Por Marcelo Henrique
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O exemplo da Igreja Católica com a canonização de Carlo Acutis sinaliza para o meio espírita um divisor de águas.
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Preliminares
Introdutoriamente, devo dizer que sou um pesquisador e escritor espírita, com praticamente quatro décadas e meia de estudo e prática da Filosofia Espírita. Neste sentido, em primeiro plano, todo e qualquer tema afeto à Espiritualidade é do meu interesse, independente da fonte ou do ambiente filosófico ou religioso em que seja o mesmo correlato.
Ato contínuo, já escrevi muitas vezes sobre temáticas religiosas e, em especial, acerca de fatos, personagens e episódios da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e suas signatárias em todo o mundo. Já dissertei sobre os papas João Paulo II e Francesco, por exemplo, além de ter dissertado sobre o atual, Leão XIV. Também compus ensaios sobre destacados vultos do Cristianismo, além de Yeshua (Jesus de Nazaré), como, por exemplo, Antônio de Pádua, Francisco de Assis, Tereza de Jesus, Santa Paulina, Frei Galvão, entre outros.
Entendo, ainda preliminarmente, que os “santos” da Igreja são humanos dotados de um poder especial, que a religião cristã chama de “graça”, e que o Espiritismo conceitua como Mediunidade. Assim sendo, esta última, a faculdade mediúnica, natural aos encarnados e prodigioso instrumento de intercâmbio entre os dois planos ou mundos, o físico e o espiritual, nos possibilita entender melhor a distância que há entre o natural e o sobrenatural.
Na História da Humanidade, desde os primórdios, as sociedades tentaram compreender melhor os fatos que fugiam às triviais explicações do momento e, neste contexto, já que as Ciências se autodeclararam incompetentes para tratar de “artigos de fé”, as religiões – desde as ancestrais às contemporâneas – assumiram o protagonismo para explicar (dogmaticamente) fenômenos ou situações, ou dar respostas em termos de crença aos fiéis.
Os santos e sua importância
Devemos destacar que os “santos” (mulheres e homens “de Deus”) são figuras exponenciais ao chamado mundo cristão. Convenciona-se dizer que sua presença, seus feitos e a adoração dos cristãos sobre os mesmos – vale lembrar que os templos católicos em geral homenageiam um ou mais deles em seus “nomes”, como a Igreja Santo Antônio de Pádua que tive a alegria de frequentar durante uma década, bem no centro da capital de Santa Catarina, Florianópolis.
Diz-se que os santos e a devoção em torno deles “renova a fé cristã” e motiva os adeptos a se atentarem para as prescrições religiosas contidas em mandamentos e sacramentos, por exemplo. De outra sorte, ao serem mencionados os fatos da existência do Santo, se aproxima o mesmo dos próprios seres “comuns”, as mulheres e homens que, convertidos ao Cristianismo, buscam alcançar uma condição melhor nesta vida e na futura (almejando, neste caso, habitar o “Céu” da religião).
É comum, assim, que os fiéis tenham santos particulares, e se considerem protegidos ou abençoados pela santidade e, neste sentido, creditam a esse vínculo o sucesso e a felicidade alcançadas. Um elemento motivacional, que é, aliás, muito comum em diversos quadrantes da vida contemporânea, como, em especial, a vida profissional ou pessoal. O santo ou a santa, assim, bem pode ser uma espécie de “coach” invisível que nos guia em nossos passos.
O influenciador de Deus
Eis o codinome, o epíteto, a alcunha dada pelos crentes católicos a Carlo Acutis – o personagem que nos motivou a escrever este ensaio. Ou, também, o primeiro santo católico millenial, porque esta expressão remete aos nascidos entre os anos 80 e 90. Acutis nasceu em 3 de maio de 1991.
Carlo foi um jovem que faleceu em virtude de complicações decorrentes de uma leucemia, aos 15 anos de idade, em 12 de outubro de 2006. Coincidiu, portanto, com o dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.
No dia 7 de setembro último, Acutis foi canonizado pelo papa Leão XIV, em uma cerimônia ocorrida na Praça São Pedro, após ter sido beatificado em 2020. Vale dizer que o processo já estava concluso no pontificado de Francesco (Jorge Bergoglio), mas não foi efetivado em função da piora no estado de saúde do papa anterior, que levou, inclusive à sua morte, em 21 de abril do corrente ano.
O influenciador de Deus simboliza a condição do garoto ter usado a tecnologia para evangelizar, já que aprendeu programação para criar sites para a divulgação da fé católica. Segundo suas biografias, o garoto, herdeiro de empresas sólidas na área financeira e de seguros, optou por seguir a fé católica, dedicando-se à Eucaristia e à Evangelização, preferindo a riqueza espiritual à material [1]. Assim sendo, por isso, Carlo já é o “padroeiro da Internet”.
Flagrante, portanto, e humanizada a Santidade High Tech de Carlo Acutis.
A vida do jovem era similar aos de sua idade e geração, comum aos adolescentes dos anos 2000. Tinha amigos, frequentava os ensinos fundamental e médio, mas, segundo declarou sua mãe, Antonia Salzano, sua “qualidade extraordinária […] foi ter aberto o coração para jesus e colocando Jesus em primeiro lugar na vida” [2].
O corpo do jovem foi trasladado para uma igreja na cidade de Assis (Itália), conforme seu desejo, onde foi coberto por um molde de cera para manter e reproduzir sua aparência física, estando trajado por roupas simples, iguais às que ele usava rotineiramente: blusa esportiva, calça jeans e tênis.
A santidade e a mediunidade
A Igreja Romana possui seus ritos para a admissão da beatitude e da santidade. Nos processos em questão, são avaliados os “milagres”, isto é eventos “sobrenaturais” que representam curas de enfermidades, geralmente. Para tanto, situações distintas envolvendo o nome do jovem e os pedidos de intercessão do mesmo para que melhoras da saúde física de doentes ocorressem foram analisadas pelo Vaticano, que confirmou as ocorrências.
As questões que fazem parte da retórica cristã-católica, no que concerne à oficialização da santidade são, para nós, espíritas, explicadas e entendidas em sua plenitude. Evidentemente, não só em termos do presente artigo, como em relação a todas as demais situações e circunstâncias presentes na cristandade merecem, de nós, espíritas, consideração e total respeito.
Nosso intuito, outrossim, é o de demonstrar que os fatos que são considerados como milagres são, na verdade, peculiares à natureza humana e pertencem, não ao cenário sobrenatural, mas ao natural. E, neste contexto, a mediunidade é o instituto genuinamente kardecista que deve ser invocado.
Há, para o Espiritismo, a continuidade da vida e a manutenção dos laços que vinculam os seres entre si. Também a “passagem” para a invisibilidade após o fenômeno morte repercutem na continuidade dos interesses (humanos) nos indivíduos que foram para o “outro plano” ou a “outra dimensão”. Em outras palavras, mantêm os seres suas afinidades, proximidades, gostos, vinculações e afetos, preocupando-se, portanto, seja com os mais caros, seja com outras pessoas e, até, com a humanidade em geral, sobretudo em causas sociais.
No caso das curas de enfermidades físicas, não se descarta a ação da “mediunidade de cura”, que é a manipulação espiritual de fluidos, por parte de um desencarnado (Espírito) por meio de um encarnado (médium). Mas é necessário entender a questão mais amplamente, considerando que, além da “medicina do Além” a ciência material (clínica) também pode contribuir para a minimização dos efeitos das enfermidades e, em alguns casos, o recrudescimento ou o desaparecimento da moléstia. Então, é possível cogitar de uma ação conjunta entre os dois “planos”, físico e espiritual, para a consecução do “milagre”, isto é, a cura.
A lição que a canonização nos deixa
A Igreja Romana dá uma clara demonstração de sua atualidade e da preocupação com os tempos contemporâneos, considerada, inclusive, a diminuição dos fiéis e o crescimento das igrejas neopentecostais e do islamismo no mundo.
O Catolicismo dá um recado claro para o rejuvenescimento da mensagem cristã, já que se apoia nas ações do jovem Carlo em dois flancos: 1) a condição de jovem, um indivíduo de vida comum similar aos dos demais adolescentes do nosso tempo; e, 2) o uso da internet, das ferramentas cibernéticas, das redes sociais para a difusão da mensagem com teor cristão, na linguagem adequada ao público a que se destina.
Eis, aí, o que está grafado no título deste ensaio: a estratégia episcopal da permanência.
Neste sentido, há duplo acerto porque a identificação do jovem com seus pares e suas demandas é um sinal evidente da sinergia e proporciona o engajamento que é a marca comum das redes sociais na atualidade. E, de outra sorte, a utilização da internet como meio de difusão da espiritualidade cristã representa uma amplitude direcionada a quem, por diversas mídias ou redes, também é “consumidor” destes produtos virtuais.
Olhando para eles, os católicos, sentimos um pouco de “inveja”, mas, como diz o dito popular, uma “inveja boa”, direcionada ao desejo de copiar as boas iniciativas e de poder ser igual (ou parecido) um dia. Justamente neste momento em que os resultados do Censo2022 recentemente divulgados (e já abordados aqui em nosso portal [3]) apontam para uma significativa redução do número de adeptos declarados do Espiritismo. Mas não somente isso…
Nós que atuamos no meio espírita somos testemunhas de um problema que vem desde a virada do milênio e tem se agravado: o conservadorismo espírita que se manifesta em vários aspectos, desde a dogmatização de conceitos, passando pela restrição aos modos de ser e de se manifestar, a postura rígida e flagrantemente sisuda, a limitação do direito de expressão e da criatividade dos adolescentes e jovens, além, é claro, a adoção de uma linguagem ultrapassada, com ênfase a uma reforma íntima que se constitui como obrigação e o desejo de habitar em lugares celestiais, como colônias espirituais.
A mensagem espírita precisa ser reavivada enquanto expressão da liberdade espiritual, na linguagem de cada ser ou grupo e com as peculiaridades que a ambiência planetária nos proporciona. Em outras palavras, os espíritas precisam “viver a vida no mundo físico”, aproveitando as situações condizentes à existência material, e não ficarem concentrados no porvir, numa hipotética vida espiritual.
Se é fato de que os espíritas não cultuam santos nem têm sacramentos e liturgias, é muito numeroso o quantitativo de espíritas que cultua “santos espíritas” (médiuns, palestrantes e os próprios Espíritos que ditam mensagens pela psicografia), estabelecendo um distanciamento equivocado entre seres que, por habitarem a mesma morada física (no caso o planeta Terra) se encontram, todos, mais ou menos, na mesma situação espiritual (em termos de progresso), salvo raras exceções. Todos, portanto, seres falíveis, em processo de despertamento e esclarecimento espiritual. Assim, a atitude católica de “santificar” um personagem comum, que teve uma vida juvenil igualmente simples e similar aos demais jovens, vai na contramão da postura dos espíritas, que buscam cultivar a santidade de determinados personagem, cunhando-os de Espíritos Superiores ou Espíritos Puros.
Juventude, Internet, Redes Sociais, Simplicidade, Autenticidade, Fraternidade, Alegria, Riso e Congraçamento: estas deveriam ser, inegavelmente, as marcas da nossa sociedade neste Terceiro Milênio, aproveitando as facilidades que a contemporaneidade nos fornece, sobretudo a condição de nos comunicarmos com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo e instantaneamente.
Nos parece que outro jovem, lá em Nazaré, de nome Yeshua, já teria dito isto: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt: 11;29). Ou, ainda, nos recomendou sermos “prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mt: 10;16).
A atitude da Igreja Católica, portanto, nos sinaliza (meio espírita) um divisor de águas.
É hora, espíritas, de revermos os nossos métodos e de buscarmos o público jovem que seja imprescindível para a difusão das verdadeiras mensagens de Espiritualidade, que o kardecismo propõe para os temas da vida físico-material e suas interconexões com a ambiência espiritual. Sem eles, os jovens, a Doutrina dos Espíritos estará fadada a ser apenas um “plano de boas intenções” que figurou na História da Humanidade mas não teve forças nem empenho para, como propôs Kardec, se popularizar [4].
Vamos nessa?
Notas do Autor:
[1] Alguns dados sobre a família Acutis estão disponíveis no endereço: <https://www.brasilparalelo.com.br/noticias/quem-sao-os-acutis-familia-do-primeiro-santo-millennial-da-igreja-catolica>. Acesso em 9. Set. 2025.
[2] Reportagem da Redação G1, disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/09/07/carlo-acutis-a-historia-do-jovem-catolico-1o-santo-millenial.ghtml>. Acesso em 9. Set. 2025.
[3] Especificamente, há o artigo “Espíritas em queda livre: diversas causas, um efeito, múltiplas preocupações”, disponível em: <https://www.comkardec.net.br/espiritas-em-queda-livre-diversas-causas-um-efeito-e-multiplas-preocupacoes-por-marcelo-henrique-e-marcus-braga/>. Acesso em 9. Set. 2025.
[4] Tivemos oportunidade de citar o texto kardeciano, no artigo “A mercantilização da formação do palestrante espírita”. In verbis: “Dois elementos hão de concorrer para o progresso do Espiritismo: o estabelecimento teórico da Doutrina e os meios de a popularizar” (grifos nossos), conforme consta de “Obras Póstumas”, de Allan Kardec, na dissertação “Projeto 1868”. O artigo em questão está disponível em: <https://www.comkardec.net.br/a-mercantilizacao-da-formacao-do-palestrante-espirita/>. Acesso em 9. Set. 2025.