Nem Coração, nem Pátria!, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 8 minutos

Marcelo Henrique

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Ainda persiste, entre os espíritas, a permanente dificuldade de entender os postulados espíritas e a eterna mania de querer ser e parecer mais…
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Vez por outra me deparo com textos, palestras e comentários nas redes sociais sobre a “destinação futura” do nosso país, o Brasil. Ainda que nós, brasileiros – e os estrangeiros que escolheram esta terra para viver ou os que vêm aqui nos visitar e se encantam com o “todo” e “todos” – tenhamos o maior carinho por nossa raiz e origem (nesta encarnação) e entendermos que, aqui, em regra, a hospitalidade tupiniquim abre os braços e acolhe quem chega, torna-se necessário analisar o bordão, decantadamente repetido pelos que se dizem espíritas – adeptos ou simpatizantes.

“Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”. A expressão foi dita por um Espírito (leia-se, um humano desencarnado), e veio à luz pela dinâmica e fantástica mediunidade-instrumento do homem-Amor, Francisco Cândido Xavier. Humberto de Campos (com o pseudônimo de Irmão X), teria sido o autor da expressão e da obra que leva este título. Na Wikipedia, encontramos dois elementos interessantes sobre o livro: 1) a autoria é atribuída ao Espírito; 2) o obra faz uma interpretação mítica e teológica da história do Brasil.

Obviamente direcionada ao público espírita, o livro causou frisson desde o seu lançamento (1938), pela Federação Espírita Brasileira, e possui um conteúdo pra lá de polêmico. Primeiro, pela proposta – que veremos adiante – e, segundo, pela adoção do mesmo como “bandeira”, “diretriz”, “bordão” e “verdade incontestável”.

Vamos iniciar por estes pontos secundários.

Uma bandeira, diretriz ou bordão é uma estratégia de convencimento. A Ciência do Marketing e da Publicidade pode ser utilizada para explicar o sucesso (ou o fracasso) de frases motivadoras. A própria federação, antes citada, já se valeu, por diversas vezes, de bordões para identificar o seu trabalho e o público a quem se direciona. Divulgada, repetida e adotada, acaba se confundindo com o propósito finalístico do Espiritismo – ainda que, obviamente, reduzido ao espectro de um país – compreendendo, portanto, a extensão e os limites do seu território político-administrativo.

Então, é de se perguntar: o Espiritismo tem uma “bandeira”, um “país”, uma “pátria”? Ele é destinado em primazia aos “brasileiros”? Ou, em espectro correlato, seriam os espíritas aqueles que receberiam uma espécie de “missão especial” para a divulgação de ideias éticas e espiritualizadas?

Volto um pouco no tempo para lembrar que, pré-adolescente, ouvi pela primeira vez a seguinte expressão: “a árvore do Evangelho foi transplantada do coração da Europa (Paris – França) para o Brasil”. Aquilo me chocou, duplamente. Vamos ver os dois elementos, caso a caso.

Primeiro: “árvore” do Evangelho? Eu nunca tinha ouvido falar desta expressão. Evangelho (ou as ideias contidas nas pregações, feitos e milagres do homem Jesus de Nazaré – incorporadas pelas escrituras canônicas – a Bíblia, em seu formato mais recente, o “Novo Testamento”) não possui árvore. Jesus nunca se referiu ao conteúdo das ideias espirituais como árvore! Utilizou-se de outros aforismas, em suas parábolas, para salientar a necessidade da eficácia e da eficiência (não só da mensagem, como da prática, espirituais): fermento, vinho e odre, tecido e remendo, semente, entre outros. Uma árvore é algo estático. Se fixa ao solo, possui raízes que lhe fornecem os necessários nutrientes, pode (ou não) dar frutos – seja por um período ou por maior duração – e tem um ciclo: nasce, cresce, vive e… morre! Sim, uma árvore é perecível!

Segundo: o transplante da França para o Brasil. Isto me remeteu, lógica e instantaneamente à ideia (antiga e religiosa) da “terra prometida”. Está lá no Antigo Testamento, a “viagem” do povo hebreu, perseguido por seus algozes, fugindo da truculência, da guerra, para buscar um “porto seguro”. E, de pronto, vislumbrei outra guerra: a do monopólio das certezas, dos “conhecimentos”, dos “temas espirituais” ou, simplesmente, das “verdades”. Os judeus se julgavam conhecedores das Leis de Deus (vale lembrar que o primeiro – e mais efetivo – código ético da Humanidade foi recebido por meio da mediunidade de Moisés, na tábua das dez leis (divinas). Os judeus foram “recepcionados” pelos romanos, e a fusão entre eles deu origem à Igreja Romana (Católica Apostólica), numa tentativa de unificação dos “saberes” e no sentido de “dominar” o Mundo Ocidental a partir da interpretação (tida como “cristã”) das ideias (novamente, frisamos) espirituais ou de espiritualidade.

Se foi eficaz a estratégia – vale dizer que a própria Bíblia (Antigo e Novo Testamentos) é considerada e entendida, quando estudada com profundidade, como a reunião de muitas crenças, algumas ancestrais, milenares, fazendo a conjugação de muitos ensinos presentes em religiões e crenças imemoriais assim como de “verdades” pagãs – e o “Cristianismo” se espalhou pelo Ocidente, devemos relembrar que a união entre Igreja e Estado, por mais de dez séculos, propiciou a realização das mais sangrentas batalhas em nome da fé (cristã), as Cruzadas, assim como a perseguição, na “Idade das Trevas” (Idade Média) a todos os que ousaram, pela inteligência e pela mediunidade, a desafiar o “poder clerical”. Também não podemos deixar de lado que ela, a Igreja Cristã, foi responsável pelo “abono” à escravidão de povos dominados, de indígenas, de negros e, também, de terras colonizadas e seus povos originários. Tudo “em nome de Deus”.

Perguntar-se-ia, então: é esta a “árvore” que se desejou “transplantar”? Sim, porque, para nove entre dez espíritas que se enderece uma pergunta – “o Espiritismo é sucessor do Cristianismo?”. Ou, “o Espiritismo é o Cristianismo redivivo?” – responderão afirmativamente…

Nós, entretanto, dizemos NÃO! Não é esse o “evangelho” e se Jesus (Yeshua, como é o seu nome original, ou Magrão como eu carinhosamente o chamo) viesse dar “uma passadinha” por aqui, pela Terra, ele ficaria chocado com o que “fizeram” (fizemos!) do seu “Evangelho”! O Cristianismo é uma coisa, Jesus é outra, bem diferente! Parece engraçado, mas a história parece querer se repetir: o Espiritismo (Filosofia Espírita, de Allan Kardec) é uma coisa, a religião espírita, o Espiritismo no Brasil, é outra, bem diferente!

Dito isto, vamos voltar ao primeiro ponto: a proposta.

Coração do mundo. O que é o coração? O que simboliza, metaforicamente, ser o coração do mundo. Se perguntássemos a qualquer criança, ela nos diria que o coração é essencial à vida. Afinal, é ele que bombeia o sangue para todos os órgãos do corpo (material) humano. Ainda que a “vida” seja um somatório de atividades de diversas instâncias (órgãos do corpo), alguns com funções muito específicas e fundamentais (vitais), o coração é um belo exemplar da coordenação da existência material.

Mas, nos permitam poetizar um pouco. O coração é o símbolo dos sentimentos e, é claro, o maior deles, o amor. O amor que é a principal divisa das relações humanas. O amor que constrói – mas também pode destruir, em face da dosagem. O amor pode – e deve – ser próprio, para que o ser se lance vida afora, mas não pode, este, ser excessivo, a ponto de se configurar num egoísmo intransponível e doentio, para a individualidade. O amor é de um para o outro, e também precisa de contrapontos ou contrabalanços, para não se tornar indefeso (presa fácil) ou superdimensionado (a ponto de sufocar o outro, privando-o de liberdade). O amor é para o coletivo, mas não pode ser praticado de forma atabalhoada, desordenada, como se, por exemplo, uma pessoa altruísta se dispusesse a doar dinheiro para os mais socialmente carentes, e se colocasse em uma rua da cidade, com um saco de dinheiro na mão, chamando os candidatos a receberem uma parte. O tumulto seria generalizado, a divisão jamais seria equânime e tanto o beneficiador quanto muitos dos interessados talvez pagassem com a própria vida!

Voltemos ao coração. Jesus valorizou a pureza de coração como caracteres identificadores da simplicidade e da humildade. No Capítulo VIII, de “O evangelho segundo o Espiritismo”, o largo alcance da expressão atribuída ao Rabi é dissecada, com exemplos e conotações que são muito úteis àqueles que pretendem entender a aplicação dos “talentos” do coração (puro) na atualidade – e nos dias que virão, adiante. Isto, em termos analógicos, utilizando a imagem do coração como representativa dos sentimentos (mais nobres). Em relação ao coração – órgão físico – Kardec perguntou às Inteligências Invisíveis (“O livro dos Espíritos”, item 69) acerca da causa mortis como sendo uma lesão neste órgão e deles recebeu o informe de que ele “não passa de uma das peças essenciais”.

Se o mundo, então, com todas as suas regiões e países fosse similar a um corpo humano, haveria o coração, os pulmões, o cérebro, o fígado, o estômago, os rins e até o apêndice, todos com funções importantes, e com a necessidade de “vida em perfeita harmonia”. São portanto, todos os órgãos importantes, quanto os Estados (países) no contexto planetário, daí ser estanho considerar um (coração) “mais” do que os outros. Ainda que um dos países pudesse ser – mesmo – o coração, ele não possuiria nenhuma “importância crucial” ou primazia em relação aos demais.

Mas – e sempre tem um ponto adicional, não é mesmo? – se a questão for relacionada aos sentimentos, ao carinho, à hospitalidade, à figura do “coração de mãe” onde sempre cabe mais um, à ideia poética da fraternidade, será que podemos considerar o Brasil como “coração do mundo”? Apressadamente, pelos elementos expostos acima, sim! Mas, perguntemo-nos: como pode SER um coração, o lugar em que pessoas moram e dormem na rua? Onde um número assustador faz uma refeição por dia (ou menos)? Onde não há emprego (nem renda) para todos? Onde pessoas são escravizadas, à moda do século XV? Onde pessoas são perseguidas por suas convicções e preferências? Onde toda a sorte de preconceitos ainda campeia? Onde centenas ou milhares de pessoas morrem semanalmente em face da violência e da criminalidade? Se é um coração, este está muito enfermo…

E a pátria? O que é a pátria? Para os humanos (Espíritos encarnados), que se emocionam ao ouvir (e cantar) o hino, que consideram a bandeira republicana brasileira a mais bonita de todas, que sentem orgulho em dizer-se brasileiros (não sei se todos nem em todas as situações!), mesmo considerando diferenças interpretativas, em regra a origem, a naturalidade-nacionalidade é um elemento significativo. Mas, e para os Espíritos (desencarnados)? Kardec também se ocupou deste tema, questionando os Luminares e deles recebendo a seguinte afirmação: “Para os Espíritos elevados, a pátria é o universo” (“O livro dos Espíritos, item 317”). Complementarmente, eles ainda colocam em plano superior, em termos de afinidade, por parte dos desencarnados, aos vínculos entre os seres, que aqui conviveram: “Na Terra, a pátria, para eles, está onde se ache o maior número das pessoas que lhes são simpáticas”. Como reencarnamos sucessivas vezes e em “terras” diferentes, vamos costurando relações interpessoais, de modo que, ao desencarnarmos, podemos, mesmo, ser considerados como seres cosmopolitas, habitantes do planeta como por inteiro e, migrando de mundo para mundo, como “cidadãos do universo” (vide, novamente, a resposta, acima, do item 317).

Mítica e teológica é, então, a ideia da obra “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”.

Assim, não faz o menor sentido – senão o da arrogância e prepotência – considerar qualquer “missão espiritual do Brasil” à frente de qualquer outro Estado-nação da atualidade. Primeiro, porque a dita “verdade cristã” – que muitos espíritas indicam ser a única fundamentação da Filosofia e da Ética Espíritas – não é majoritária no mundo, porque praticamente dois terços da Humanidade não reconhece (ou sequer, em numerosos casos conhece) a “mensagem cristã”. Segundo, porque os valores espirituais não se acham vinculados obrigatoriamente a nenhuma filosofia, crença ou religião, porque são universais, inclusive a partir da própria expressão do Magrão: “o vento sopra onde quer”, não sendo privilégio de nenhum dos saberes e organismos humanos. Terceiro porque, como Espíritos, não possuímos qualquer apego à país, continente ou planeta, dado que nosso vínculo é com o Universo.

O Espiritismo constitui uma filosofia de vida, para muitos. Como tal, depende da forma como o entendemos e como o praticamos. Os entendimentos espirituais contidos na Filosofia Espírita são passíveis de modificação com o tempo e o progresso de indivíduos e coletividades. Assim, desejamos que o planeta inteiro, um dia, se constitua num coração (lugar de afetos sinceros) e uma pátria (ainda que provisória) para que todos possam se aperfeiçoar, experimentando, a cada dia, a alegria de viver e aprender. Por enquanto, nem o Brasil nem qualquer outro país – na precária delimitação organizacional da política mundana – possui privilégios ou prescrições espirituais, como predições a serem cumpridas.

E, para todos (os Espíritos), há um único “destino”: a felicidade que decorre do progresso!

Imagem de Simon Wijers por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

5 thoughts on “Nem Coração, nem Pátria!, por Marcelo Henrique

  1. Durante um bom tempo acreditei nessa “missão brasileira “. Demorei um tempo para entender e ver o projeto de poder por trás da aparente inocência no termo pátria do evangelho. Um dia escrevi que Deus não é brasileiro, um pequeno texto que realmente me fez ver com outros olhos. O Eck é sempre um oásis de reflexão.

  2. A cada dia, nos libertamos dessa manipulação de ideias. De tanto ser repetida, acabou considerada uma verdade. Estudar Kardec p entender melhor o Espiritismo é nossa ferramenta primordial. O questionamento das mensagens mediúnicas é fundamental! Como aprendemos em O Livro dos Médiuns!!! Gratidão pela reflexão lúcida e tão necessária!

  3. Que texto magistral. Eu como portuguesa e desde que comecei a ter algum conhecimento de Filosofia Espírita, que ainda é muito pouco, sempre entendi que esse chavão de: Brasil Pátria do Evangelho e coração do Mundo, nunca poderia ter vindo de um espírito superior, e que o Sr. Francisco Xavier, de coração bondoso e simples, não se opôs a essa publicação por ser unicamente um instrumento de escrita do livro e a passagem da mensagem desse espírito em particular. Tiro o meu chapeu a quem de forma sistémica o analisa e aprecia de forma honesta e isenta. Obrigada Professor por partilhar connosco tanto conhecimento.

  4. Fico imensamente agradecida às suas colocações, esclarecedoras e didáticas, que nos tiram da “normose” estabelecida por falas repetidas por tantos anos e replicadas por inúmeros palestrantes… Muito obrigada!!!

  5. Kardec não associou o Espiritismo ao espírito de sistema. Na minha simples opinião o livro foi escrito com o propósito de enquadrar os espíritas brasileiros, majoritariamente religiosos, na obediência cega à ideia da superioridade do espiritismo frente a qualquer outra ideia, crenças ou fenômenos. Vejo mais como uma tentativa de manipular a possibilidade do livre pensar fechando o espiritismo em dogmas. Bem longe da proposta de Kardec.

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