Marcelo Henrique
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É possível encontrar nas redes alguns usos que os espíritas estão fazendo da IA. Nem todos eticamente aceitáveis. E, por consequência, também, por estarem apoiados em falsas premissas, comprometem a lisura da completude: o resultado!
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Preliminares
É inequívoco o salto qualitativo que as últimas décadas do século passado e as – já – três do atual, tem promovido na vida “comum” das pessoas, com alterações significativas no cotidiano. Só para ilustrar, de início, qualquer “smartphone”, “PC” ou “notebook” já apresenta aplicativos e ferramentas de IA, inclusive gratuitas no seu modo “básico”.
Sim, porque no âmbito da vida profissional e acadêmico-científica, as ferramentas da IA, cada vez mais aprimoradas, têm proporcionado alguns avanços importantes, não somente na produção de material útil, como na simplificação de tarefas (antes) “braçais”, poupando tempo e possibilitando a concentração de esforços não nos meios, mas nos fins.
A IA também tem, em alguns equipamentos e eletroportáteis, contribuído para facilitar a vida de todos nós, sobretudo na forma de comandos simples, por voz, para a realização de algumas tarefas, inclusive sem a necessidade de “apertar” botões ou se aproximar dos aparelhos. É sensacional imaginar o que “vem pela frente” e quanto a vida poderá ser “simplificada” ainda mais em relação a hábitos rotineiros – novamente com a equalização (necessária) do (já escasso) tempo de todos nós, diante das multitarefas que todos assumimos no cotidiano.
A inteligência
Notadamente, a IA é um experimento de inteligência. Vale dizer que a programação cibernética tem o componente de infinitude, de modo que é impossível mensurar seu alcance total e/ou futuro, ao mesmo tempo em que inexistem barreiras ou limites circunscritos para sua incidência e aplicação. Isto em termos técnicos, considerando, inclusive que o móvel das ações humanas é, diante de problemas/desafios/dificuldades buscar a solução adequada caso a caso.
Todavia, sobre a questão de limites, voltaremos adiante, ainda nesse artigo.
Inteligente também é – ou deve ser, idealmente – o uso da IA como realmente um instrumento de aperfeiçoamento de tarefas e alcance dos melhores resultados, notadamente nas áreas educacional (ensino-aprendizagem) e laboral (atividades privadas e públicas). O “q” de inteligência está associado não somente ao uso (meio), quanto ao proveito (fim) que as ferramentas de IA proporcionem ao(s) usuário(s).
Mas, será que é inteligente o uso, sempre?
Algumas situações preocupantes
No meio acadêmico, temos visto a utilização em “larga escala” da IA. Em muitos casos, as ferramentas são excelentes buscadores de informações – o que nos remete, ainda na década de 90, aos primeiros “sites de busca”, bem rudimentares e com poucas variações, mas que, mesmo assim, nos permitiam naquele tempo encontrar respostas/soluções/resultados. Podia ser a busca por um restaurante, uma loja, um prestador de serviço, um endereço, assim como textos (mais ou menos didáticos, simples ou com profundidade, de fontes oficiais ou não), auxiliando o indivíduo em suas necessidades e tarefas.
Todavia, além da consulta (busca) em si, é necessário, para o pesquisador, cientista, acadêmico ou mero estudante de ensino fundamental ou médio, uma atenção adicional: a checagem do conteúdo e da fonte, porque, infelizmente, assim como existem muitas informações verdadeiras na “web”, há muito conteúdo falso produzido seja intencionalmente (com o “dom de iludir”, lembrando Caetano Veloso), ou por imperfeição e limitação de quem o produziu (escreveu, publicou).
Sem essa “verificação de dois fatores”, numa paráfrase jocosa, seremos tripulantes de uma nave sem piloto, sem comando e à deriva. A primeira verificação é em relação ao conjunto de resultados e a existência (ou não) de informações sobre o tópico pesquisado – coisa que todo mundo faz, selecionando, em seguida, o que melhor atende às expectativas/necessidades, descartando os demais. A segunda é a constatação da “idoneidade” da informação e, consequentemente, o descarte ou o uso dos resultados obtidos.
Será que todos procedem desse jeito? E os espíritas?
Puxando a brasa pra nossa sardinha
Ah, os espíritas! Sim, sempre estamos preocupados com eles – ou, conosco!
Os espíritas são de variada monta. Podemos convencionar que alguém que se interessa pelas questões espirituais “à moda do Espiritismo”, isto é, a partir das explicações contidas nos fundamentos da Filosofia Espírita, é um espírita. Nem sempre, é claro, o indivíduo se “assume” como tal, preferindo dizer-se “interessado”, “simpatizante”, “leitor”, “curioso”, etc. Não importa!
O que tem importância é o desejo individual (espiritual) de conhecer, que o faz “consumir” material espírita – ou tido como tal – sobretudo aquele disponível gratuitamente numa infinidade de “fontes” que são os portais, sites, periódicos, canais e outros mais espalhados por diferentes plataformas ou, como quiserem, “redes”.
Se é uma rede, imaginemos, a infinita variedade de “peixes” ou “frutos do mar” que “cabem” neste “local”. Não é?
Sim, é isso mesmo! De igual forma ao que nos referimos, há pouco, sobre a “verificação de dois fatores”, importa ao espírita o trabalho de FILTRAGEM daquilo que lê, ouve, assiste ou consome. É bom relembrar o velho adágio: “nem tudo que reluz é ouro!”.
Verificando os dois fatores na prática
A verificação, a princípio, exige bastante transpiração do interessado. Trata-se da seleção entre o que é disponibilizado para separar informações corretas das incorretas, verdadeiras das falsas, conceitos de meras opiniões. Transpirar é empreender esforços, é usar a inteligência aplicada…
E como se faz isso?

Longe de qualquer ortodoxia ou “pureza doutrinária”, temos que remontar necessariamente às bases. E estas são o conteúdo EXCLUSIVO das produções de Allan Kardec (as genuínas, não as adulteradas – veja aqui esta questão: Dossiê Adulteração: o ECK na defesa incondicional de Allan Kardec, suas obras e sua memória
Então, todo e qualquer “material” espírita (texto, imagens, vídeos, áudios, etc.) precisa ser CONTRAPOSTO ao conhecimento principiológico da Doutrina dos Espíritos, sob pena de estarmos considerando INDEVIDAMENTE uma informação como sendo espírita, já que ela, em essência, NÃO O É.
Precisamos, então, da chamada CAUTELA COMPARATIVA.
Este procedimento, ressalte-se, não é para EXCLUIR ninguém, nem atribuir “selos de qualidade” para as produções espíritas. Longe disso. Vamos lembrar que o Professor francês estabeleceu como premissa prática dos espíritas o livre pensar – e este, notadamente, deriva do processo de amadurecimento/aperfeiçoamento dos indivíduos e grupos. Você não é, hoje, o mesmo espírita do ano ou da década passada: esperamos que você tenha progredido (em conhecimento, inteligência e moralidade) e, portanto, suas ideias também devem seguir a marcha do progresso (elemento fundamental da teoria espírita).
Todavia, sem essa checagem, ou você será facilmente ENGANADO por pensar que isto ou aquilo que está sendo dito/escrito seria “conforme” ou “segundo” o Espiritismo – quando em numerosas situações do cotidiano não o é! –, ou irá repetir afirmações que até podem ser compatíveis com o seu modo de pensar e entender as coisas, que podem ter a “aparência” de espírita, mas não o são. Justamente porque umas e outras sucumbem diante da imprescindível comparação do que foi dito/escrito por quem quer que seja, ilustre ou comum, reconhecido ou desconhecido, com as (já mencionadas) bases.
E isso, meus amigos, não significa CRISTALIZAR ou ENGESSAR o Espiritismo, como se diz por aí, já que muitos entendem que o conhecimento humano progrediu e, portanto, talvez, dizem eles, equivocadamente, Kardec possa estar ultrapassado. E, assim, “precisamos” – afirma-se – que novas informações (revelações?) complementem (CUIDADO COM ESSE CONCEITO!) o que Kardec nos trouxe (1857-1869).
Por que, então, deve se ter cuidado? Porque nem tudo o que é tido como COMPLEMENTO ao conteúdo espírita originário guarda sintonia e conformidade com as bases (voltamos a insistir)!
A tarefa, ou o trabalho, assim, compete a cada um dos espíritas – sobretudo aqueles que realmente estejam interessados em conhecer o que é (e não o que não é) o Espiritismo!
A IA dos espíritas: alguns usos

Dito isto, é possível encontrar nas redes alguns usos que os espíritas estão fazendo da IA. O ECK, mesmo, possui uma seção (categoria) específica em seu portal, denominada “IA em pauta” para analisar tanto a IA em tese quanto as situações práticas de seu uso, entre os espíritas e também entre os demais “convivas” da atualidade planetária – para conhecer mais acesse: IA em pauta
Se você “navegar” nesta seção do Portal irá ver que já estamos preocupados com a crítica construtiva em relação à “IA espírita” ou “O Espiritismo e a IA” há algum tempo. Nossos Editores, por exemplo, já alertaram que a existência de “espaços virtuais para interações humanas, sem quaisquer alertas ou critérios, como as chamadas, em alguns casos, de “Fale com Kardec”, “Converse com Kardec”, entre outras formas” pode resultar em uma sucessão de equívocos, importando no comprometimento do próprio conhecimento espírita acesse o artigo: No estudo espírita, a IA não pode ser um totem
Outro problema grave – e, em alguns casos, gravíssimo em função do que pode resultar em termos de ações judiciais pelo uso indevido de materiais protegidos pelo direito autoral – tem-se a imitação de estilos e o plágio de informações, textos e vídeos, entre muitos outros “abusos que podem ser inseridos nos chamados estudos espíritas”, como alerta Manoel Fernandes Neto: O “estilo Ghibli” e o “Kardec artificial”
A partir disso, infelizmente tem aumentado o número de “espíritas entusiasmados” que, sem o devido embasamento e sem a cautela comparativa (vide destaque acima), passam a “utilizar e reproduzir aquilo que a “plataforma” lhe informou sobre o Espiritismo. E, por extensão, irá se converter num meio de propagação de… inverdades!”, como já destacamos em outro ensaio: Inteligência: Artificial, sim. Mas e a Natural?
Marco Milani, outro assíduo colaborador de nossos Projetos, uma espécie de “embaixador” do ECK, também destacou, nesse propósito:

“A tentativa de usar a IA para rever e aperfeiçoar o ensino espírita, portanto, esbarra na limitação natural da fonte e do método. A linguagem precisa e objetiva de ferramentas como o ChatGPT pode dar uma falsa impressão de autoridade, fazendo com que indivíduos não familiarizados com as próprias limitações tecnológicas e, principalmente, imaturos quanto aos princípios e conceitos doutrinários, aceitem prontamente as respostas geradas por IA como novas verdades”, em A Inteligência artificial não é um oráculo moderno
O bolo já aí está. Faltava a cereja! Mas, espera… Não faltava: olha ela aí!
A cereja é um elemento adicional, decorativo, de destacada beleza visual, mas que, também, por ser algo “comestível”, possui um peculiar sabor. O adágio popular “a cereja do bolo” remete, idealmente, àquilo que propicia que algo bom seja ainda melhor, uma espécie de “grand finale”, um toque final de um texto, vídeo, situação ou evento.
E, por vezes, nas situações favoráveis, esse detalhe adicional acaba fazendo toda a diferença! Ele cativa, atrai, engaja pessoas, distribui conteúdos, gera “curtidas” e seguidores – já que os cenários da atualidade são, além dos espaços conviviais reais as redes sociais.
Pois bem, uma “cereja” (não muito saborosa nem bela, diga-se de passagem) do momento espírita atual – reproduzindo o que se faz “fora” do meio espírita – é a produção de fotos (e, até, vídeos) usando as ferramentas de IA. Isto serve tanto para adaptar o que já existe quanto para criar algo novo, uma espécie de releitura do que já existiu.
Esses dias nos deparamos com um “Kardec” alternando expressões faciais, de riso, raiva, aprovação, desaprovação, espanto, indignação, sucessivamente. Ao som de uma “musiquinha”, o “Kardec artificial” ia movendo os lábios, os músculos da face, os olhos e sobrancelhas, mostrando e escondendo os dentes… Algo bizarro! E foi utilizado não como “meme”, mas para ilustrar um “projeto” de uma instituição espírita… Pasmem!
Em paralelo, muitos sites ou blogs têm apresentado também imagens (de rosto ou perfil, às vezes até de corpo inteiro) de pessoas irreais. Um ou outro, inclusive, coloca tais “fotinhas” como se fosse a identidade do escritor/articulista/colaborador. Seria diferente, por exemplo, se se buscasse uma foto real da pessoa e solicitasse à IA que produzisse uma releitura. Neste caso, não seria algo “artificial”, ou seja, uma pessoa irreal, inexistente, um factoide, mas uma “adaptação”, uma “arte” a partir de algo existente. Neste caso, o uso é muito válido, aliás. Todavia…
É, sempre tem um “mas”… Neste caso, a utilização da IA para “melhorar” ou “produzir” uma arte, uma imagem, NECESSARIAMENTE precisa ser informada ao leitor. Senão é uma falsidade, um erro que compromete a lisura da mensagem. Logo, os “créditos” da foto/imagem deveriam consignar: imagem produzida por IA, genericamente ou adaptando imagem existente.
Num mundo de “modernidade líquida” – expressão de Zygmunt Bauman (1925-2017) –, isto é, distante da necessária solidez que decorre da verdade, onde tudo é rápida e facilmente consumido, o que dizer de fotos de pessoas em lugares que nunca estiveram, vestindo roupas que jamais usariam ou colocadas em contextos comprometedores? Sim, a IA também produz isso – e há exemplos em “banners” ou “materiais” de divulgação do Espiritismo. Infelizmente!
Voltando às imagens irreais, essas, então, nem podem ser levadas a sério porque elas de pronto já INVALIDAM qualquer esforço de produção de conhecimento. Invocando os sábios gregos, estamos diante de sofismas. Porque as premissas precisam ser verdadeiras para que a conclusão igualmente o seja. E, com premissas falsas…
Assim, duas recomendações são oportunas: 1) se você produzir uma imagem (com IA) a partir de outra, real, deixe isso claro para o leitor, por homenagem à verdade; e, 2) jamais produza – e, tampouco, distribua ou compartilhe – imagens artificiais (como as feitas com a IA), sobretudo para dar aparência de verdade às mesmas (uma foto de alguém que não existe, a alteração proposital e descabida da imagem verdadeira de alguém).
Limites: há?
Sim, há. Os limites derivam da ÉTICA. E a ética, preliminarmente, nos direciona a respeitar os direitos de outrem, assim como desejamos que os nossos sejam respeitados. É a materialização da desejada fraternidade universal, com base na equidade entre os Espíritos (humanos, encarnados), evitando seja causado qualquer prejuízo a pessoas, instituições, obras, memórias. E isso alcança, também, e com relevo no Espiritismo, os “mortos”, os Espíritos desencarnados, notadamente aqueles que se destacaram no meio espírita.

Oportuno, assim, lembrar do que Marcus Braga nos aponta no artigo: E aí, o que queremos com a IA no movimento espírita?
“Ainda que no Espiritismo importe mais a mensagem do que a fonte ou o medianeiro, essa mesma visão nos inspira a analisar com cuidado a produções de derivadas de IA, para que os vieses sejam percebidos e discutidos, fugindo do endeusamento de conteúdos oriundos de IA, como fazermos, por vezes, diverso da lógica kardequiana, com médiuns”. E ele complementa: “Assim, ideias estranhas e embaladas de forma acrítica, muitas absurdas, podem tornar mais superficial o debate espírita, fazendo-o conteudista, polarizado, mas ao mesmo tempo com uma roupagem inovadora, para atender ao fetiche mercadológico de dizer que está usando ali a IA, como um símbolo de modernidade”.
Concluindo…
Não é de nosso hábito tolher qualquer criatividade nem esforço no sentido da produção de conhecimento espírita. Se “o Céu é o limite”, e o “Céu”, em si, não possui limitações, por ser algo infinito, é oportuno permitir que os espíritas criem à vontade e entreguem seus “produtos finais” ao meio espírita. Obviamente, é desejável que o espírita-consumidor percorra os passos indicados neste artigo, realizando uma espécie de “controle universal” em relação não ao “ensino dos Espíritos” (lembrando o nosso decantado CUEE), mas acerca dos materiais espíritas (ou adjetivados como tal).
Esta “seleção” poderá representar, no futuro, a própria melhoria da comunicação e do ensino-aprendizagem em relação ao Espiritismo e representará a linha mestra do progresso aplicado às vivências espíritas.
Derradeiramente, para ilustrar esse direito-dever de todo espírita sensato, lembramos o que já escrevemos a respeito, no artigo Imaterialidade e Artificialidade: Porque a Inteligência Artificial deve ser adequadamente utilizada a serviço do Espiritismo
“Kardec era um pensador. Suas conclusões vão muito além da rasteira ideia de que ele deveria possuir todas as informações em relação ao tema. Do contrário, eram sinapses originais que ele próprio efetuava a cada manifestação dos Espíritos”
O trabalho dele – consideradas as limitações do seu tempo – precisa ser continuado por nós (com as condições e a estatura espiritual que temos, sem ufanismos nem viralatismos, portanto), distanciando-nos com leveza e seriedade, com elegância e oportunidade, com esmero e dedicação dos novidadeiros do Espiritismo (que também acabam se valendo da IA). Porque estes apenas
“sugerem, precipitadamente, que a IA possa trazer ares de vanguarda para o próprio umbigo. Vaidosos, querem elogios por se mostrarem modernos, mas são incapazes de criar soluções sensatas para aquilo que mais enfrentamos dentro da doutrina, elevando a sua compreensão acima do igrejismo e do salvacionismo” (trecho do artigo acima citado).
A proposta espírita transcende e ela não está direcionada tão-somente aos que se dizem (hoje) espíritas: ela é para todos, toda a Humanidade! E é para isso que escrevemos (mais) esse texto: para resgatar o legítimo espírito do Espiritismo!





As novas experiências não pode se afastar dos valores morais e éticos explicitados na doutrina kardecista, vigilância e responsabilidade permanente.