Os (muitos) determinismos espíritas, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 7 minutos

Os (muitos) determinismos espíritas 

Marcelo Henrique

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É essencial fugirmos dos determinismos espíritas. É preciso mudar a forma de pensar e de entender a vida. Caso contrário, continuaremos como cegos diante da realidade, seguindo apenas aquilo que uns e outros estabelecem como “a interpretação única” dos fatos.

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Minha saudosa mãe, desde os meus dias de criança, tinha uma expressão que, volta e meia, aparecia, em distintas situações do cotidiano. Dizia, ela: – Não cai um fio de cabelo sequer de nossas cabeças, se não for da vontade de Deus!

Confesso que aquilo, desde a tenra idade, me instigava…

Evidentemente, a fala não era originária dela. Ela havia ouvido esta expressão, durante a sua vida, certamente em ambientes religiosos, posto que era católica antes de se tornar espírita.

O fato é que a tal (curiosa) expressão era uma espécie de mantra. Volta e meia era “entoado”. E era aplicado, sobretudo, em relação às diversificadas situações da existência: seja em relação a si, ao contexto familiar, à ambiência profissional, como, também, em relação a situações existenciais daqueles com quem ela conversava.

Para mim, entendo até que ela acreditava piamente nisto. E esta crença (cega, é fato) não a fazia uma criatura melhor nem pior, posto que isto pertencia ao contingente das crenças pessoais, que são ensinadas e passam a fazer parte do imaginário e das convicções íntimas. Convenhamos: cada um tem as suas.

Mas eu – muito tempo depois – entendi que aquilo soava como uma espécie de lenitivo ou consolo, uma justificação imaterial ou transcendental para as inúmeras situações da existência. Assim, quando o noticiário divulgava uma catástrofe, uma inundação, um terremoto, uma queda de uma aeronave, ao lado da comoção que ela – e nós – sentia (sentíamos), havia a repetição daquele bordão.

Depois, ela passou a estudar com afinco o Espiritismo e a educar e aplicar a sua prodigiosa mediunidade, nas instituições que frequentou, atendendo a quantitativos representativos de pessoas. Mesmo assim, ela continuava entendendo aquele determinismo divino.

Traduzindo a expressão e compreendendo-lhe o conteúdo, a partir da ideia religiosa (e porque não dizer dogmática, mítica e mística), tem-se a representação de um “Deus-humano”, feito à imagem e semelhança dos homens da Terra. Assim, a frase conduz ao entendimento de que ele, Deus, participa diretamente dos atos e fatos da vida planetária, sejam os individuais ou os coletivos. Curioso isso, não?

Muitas pessoas, mesmo espíritas, acabam não se dando conta disto. Repetem frases como essa – as quais possuem algum sentido, no conteúdo das crenças e da religiosidade íntima – e passam a acreditar realmente que haja toda uma previsão inafastável, uma espécie de roteiro infalível, com predeterminações espirituais (divinas) para o desenrolar dos atos e fatos da existência (material, física) das individualidades e das sociedades. Como se tudo estivesse previamente traçado…

É preciso salientar que, no Brasil, a Filosofia Espírita tem sido entendida e praticada com certas particularidades. É, como se tem dito, um “Espiritismo à brasileira”. Isto porque a incidência do Cristianismo (leia-se das igrejas cristãs e de sua filosofia doutrinária) no meio espírita é ampla e permanente – sobretudo se considerarmos que a conjuntura terrena, formada pelos adeptos do Espiritismo, compõe o chamado “período religioso”, como Kardec acentuou (Revista Espírita, “Período de Luta”). Assim, é muito comum que as expressões da ambiência espírita, nas manifestações de simpatizantes, adeptos, estudiosos, dirigentes, expositores e escritores, estejam carregadas de símbolos e cores que advém da interpretação cristã – e não da espiritual-espírita, entendida como o contexto distante das alegorias religiosas.

Neste sentido, também a chamada “Codificação Espírita”, ou seja, o conjunto de 32 obras legadas por Rivail-Kardec à Humanidade, está repleto de afirmações do Cristianismo, dentro da liturgia religiosa, posto que as principais assinaturas nas psicografias sejam de vultos religiosos, católicos em sua imensa maioria. Assim, como a morte não transforma NINGUÉM naquilo que NÃO É, o natural é que os desencarnados, mesmo com apreciável e destacada condição moral – um dos dois elementos que constituem o progresso espiritual, aliado à inteligência – continuem se manifestando com suas idiossincrasias, crenças e valores religiosos, exatamente como nutriram em suas existências “na batina”.

Assim sendo, aquela ideia de hominização divina, contida na expressão materna que destacamos inicialmente acaba determinando a forma pela qual encaramos a Divindade e como nos relacionamos (espiritualmente) com ela. Neste cenário, também devemos considerar o aspecto espiritual de cada um, porque os espíritas (encarnados) são seres espirituais que possuem uma bagagem (pregressa) e uma educação (planetária) e, como tal, trazem e expressam um componente que possui contornos de espiritualidade, herdados tanto das vivências em agremiações religiosas (cristãs, em sua maioria), mantendo-os na forma de comportamentos na própria ambiência “espírita-cristã”, que se vivencia no Brasil espírita – isto desde sua origem, no final do século XIX (a partir do pioneiro Teles de Menezes).

Todavia, cabe-nos, no exercício da racionalidade e da lógica, premissas, aliás, estabelecidas pelo próprio Codificador, em termos de mensagens e atividades espiríticas, saber separar o que é da individualidade e o que é principiológico, calcado na expressão (nem sempre utilizada ou presente) do Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos.

Assim, devemos voltar ao tema do(s) determinismo(s) espírita(s).

Seria adequado, assim, entender que as mais diversificadas situações do cotidiano, atos e fatos, individuais e coletivos, seriam ocorrências baseadas na VONTADE de Deus? O que pensar disto… Como seria a representação divina, a partir dos conceitos da Doutrina dos Espíritos? Em outras palavras, como é o “Deus do Espiritismo”?

Você já parou pra pensar sobre a (sua) ideia (pessoal) acerca de Deus? E, também, a ideia (coletiva) presente nas ambiências espíritas, de que você frequenta ou participa, presencial ou virtualmente, qual é a noção de Deus que sobressai? 

Pense um pouco…

Há um Deus punitivo? Há um Deus severo? Há um Deus administrador da Justiça Divina? Há um Deus conselheiro? Há um Deus que se manifesta (verbalmente) em relação às Suas criaturas? Há um Deus que se entristece ou se irrita, quando agimos equivocadamente; ou se alegra e exulta, ao constatar que acertamos? Há um Deus que premia ou castiga? 

Pense mais um pouco…

Quando algo de bom, positivo, vitorioso acontece na sua vida, você acredita que é uma benesse divina? E quando passa por percalços, infortúnios, males, é uma espécie de maldição da divindade? 

Hum…

Se você acredita que a Justiça Divina se baseia nestas premissas salientadas nos dois parágrafos anteriores, minha amiga e meu amigo, penso que este possa ser o momento para você REVER CONCEITOS.

Durante muito tempo (e até hoje) sempre que sou convidado a expor temas que guardem correlação com a dinâmica do Universo e a aplicabilidade das Leis Divinas, tenho feito estas afirmações: “Deus não se imiscui na rotina das individualidades espirituais humanas”; “Deus não joga dados”; “Deus não se acha sujeito às variações de humor, presentes no homem”; “Deus, o Pai, não se alegra nem se irrita com os atos falíveis de seus filhos, os Espíritos”; “Deus não concede honrarias ou premiações, nem punições ou represálias”; “A administração do Universo não está nas mãos de Deus, mas decorre da aplicação direta das Leis Universais, sem a interferência pessoal de Deus”.

Estes paradigmas, para mim, fazem todo o sentido! Eles não terceirizam a responsabilidade nem transferem para uma entidade “sobrenatural” a distribuição da própria Justiça (Divina). Quando Kardec perguntou às Inteligências Superiores acerca do conhecimento (humano e espiritual, porque somos Espíritos) sobre o conjunto das Leis Divinas (ou Leis Espirituais), para, assim, justificar a aplicação da própria lei às individualidades, eles responderam: as leis estão grafadas na consciência (de cada um).

Na atualidade, assim, vejo muitas pessoas – e, dentre elas, um grande número de espíritas – que parecem buscar uma justificativa para as mais diversas situações da vida. Veja-se, por exemplo e recentemente, a questão da pandemia que assola este planeta. Muitos espíritas acham que ela, a pandemia, teria sido algo “arquitetado espiritualmente” para “acelerar” o progresso (individual e planetário). Uma espécie de “seleção espiritual” para contemplar os mais aptos (aqueles, por exemplo, nesta ilação, que não estejam desencarnando por efeito da doença). E, também, como vez por outra é repetido em fóruns espíritas, que é necessária a “intervenção” espiritual para que o progresso da Terra, deixando a fase provacional-expiatória e alcançando a regenerativa, ocorra.

O que dizer, respeitosamente, deste raciocínio? Será que ele respeita as premissas da Doutrina dos Espíritos? Este pensamento se constitui em elementos de AUTONOMIA do Espírito, onde cada qual age e responde acerca de suas decisões e escolhas, tal qual teria dito Yeshua, sobre “ser livre a semeadura e obrigatória a colheita”?

Lembro-me, também, de, ainda no momento pandêmico, mas já na fase menos aguda, ouvir de duas senhoras com quem eu conversava em uma ambiência espírita: – Ah, pra que usar máscara? Pra que se precaver tanto? Não seria melhor obter os anticorpos para que o vírus não alcance a gente? Deus é que sabe! Só morre quem tem de morrer!”.

E por aí, vai…

Há um expressivo contingente de espíritas que, realmente, “acredita” nisto. E segue a vida, entendendo que “o que é seu está guardado”, no sentido de que não vá acontecer, a eles, nada do que não esteja “programado”. Como se a dinâmica da vida fosse agir de uma forma “teleguiada” ou cumprindo um “roteiro” totalmente pré-estabelecido. Como se as esquinas das ruas da cidade não permitissem, a cada passo, a cada novo instante, divisar situações extraordinárias, inéditas, de livre entendimento e decisão, o que faz, certamente, da vida (de encarnados) essa mágica de poder se surpreender (positiva ou negativamente) a cada passo.

Um raciocínio tido como espírita em que tudo seja “controlado” ou “decidido” por Deus, me parece, como disse Rita Lee em uma de suas canções “muito chatinho”. Ao invés de assumirmos o protagonismo existencial, a condição de artistas principais do cenário de nossas vidas, deixamos que o “destino”, a “programação encarnatória” ou “Deus” tomem as rédeas do nosso viver.

E, então, diante dos FRACASSOS, dos ERROS, das DESGRAÇAS, das PROVAS/EXPIAÇÕES, só resta aos que assim pensam, o lamento, a tristeza, as lágrimas e a subserviência àquilo que, dizem eles, não pode ser mudado. Tudo pode ser mudado! Tudo parte de nós e a nós retorna, como a figura do bumerangue…

É preciso fugir dos determinismos espíritas! Como? Mudando a forma de pensar e de entender a vida. Ficando atentos para a explicação coerente das Leis Espirituais – e não a tradução religiosa para textos ou máximas contidas, até mesmo, nas obras de Kardec. Vejo muitos “ditando” a forma de entendimento das questões espirituais e espíritas. E observo, aqui ou ali, uma multidão de seguidores cegos daquilo que uns e outros estabelecem como “a interpretação única”.

Se, APENAS, como disseram os Espíritos a Kardec, há uma única SITUAÇÃO FATAL na existência humana, que é o momento de consumação da morte (física, porque o Espírito a ela sobrevive), no sentido de que, ao ocorrer a mesma, não há retorno, ou seja, ninguém “revive” naquela existência e circunstância, nenhum de nós pode dizer, com exatidão, qual seja o INSTANTE DA MORTE. Isto é, até em relação a ela (se quisermos evitar as circunstâncias de perigo, de risco e de favorecimento ao desencarne, por opção pessoal), NÃO HÁ determinismo!

E o “morreu porque foi da VONTADE de Deus” passa a não fazer mais nenhum sentido. Morreu, sim. Mas por decorrência das Leis Espirituais, o que afasta, das “mãos de Deus” qualquer responsabilidade na execução (e nos efeitos) dos mínimos atos da existência.

Concorde você, ou não, com estas linhas, tenho certeza de que elas lhe farão pensar muito – e diferentemente – sobre os tais “determinismos espíritas”.

E, só por isso, já valeu a pena escrever este artigo…

Imagem de hainguyenrp por Pixabay ser espirita

 

 


Edição: Agosto de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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