivas da sociedade da época e das vindouras, propondo suas teses contrárias ao capitalismo (e suas selvagerias). Não há dúvidas de que suas proposições (e a discussão que provocaram) foi determinante para, no século vindouro e no nosso, buscar-se uma melhor delimitação do trabalho como direito, ou a regulação dos direitos afetos ao trabalho.
Daí a necessidade de um socialismo espiritual – já traduzido, inicialmente, nas próprias páginas de “O livro dos Espíritos” e, depois, confirmado e ampliado no conjunto das demais publicações de Kardec, as suas 32 obras, como costumamos dizer. O desiderato da igualdade plena e do alcance da justiça social é flagrante em todo o arcabouço kardeciano e pode ser, enunciativamente simbolizado neste trecho: “Procurai, no Espiritismo, o que pode vos melhorar, está aí o essencial; quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente úteis, lhe serão a consequência muito natural; trabalhando para o progresso moral, possuireis os verdadeiros e os mais sólidos fundamentos de todos os melhoramentos” (Kardec, 1964:37, marcamos) [1].
Denis (1982:56, destaques nossos), associativamente, diz: “o Espiritismo é um socialismo etéreo baseado sobre as regras absolutas da justiça e sobre as leis da consciência e da razão. Seus princípios são imutáveis. Eles mostram à Humanidade o caminho do dever pelo qual ela se proporcionará a verdadeira luz e a plenitude de suas liberdades e de seus direitos. Os espíritas sabem que a obra divina representa o trabalho da justiça, a sabedoria e a beleza. Tudo age, progride e sobe, desde o átomo até Deus. As leis da evolução são soberanas, mas sobre nossa Terra essa evolução não pode ser senão lenta e gradual” [2].
“O Homem, para Kardec, é um espírito encarnado, que reconhecerá o seu passado histórico, à medida que ilumine sua visão e intuição espirituais. É por isso que, com a Doutrina Social Espírita, podemos falar de um homem-que-reencontra-a-história, isto é, de um homem que construirá um mundo melhor para reencontrar-se a si mesmo, segundo tenham sido seus atos para construí-lo e edificá-lo”, afirmou Mariotti (1983:29, sublinhamos) [3].
Já Porteiro (2002:81 e 86) delimina a necessidade do processo dialético para o progresso dos conhecimentos humanos, posto que “nenhum fenômeno se produz na vida senão em virtude de duas forças ou fins opostos e necessários”, já que a “lei dos opostos é que determina todo movimento, toda a mudança, todo progresso, aquele que tudo modifica e aperfeiçoa”. Sem fins opostos, não só não se concebe a evolução, como nem o universo poderia existir, a não ser no repouso absoluto” e esta evolução materializa o “o conceito dínamo-genético da História […] em que as inquietações da vida material e espiritual exacerbam os ânimos e aceleram o ritmo dos acontecimentos históricos para um novo ciclo da evolução humana”.
E, mais que isso, ele prossegue afirmando “um novo socialismo”, encaminhado a partir da transição do atual modelo para outro, novo, superior, espiritualizado, que “não consistirá na sobrevivência e predomínio de uma classe sobre a outra, e sim no desaparecimento das classes, porque ao desaparecer o capitalismo, desaparece também o proletariado, e o regime resultante, o socialismo, não é um regime proletário, mas uma sociedade de produtores e de homens política e economicamente iguais“. Isto porque “Se é certo que o socialismo nasce e se desenvolve no seio do capitalismo, como uma conseqüência necessária de seu sistema de produção e distribuição da riqueza social, com ele não guarda qualquer semelhança. Mesmo herdando o fruto de seus esforços e a enorme riqueza acumulada no curso de muitos séculos, com o apoio de outras civilizações, sua organização econômica e política, sua justiça e sua moral igualitárias diferem fundamentalmente das do regime capitalista”, o que motiva, segundo Porteiro (2002: 105-106 e 108, nossos negritos), “novas transformações na estrutura social, novas modificações morfológicas e psíquicas na espécie humana, novas mudanças nas idéias e concepções do mundo, novos horizontes na ciência”.
Finalmente, para Pires (1950:18, gizamos), é preciso remontar ao conceito-complexo do Homem, que segundo o materialismo, “seja ele mecanicista dialético, é um animal pensante. Para Marx, e portanto para o dialético, é ainda o resultado da ação simultânea do Trabalho, sobre ele e a natureza. Agindo sobre o meio em que vive, trabalhando-o, ele se modifica a si mesmo”. E ele prossegue: “Essa concepção materialista do homem não se enquadraria na doutrina de nenhuma das religiões corporificadas em igrejas. O Espiritismo, entretanto, não a contradiz. Apenas a amplia, ensinando que o princípio inteligente, no homem como no animal, independe do corpo. E por isso é condenado e combatido, ao mesmo tempo e por todos os lados, pelos religiosos e pelos materialistas”.
Note-se, então, bem distante do reducionismo que muitos – espíritas ou não – tendem a aplicar em relação aos conhecimentos filosófico-científicos de todos os tempos, atribuindo-lhes posições estanques e desejando, em face do próprio curso do progresso humano-material, descartar teorias e seus expoentes, um outro percurso se-nos-é exigido: o de conciliação dos saberes, em pretender que uns sejam superiores (espiritualmente) a outros, desde seus nascedouros. O Espiritismo ao propor um “socialismo espiritual” (que é o que vige em planos mais adiantados, em face dos depoimentos das Inteligências Invisíveis a Kardec), nos endereça ao labor quotidiano de promoção de transformações sociais.
Assim, aliando os conhecimentos científicos e filosóficos que derivam das teses e da práxis de inúmeros estudiosos, de ontem e de hoje, ao padrão ético espiritual apresentado pela Filosofia Espírita, podemos, individual e coletivamente, prosseguir construindo sociedades mais espiritualizadas, com o corolário da justiça social aplicável a todos os indivíduos, de todos os povos, de todos os Estados, como se a Terra fora “um só povo” e em que todos sejam, de fato, irmãos.
Ele só poderá ser alcançado pelo trabalho transcendente de todas as criaturas despertas, isto é, aquelas que compreenderam que para além das diferenças pessoais, de entendimento, de bagagem encarnatória, de aptidões, expiações, provas e missões, existe um objetivo que é peculiar a todos, em face da própria conjugação das Leis do Trabalho e do Progresso: contribuir para que a vida, na matéria, possa ser o quão mais espiritualizada possível.
Em uma só expressão, a materialização pelo trabalho individual e coletivo de um socialismo espiritual!
Fontes:
DENIS, L. Socialismo e Espiritismo. Trad. Wallace Leal V. Rodrigues. Matão: O Clarim, 1982.
KARDEC, A. Revue Spirite. Fevereiro. 1862. Resposta ao requerimento dos Espíritas lioneses por ocasião do ano novo. Trad. Julio Abreu Filho. Supervisão de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel, 1964.
MARIOTTI, H. Parapsicologia e Materialismo Histórico. Trad. J. L. Ovando. São Paulo, Edicel, 1983.
PIRES, J. H. Prefácio. In: MARIOTTI, H. Dialética e Metapsíquica. Trad. Júlio Abreu Filho. São Paulo: Édipo, 1950.
PORTEIRO, M. Espiritismo Dialético. Trad. José Rodrigues. São Paulo; CE José Barroso, 2002.
Nota do ECK: Artigo originariamente publicado na “Revista Internacional de Espiritismo”, Ano C (100), Número 5, de junho de 2025.
Na imagem, estátua de Karl Marx no Marx-Engels-Forum, em Berlim. Ela esta localizada ao lado da estatua de seu colaborador Friedrich Engels.
Após ler este texto, leva-me a pensar, o que estes pensadores que escreveram as suas teses almejando para os seus vindouros o progresso e o bem comum da Humanidade, o que pensariam e escreveriam hoje no sec XXI, ao verificarem o comportamento selvático de
dirigentes políticos eleitos com base em mentiras e que governam distantes dos objectivos de solidariedade, empatia, respeito pelo seu semelhante e que ainda recorrem às armas para impor as suas vontades, ignorando o povo, com um desrespeito total pela vida humana.