Wilson Garcia
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A espiritualidade madura não se reduz a conservar ou arriscar, mas a buscar a verdade com coragem e humildade, sabendo que toda certeza de hoje já foi, um dia, um duvidoso de ontem.
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A expressão “não trocar o certo pelo duvidoso” é uma daquelas máximas populares que carregam, ao mesmo tempo, sabedoria prática e armadilhas conceituais. Num primeiro olhar, parece apenas um conselho prudente; mas, examinada com mais atenção, revela-se uma fórmula de duplo sentido, usada ora como guia de cautela, ora como justificativa que oculta o medo de arriscar. É nesse ponto que o conservadorismo — pessoal e coletivo — encontra um de seus instrumentos mais sutis de perpetuação.
O Sentido Literal e a Sabedoria Prática
No plano imediato, a expressão aconselha a não trocar uma situação estável por outra incerta. É um princípio de prudência e gestão de risco. Tal ideia remete à noção clássica de phronesis (sabedoria prática), descrita por Aristóteles na Ética a Nicômaco, como a virtude de deliberar corretamente diante da incerteza.
Exemplo: um profissional que recusa uma proposta de emprego em uma empresa instável para permanecer em seu cargo seguro está, nesse sentido, aplicando uma prudência aristotélica. O “certo” garante continuidade, enquanto o “duvidoso” ameaça o equilíbrio conquistado.
A Ambiguidade: Estabilidade ou Estagnação?
O problema, no entanto, é que o “certo” e o “duvidoso” são construções sociais e subjetivas. O que hoje parece sólido pode se tornar obsoleto amanhã. Como lembra Zygmunt Bauman (Modernidade Líquida, 2000), vivemos em uma sociedade onde nada permanece fixo, e a estabilidade é muitas vezes uma ilusão. Por outro lado, o “duvidoso” pode conter a potência do novo, aquilo que Thomas Kuhn chamou de “anomalia” em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), capaz de abrir espaço para mudanças de paradigma.
Assim, a mesma expressão pode tanto resguardar contra escolhas imprudentes quanto servir de pretexto para o imobilismo.
A Camada Psicológica: Medo e Autoengano
Em muitos casos, a máxima funciona como racionalização do medo. Sigmund Freud já mostrava que a resistência à mudança frequentemente se disfarça de justificativa racional. Erich Fromm, em O Medo à Liberdade (1941), vai além: o indivíduo prefere a segurança da submissão e da conformidade à angústia de assumir a responsabilidade pela própria vida.
O “não trocar o certo pelo duvidoso” pode ser, nesse sentido, uma forma de permanecer na zona de conforto, conceito que a psicologia contemporânea (White, 2009) descreve como o espaço psíquico em que a familiaridade prevalece sobre o crescimento.
O Conservadorismo e a Manutenção do Poder
No campo social, a expressão atua como mecanismo de defesa do status quo. Pierre Bourdieu mostrou em A Reprodução (1970) como as estruturas de poder se legitimam através de discursos que naturalizam a ordem vigente, travestindo-a de “bom senso”.
Assim, qualquer proposta de inovação pode ser desacreditada como “duvidosa”, enquanto a manutenção do estabelecido é apresentada como prudência universal. Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, já advertia que o “senso comum” é frequentemente a ideologia dos dominantes naturalizada na fala popular.
O “duvidoso” de ontem — a democracia, o voto feminino, a internet — tornou-se o “certo” de hoje. Mas, quando surgiram, foram tratados como apostas irresponsáveis.
O Dilema Espiritual: Fé Estabilizada ou Busca Autônoma?
Esse dilema ganha densidade existencial no plano religioso. Trocar uma crença estabilizada por outra racionalmente atraente — como a proposta kardecista diante das tradições cristãs — é mais que um exercício lógico: é uma crise de sentido.
William James, em As Variedades da Experiência Religiosa (1902), mostrou que a religião funciona como matriz de orientação vital, e abandonar essa matriz implica um verdadeiro abalo da psique. Peter Berger, em O Dossel Sagrado (1967), explica que a religião estabiliza o mundo social, oferecendo um “certo” contra o caos existencial.
O Espiritismo de Allan Kardec aparece, nesse contexto, como uma alternativa racional e investigativa — um “duvidoso” atraente porque dá respostas lógicas a questões que a fé tradicional trata como mistério. No entanto, adotar essa via implica enfrentar o custo da autonomia espiritual: José Herculano Pires, em Educação para a Morte (1971), lembrava que o Espiritismo exige do indivíduo uma postura ativa, sem muletas dogmáticas, o que é exigência e desafio.
Entre Simplificação e Complexidade
Seria simplista concluir que apenas os “corajosos” buscam autonomia enquanto a maioria se refugia no medo. A realidade é mais matizada. Para milhões de fiéis, a experiência comunitária não é muleta, mas comunhão vivificante. Para outros, a autonomia não é sempre libertação, podendo ser isolamento ou orgulho intelectual.
Charles Taylor, em Uma Era Secular (2007), analisa justamente essa tensão: enquanto alguns buscam a fé como pertencimento comunitário, outros buscam uma espiritualidade mais individualizada. Ambas as opções respondem de modo legítimo ao mistério da condição humana.
Conclusão: O Equilíbrio da Escolha
A força da expressão “não trocar o certo pelo duvidoso” está em sua ambiguidade. Pode ser prudência aristotélica, medo freudiano ou estratégia conservadora bourdieusiana. No campo espiritual, é o dilema entre o porto seguro da tradição e o mar aberto da busca autônoma.
Nenhum desses caminhos é intrinsecamente superior. O verdadeiro risco está em viver sem consciência crítica — seja permanecendo no “certo” por medo, seja abraçando o “duvidoso” por mera rebeldia. O essencial é discernir quando o “certo” deixou de alimentar a alma e quando o “duvidoso” deixou de ser apenas incerteza para se tornar possibilidade de sentido.
Em última instância, a espiritualidade madura não se reduz a conservar ou arriscar, mas a buscar a verdade com coragem e humildade, sabendo que toda certeza de hoje já foi, um dia, um duvidoso de ontem.
Fontes:
ARISTÓTELES. (1973). “Ética a Nicômaco”. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Abril Cultural.
BAUMAN, Z. (2001). “Modernidade líquida”. Rio de Janeiro: Zahar.
BERGER, P. L. (1985). “O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião”. São Paulo: Paulus.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. (1975). “A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
FREUD, S. (1976). “Inibições, sintomas e ansiedade”. Rio de Janeiro: Imago.
FROMM, E. (1983). “O medo à liberdade”. Rio de Janeiro: Zahar.
GRAMSCI, A. (1999). “Cadernos do cárcere”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
JAMES, W. (2002). “As variedades da experiência religiosa”. São Paulo: Cultrix.
KUHN, T. S. (2013). “A estrutura das revoluções científicas”. 10. ed. São Paulo: Perspectiva.
PIRES, J. H. (1971). “Educação para a morte”. São Paulo: Paidéia.
TAYLOR, C. (2010). “Uma era secular”. São Leopoldo: Unisinos.
WHITE, A. (2009). “From comfort zone to performance management”. Hoeilaart: White & MacLean Publishing.
Nota do ECK: Texto originalmente publicado no blog “Espiritismo E+”, mantido pelo autor.
Imagem de Italo Guimas por Pixabay