Elio Mollo
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Pierre-Gaëtan Leymarie ocupa um lugar ambíguo na história do Espiritismo. Não se pode negar seu esforço inicial para dar continuidade ao trabalho de Allan Kardec, preservando documentos, mantendo a “Revue Spirite” ativa e promovendo a divulgação internacional da Doutrina. Contudo, seus desvios doutrinários, equívocos administrativos e o envolvimento involuntário — mas desastroso — em “O Processo dos Espíritas”, produziram consequências graves. A exposição pública de Amélie Gabrielle Boudet trouxe ainda maior repercussão negativa e simbolizou a fragilidade institucional do movimento francês.
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Introdução
Com o desencarne de Allan Kardec em 31 de março de 1869, o movimento espírita francês entrou num período decisivo. Era necessário preservar a unidade doutrinária, manter o espírito de investigação metódica e sustentar, com sobriedade e racionalidade, a proposta apresentada pelos Espíritos na Codificação. Nesse cenário, Pierre-Gaëtan Leymarie (1827–1901), discípulo dedicado de Kardec, assumiu responsabilidade central na administração do legado do Codificador e na continuidade da Revue Spirite.
Sua trajetória, entretanto, é marcada por um paradoxo: apresentou méritos incontestáveis na preservação e difusão da Doutrina, mas também promoveu inserções estranhas ao corpo doutrinário e envolveu-se em acontecimentos que contribuíram para a perda de credibilidade do movimento espírita na França [1]. Este artigo examina, de forma racional, equilibrada e fundamentada nas fontes históricas, os aspectos positivos e controversos de sua atuação, à luz da Doutrina Espírita e da coleção da Revista Espírita (1858–1869).
- Continuidade da Obra de Allan Kardec
Após a partida do Codificador, Leymarie assumiu tarefas relevantes:
1.1 Preservação do Espólio Doutrinário
Ele ficou responsável pelos manuscritos, correspondências e documentos de Kardec, garantindo que parte desse material fosse preservado e mantido em circulação. Esse esforço permitiu que muitas obras chegassem ao século XX intactas.
1.2 Direção da “Revue Spirite”
Durante cerca de três décadas, Leymarie conduziu a revista fundada por Kardec. Inicialmente, manteve o caráter filosófico e moral das publicações, com artigos alinhados ao pensamento espírita e ao espírito investigativo incentivado pelos Espíritos superiores.
1.3 Difusão Internacional
Seu trabalho em congressos e viagens à Bélgica, Espanha e Itália ampliou o alcance do Espiritismo na Europa. Foi responsável pela organização do Primeiro Congresso Espírita da França (1889) e participou do Congresso de Barcelona (1888), fortalecendo vínculos e divulgando a Doutrina.
1.4 Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas
Com apoio de Amélie-Gabrielle Boudet, viúva de Kardec, ajudou a estabelecer a sociedade anônima idealizada por Allan Kardec para garantir a continuidade editorial e institucional da obra espírita.
Essas contribuições demonstram que Leymarie foi, de fato, um continuador comprometido — ao menos em sua fase inicial.
- Desvios Doutrinários e Tensões Internas
Apesar dos méritos, sua gestão gradualmente incorporou elementos que se distanciavam da Codificação.
2.1 Abertura ao Roustainguismo
A promoção da obra de Jean-Baptiste Roustaing, “Os Quatro Evangelhos”, representou um marco de divergência. As concepções ali apresentadas — como a teoria do corpo fluídico de Jesus — eram incompatíveis com os princípios doutrinários estabelecidos pela Codificação. A “Revue Spirite” chegou a anunciar que exemplares seriam distribuídos aos assinantes, o que reforçou o apoio público às ideias de Roustaing.
Essas atitudes geraram forte reação de Léon Denis, Gabriel Delanne e outros estudiosos, que posteriormente fundaram a União Espírita Francesa para resguardar a pureza doutrinária.
2.2 Aproximação com a Teosofia
A publicação de matérias teosóficas e o contato com autores como Annie Besant criaram a percepção de que o Espiritismo estava sendo misturado a correntes espiritualistas de forte caráter místico e esotérico, incompatíveis com o método racional e observacional proposto por Kardec.
2.3 Fotografia Mediúnica e Má Gestão
A defesa pública das fotografias mediúnicas de Édouard Buguet — posteriormente confessadas como fraudulentas — prejudicou de forma significativa a credibilidade da Revue Spirite e de seu diretor. As críticas aumentaram diante de queixas relacionadas à administração financeira e editorial da Sociedade.
Esses fatores contribuíram para o surgimento da imagem de Leymarie como responsável pelo enfraquecimento institucional e doutrinário do Espiritismo francês.
- O Processo dos Espíritas de 1875
O episódio mais polêmico envolvendo Leymarie foi o célebre “Processo dos Espíritas”.
3.1 Origem do Caso
O fotógrafo Édouard Buguet alegava captar, por meio de mediunidade, imagens de Espíritos ao lado de encarnados. A “Revue Spirite” divulgou e apoiou tais produções, despertando atenção policial e judicial.
As investigações demonstraram que muitas fotografias eram forjadas mediante dupla exposição e utilização de manequins.
3.2 Acusações e Condenações
- Buguet confessou a fraude.
- Firman, médium envolvido, também foi implicado.
- Leymarie foi condenado por cumplicidade e exploração da boa-fé pública.
A sentença, posteriormente anulada, não impediu que sua imagem fosse duramente afetada.
3.3 A presença de Amélie-Gabrielle Boudet
A viúva de Kardec, com cerca de 80 anos, foi convocada ao tribunal por sua posição na Sociedade Anônima. Submetida a agressões verbais e grande constrangimento, saiu moralmente ilesa e juridicamente absolvida, pois nada teve a ver com as fraudes.
Sua presença no processo intensificou o impacto negativo sobre a percepção pública do Espiritismo.
- O Declínio do Espiritismo na França: um Fenômeno Multifatorial
A queda do movimento espírita francês não pode ser atribuída exclusivamente a Leymarie. Os estudos históricos apontam vários elementos:
4.1 Fragilidade Institucional
Sem a figura unificadora de Kardec, surgiram divisões internas e disputas teóricas.
4.2 Competição com Outras Correntes
A teosofia, o ocultismo e o magnetismo reivindicavam o espaço cultural ocupado pelo espiritualismo filosófico.
4.3 Contexto Científico e Intelectual
O predomínio do positivismo e da ciência materialista no final do século XIX dificultou a aceitação de fenômenos mediúnicos.
4.4 O Processo Judicial
O escândalo envolvendo Leymarie e a citação de Amélie consolidaram, perante a opinião pública, um declínio já em andamento.
Portanto, embora Leymarie tenha contribuído para a perda de prestígio, ele foi apenas um dos elementos num cenário mais amplo.
Conclusão
Pierre-Gaëtan Leymarie ocupa um lugar ambíguo na história do Espiritismo. Não se pode negar seu esforço inicial para dar continuidade ao trabalho de Allan Kardec, preservando documentos, mantendo a “Revue Spirite” ativa e promovendo a divulgação internacional da Doutrina.
Por outro lado, seus desvios doutrinários, equívocos administrativos e o envolvimento involuntário — mas desastroso — em “O Processo dos Espíritas”, produziram consequências graves. A exposição pública de Amélie Gabrielle Boudet trouxe ainda maior repercussão negativa e simbolizou a fragilidade institucional do movimento francês.
Desse modo, o declínio do Espiritismo na França não se deve apenas à figura de Leymarie, mas a um conjunto de fatores históricos, culturais e filosóficos que não foram superados após a partida de Allan Kardec. Enquanto isso, em outros países — especialmente no Brasil — o Espiritismo encontrou terreno fértil, preservou sua estrutura racional e moral, e tornou-se referência mundial na continuidade da Doutrina.
Referências:
Kardec, A. Obras Póstumas. FEB.
Kardec, A. “Revue Spirite” (1858–1869).
Delanne, G. “Le Spiritisme devant la Science”. Paris, 1885.
Aubrée, M.; Laplantine, F. “La Table, le Livre et les Esprits”. Paris: Jean-Claude Lattès, 1990.
Wantuil, Z.; Thiesen, F. “Allan Kardec: Método, Obras e Vida”. FEB, 2004.
FEB. “O Processo dos Espíritas”. Brasília, 2011.
Nota do ECK:
[1] Em artigo neste Portal (“Os efeitos das adulterações nas obras de Kardec” – link), Denis Denisard afirma, com propriedade: “Pierre Gaetan Leymarie, dissidente inconformado com os conceitos fundamentais apresentados em “A Gênese”, acabou realizando exclusões ao texto original e publicando uma quinta edição revisada, corrigida e aumentada que não correspondia à original”. Como legatário da obra de Kardec, após sua morte, tendo afastado Amélie (a viúva) e, um a um, os principais colaboradores do Professor francês, Leymarie pode ser considerado o líder do grupo que desnaturou o Espiritismo, ainda no Século XIX, com incontáveis prejuízos até hoje.




