Leonardo Paixão
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O tempo é a medida da evolução, mas não se trata de mera cronologia: é experiência, vivência, amadurecimento. O Espírito, em sucessivas encarnações, mergulha na temporalidade como espaço de aperfeiçoamento e conquista da consciência.
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Resumo
Este artigo explora a relação entre Espírito e temporalidade a partir do excerto de Martin Heidegger citado por José Herculano Pires em “O Espírito e o Tempo: Introdução Antropológica ao Espiritismo”. Dialogando com a filosofia hegeliano-heideggeriana e com a Doutrina Espírita, busca-se compreender o tempo como dimensão essencial para a manifestação do Espírito e para a constituição da História. São abordados quatro eixos interpretativos: a História como História do Espírito; o desenvolvimento espiritual em sua dialética com a matéria; a intratemporalidade e o tempo como “sensível não sensível”; e o tempo como acolhimento do Espírito. Conclui-se que, tanto na Filosofia quanto no Espiritismo, o Espírito encontra no tempo a condição de sua realização histórica e de sua ascensão progressiva.
Palavras-chave: Espírito; Tempo; Heidegger; Hegel; Herculano Pires; Filosofia; Espiritismo.
Introdução
No livro “O Espírito e o Tempo: Introdução Antropológica ao Espiritismo”, José Herculano Pires (1995) inicia sua reflexão com um excerto do filósofo Martin Heidegger, em diálogo com Hegel:
“A História, que é essencialmente História do Espírito, transcorre ‘no tempo’. Assim, pois, ‘o desenvolvimento do espírito cai no tempo’. Hegel, porém, não se contenta em afirmar a ‘intratemporacialidade’ do Espírito como um factum, mas trata de compreender a possibilidade de que o espírito caia no tempo, que é o ‘sensível não sensível’. O tempo há de poder acolher o espírito, por assim dizer. E o espírito há de ser, por sua vez, afim com o tempo e com a sua essência” (Heidegger, apud Pires, 1995:10).
Este excerto coloca em evidência o problema da relação entre Espírito e temporalidade. Heidegger, reinterpretando Hegel, apresenta o tempo não apenas como sucessão cronológica, mas como condição ontológica para a manifestação do Espírito.
O objetivo deste artigo é examinar essa formulação em diálogo com a concepção espírita de evolução espiritual, destacando quatro aspectos centrais: (1) a História como História do Espírito; (2) a dialética entre Espírito e matéria; (3) a intratemporalidade e o tempo como “sensível não sensível”; e (4) o tempo como acolhimento do Espírito.
- A História como História do Espírito
Para Hegel, a História universal não é mera sequência de acontecimentos, mas o processo pelo qual o Espírito se auto conscientiza, criando cultura, ciência e instituições (Hegel, 1992). Heidegger retoma essa concepção, destacando que a História é, essencialmente, a história do Espírito em sua manifestação temporal.
Do ponto de vista espírita, essa leitura encontra ressonância na lei do progresso, segundo a qual a humanidade caminha, por etapas sucessivas, rumo ao aperfeiçoamento intelectual e moral (Kardec, 2004:776). A História registra, assim, o itinerário do Espírito em busca da plenitude, seja no plano individual, seja no plano coletivo.
- Espírito e matéria: uma dialética evolutiva
O desenvolvimento do Espírito em Hegel é dialético: realiza-se por meio de contradições, superações e sínteses. O Espírito se constrói enfrentando resistências, negando e superando estados anteriores de consciência.
Sob a ótica espírita, a encarnação oferece justamente esse campo dialético. A matéria apresenta limites que desafiam a liberdade espiritual, mas é nesse enfrentamento que se produzem aprendizado e evolução. Como observa Herculano Pires (1995), a experiência terrena é a arena onde o Espírito se educa. A dialética da vida material constitui, portanto, uma pedagogia cósmica: o Espírito encontra na matéria não apenas restrição, mas também possibilidade de ascensão.
- Intratemporalidade e o tempo como “sensível não sensível”
Heidegger chama de “intratemporacialidade” a condição do Espírito inserido no tempo. O tempo, definido como “sensível não sensível”, não é objeto físico perceptível pelos sentidos, mas é vivido na experiência existencial. O ser humano não “possui” o tempo: ele é tempo, na medida em que sua existência se desenrola na temporalidade (Heidegger, 2012).
No horizonte espírita, essa formulação pode ser compreendida como a condição de aprendizado do Espírito. O tempo é a medida da evolução, mas não se trata de mera cronologia: é experiência, vivência, amadurecimento. O Espírito, em sucessivas encarnações, mergulha na temporalidade como espaço de aperfeiçoamento e conquista da consciência.
- O tempo como acolhimento do Espírito
Heidegger observa que o tempo deve ser capaz de “acolher o Espírito”. Isso significa que o Espírito não se realiza fora da temporalidade: é no tempo que ele se manifesta, seja pela ação concreta no mundo, seja pela elaboração simbólica de ideias, valores e expressões culturais.
A Doutrina Espírita amplia essa compreensão ao situar o tempo como lei divina que regula o processo de progresso espiritual. Cada encarnação, cada ciclo histórico, cada etapa civilizatória é oportunidade oferecida pelo tempo para que o Espírito se manifeste e se eleve. Espírito e tempo, nesse sentido, são afins: ambos são realidades imateriais, invisíveis, mas indispensáveis à vida e à História.
Conclusão
O diálogo entre Heidegger, Hegel e a visão espírita de Herculano Pires permite afirmar que a História é, essencialmente, a história do Espírito. O tempo, embora seja “sensível não sensível”, constitui o horizonte ontológico e pedagógico no qual se desenrola a jornada espiritual.
Enquanto a filosofia destaca a intratemporalidade como condição existencial do ser humano, o Espiritismo acrescenta que o tempo é o recurso providencial da evolução moral e intelectual. Dessa forma, História e tempo não são meros cenários, mas protagonistas da experiência espiritual: é por meio deles que o Espírito se revela, se educa e se eleva rumo à plenitude.
Fontes:
Hegel, G. W. F. (1992). “Fenomenologia do Espírito”. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes.
Heidegger, M. (2012). “Ser e Tempo”. Trad. Fausto Castilho. Petrópolis: Vozes.
Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. São Paulo: Lake.
Pires, J. H. (1995). “O Espírito e o Tempo: Introdução Antropológica ao Espiritismo”. 7. ed. São Paulo: Edicel.
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