Por Jaci Regis (in memoriam)
Na questão 799 de O Livro dos Espíritos, Kardec pergunta: – De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso? E a resposta é objetiva: Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele, (o Espiritismo) faz os homens compreenderem onde está o seu verdadeiro interesse. A vida futura não estando mais velada pela dúvida, o homem compreenderá melhor que pode assegurar o seu futuro através do presente. Destruindo os preconceitos de seita, e casta de cor, ele ensina aos homens a grande solidariedade que os deve unir como irmãos.
A compreensão da imortalidade abre horizontes, modifica o próprio significado da vida corpórea. Mas não se pode entender a resposta como um convite a considerar a vida terrena desprezível. Na verdade, na questão, o termo “materialismo” abrange todos os segmentos que consideram a vida terrena dentro do espaço berço-túmulo, com seu cortejo de incertezas e conflitos. E isso produz a angústia do fim, a sensação de inutilidade dos valores. No final das contas, as religiões, como detentoras dos valores através dos tempos, têm responsabilidade pela desqualificação da existência. As promessas de prêmios e castigos além-túmulo não produziram efeito prolongado e sólido para sustentar a manutenção dos valores, à medida que seu domínio foi sendo enfraquecido pelo progresso e pela liberação das ideias. Parte daí o incentivo para o materialismo existencial básico que está na raiz do comportamento geral.
A solução do problema está no desenvolvimento da espiritualidade, compreendida como a transcendência da materialidade da vida. E que não tem ligação necessária com cultos, crenças e religiões ou fé. É produto do Espírito na busca de valores capazes de manter a existência num nível de equilíbrio entre as necessidades e a sensibilidade. Ou seja, significa o cultivo de valores capazes de harmonizar a mente, o coração e a inteligência, superando os apelos extremados do egoísmo.
Ela permanece na essência do ser, usufruindo, construindo e vivendo intensamente o momento existencial que a vida corpórea nos oferece, mas transcendendo as limitações da morte, porque a imortalidade permite que o ser se projete no tempo, sem perder o minuto.
O Espiritismo pode ajudar a sustentar essa espiritualidade, se conseguir desmontar a mentalidade materialista que subsiste mesmo nos mais místicos e nos mais religiosos, que encontram dificuldade em viver o mundo. O que não pode é repetir os erros das religiões que quiserem afastar o ser de suas necessidades afetivas, negando seus problemas psicológicos, desejos e aspirações, com o apelo da renúncia de si mesmo, que resulta na criação de personalidades falsas.
Somos Espíritos em aprendizado dentro da Lei de Evolução. Isto é, somos imperfeitos, mas não necessariamente maus. A doutrina constrói uma visão positiva da vida e do ser, considerando as necessidades do Espírito em evolução eliminando a angústia cria da pela visão da vida, do ser e do futuro dominada pela morte. Essa angústia abriu as portas à satisfação do egoísmo, seja no contato social, seja na tentativa de buscar satisfação e gozo irrefreado, como alternativa para a frustração e da inutilidade da existência.
Algumas atitudes humanas, libertando-se da tirania das religiões e dos valores castradores do ser, são injustamente classificados como materialistas. Na verdade, muito do progresso humano é fruto desse materialismo que questionou critérios, leis e costumes e avançou derrubando tabus, preconceitos e barreiras.
Se o Espiritismo quiser ajudar o progresso deverá usar uma nova linguagem e aprender a analisar os fenômenos do progresso, os conflitos humanos, sob o ângulo da Lei de Evolução e não sob o prisma do pecado, da culpa e do castigo. Ao lado da certeza da imortalidade há de se criar a mentalidade liberta, capaz de superar os desvios e alimentar no Espírito a chama da autorrealização, a certeza da Justiça Divina, não pelas reencarnações punitivas, mas pela benção do recomeço, da reparação, da renovação e da revolução dos estágios que cada um tem atingido, na busca da felicidade.
Pois para isso fomos criados, para sermos felizes.
E para sermos felizes, precisamos aprender a usar os talentos da vida, desenvolvendo a espiritualidade que nos identificará enquanto encarnados e depois, para sempre, progressivamente.
Artigo originalmente publicado no periódico Abertura – Jornal de Cultura Espírita, órgão do Instituto de Cultura Kardecista de Santos – ICKS, ano XVIII, n. 207, outubro 2005.
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