Por quem os sinos dobram?, por Felipe Felisbino

Tempo de leitura: 2 minutos

Felipe Felisbino

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Ainda é tempo. Tempo de levantar-se. Tempo de ouvir os sinos, e responder com presença.

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Com raras exceções, parecem distantes os tempos em que o sino da igreja, com suas badaladas pausadas anunciava luto. O som espalhava-se pela vila como um aviso e uma convocação, a dor era coletiva. Hoje, o que ressoa no ar é um silêncio anestesiado. Um silêncio que não denuncia, que não chora, que não interrompe o curso indiferente da vida cotidiana. Não ouvimos mais os sinos. Ou talvez estejamos surdos para eles.

“O que será que me dá?

E que me sobe à face e me faz corar;

E que me salta aos olhos a me atraiçoar, me faz confessar…”

A canção de Milton Nascimento e Chico Buarque nos devolve uma pergunta íntima e incômoda: O que será que nos deu? Que torpor é esse que nos toma e que já não nos faz ruborizar diante da tragédia anunciada? 

Em Santa Catarina, mais de um milhão de doses de vacinas foram descartadas. O mesmo se repete Brasil afora. E o que nos espanta mais é que… isso já nem espanta. Governantes têm culpa. O desmonte da política de vacinação não foi acidente, foi opção. Há falta de planejamento e desinformação. Mas há também uma culpa difusa, coletiva, difícil de encarar: a de uma sociedade que desaprendeu a confiar, a escutar, a se importar. 

Uma sociedade que, tantas vezes, recusa o gesto mais simples e mais solidário: estender o braço. Cada dose perdida é mais do que um custo: é um contrato rompido entre Estado e cidadão, entre ética e realidade. “O que será que me dá?”, ecoa novamente a canção. 

Talvez a pergunta mais urgente seja: o que será que NÃO nos dá mais? Não nos dá mais vergonha, nem raiva, nem o ímpeto de mudar? Quando foi que desistimos de sentir? Vacina no lixo é o retrato de um país adoecido, não apenas no corpo, mas na alma. 

E os sinos? Continuam a dobrar. Por cada vida que poderia ter sido salva. Pelo braço que não foi. Pelo gesto de cuidado que foi negligenciado. Por nós, porque, como escreveu John Donne, 

“a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. Por isso, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.” 

Que essa badalada simbólica nos desperte. Que nos suba à face. Que nos faça corar. Que nos atraiçoe, e nos salve. Que confessemos, enfim, nossa falha, mas também nossa capacidade de fazer diferente. Porque ainda é tempo. Tempo de levantar-se. Tempo de ouvir os sinos, e responder com presença.

Imagem de Albrecht Fietz por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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