Médiuns Impressionáveis: quando o fenômeno vira fantasia e a mediunidade passa a ser banalizada pelo médium, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 6 minutos

Marcelo Henrique

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Temos “médiuns” cegos a guiar outros cegos, dando explicações fantásticas e impressionantes, sobre a “distribuição da Justiça Divina” (quando, por exemplo, atestam que dada enfermidade, situação ou ocorrência é “consequência” de certos procedimentos do interessado, em vivências anteriores), cunhando uma estranha e deplorável configuração da Lei de Causa e Efeito que permite, aos seus parcos e enevoados olhos, que o “mal” seja “pago”, em outra vida (ou até na mesma), pelo “mal”.

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O erro de certos médiuns é crer na infalibilidade dos Espíritos que se comunicam com eles, e que os seduzem com algumas belas frases, apoiadas num nome imponente, que, o mais frequentemente, é um nome emprestado. Reconhecer a fraude é um resultado do estudo e da experiência” (Allan Kardec, na “Revue Spirite”, outubro de 1860, em nota ao texto “Sobre o valor das comunicações espíritas”, de autoria do Sr. Jobard).

A advertência responsável do Codificador nos remete à idéia do uso da mediunidade e do superdimensionamento das mensagens psicografadas, tanto àquela época quanto em nossos dias. Desnecessário dizer que, via de regra, os procedimentos cunhados por Rivail na análise e no processamento das comunicações mediúnicas, para fins de publicação e aceitação no (ainda) incipiente cenário das associações espíritas da França do século XIX, foi (prática e completamente) rechaçado pela grande maioria das instituições espíritas do presente. 

Em outras palavras, se aceita (quase) tudo como fidedigno e verossímil, principalmente no âmbito das reuniões mediúnicas e, mais que isso, com o entusiasmado interesse de empresas comerciais (a maioria leiga e sem compromisso com a Filosofia Espírita) em publicar romances “psicografados”, ou livros de “auto ajuda” e “reforma íntima”. Temos por aí uma proliferação de ervas daninhas que, se não são totalmente nocivas à planta espiritista, causando-lhe, aqui e acolá, alguns abalos à árvore (meio espírita), porque disseminam invencionices e absurdos; muitos, até, impublicáveis aqui.

O fato é que poucos (pouquíssimos, diríamos) estudam. Raros são os que comparam as redações “obtidas mediunicamente” (seja pela mediunidade ou, mais comumente, pelo animismo, ou pela interação entre ambos) com o conjunto de princípios e o contexto das informações contidas nas obras tuteladas por Kardec. Basta ler o conteúdo recheado por alguns floreios, certas frases com apelo sentimental, dadas “orientações” ou conselhos e, também, certos sobrenomes ou alcunhas ao final das mensagens, para que o informe passe a ter conotação de oficialidade, sendo agregado ao conjunto das “verdades espíritas”. Que falta faz o “espírito” do trabalho kardeciano, sobretudo quando calcado na assertiva de Erasto, sobre a imperiosa necessidade de tudo sopesarmos e prudentemente rejeitarmos, até, nove verdades do que aceitar uma única falsa idéia.

São muitos médiuns fascinados, fantasiosos, iludidos, que se esquecem do principal compromisso com a tarefa mediúnica: a Verdade, não a sua, mas a da (Boa) Espiritualidade, a quem deveriam servir no oportuno e benfazejo momento da concentração e do exercício medianímico. É bem verdade que é impossível dissociar, na atividade espiritual, a conjuntura pessoal (de crenças, idiossincrasias, manias e tendências, que todos trazemos e conservamos, no curso das vidas sucessivas) do conteúdo da mensagem que nos é repassada. O filtro, ainda assim, jaz imperfeito na grande parte dos casos. 

O ideal é, assim, se nos exigirmos a redução desta influência para o mínimo possível, sem ofensa alguma à liberdade de ação do Espírito. Em outras palavras, que a interferência do médium na comunicação (e, por conseguinte, na veiculação de novas “revelações”) possa ser precedida, no mínimo, dos seguintes caracteres básicos: (i) dedicação à causa espírita e à tarefa mediúnica, sem outros interesses; preparo e vigilância constante; (ii) aceitação do exame criterioso – por parte de estudiosos igualmente comprometidos – acerca da veracidade ideológica do conteúdo da mensagem, da pesquisa sobre a autenticidade da fonte (com base em arquivos históricos, por exemplo), e, (iii) sempre que possível, diante da presença de médiuns videntes idôneos e isentos, capazes de identificar espiritualmente, tanto a personalidade que se comunica (aparência), quanto a sua índole (o grau de adiantamento espiritual e a finalidade da comunicação).

Fazemos isso? Não, verdadeiramente! Não “temos tempo” para tal atividade e, mesmo que tivéssemos, em grande parte das instituições não há “voluntários” dispostos a servirem de “cobaias”, porque não raras vezes estaremos – todos nós que participamos da atividade em si – expostos à possibilidade de refutação, contrariedade e descarte de muitas das nossas “produções” mediúnicas. E, francamente, não vislumbro ninguém que esteja, hoje, fazendo isso, com regularidade.

Nas associações espíritas, vige o princípio da autoridade (?) que produz (quando médium psicógrafo ou psicofônico) ou “certifica” (isto é, atesta, homologa e endossa) os textos que lá são recebidos, inclusive, as mais das vezes, os incluem em periódicos que editam ou os reproduzem para consumo dos frequentadores. Tudo sem o mínimo respeito à análise do conteúdo das mensagens (vide as observações do Codificador sobre a metodologia do seu trabalho pioneiro, em sede do consenso universal dos ensinos dos espíritos – CUEE).

Mas o problema, que não é pequeno, não para por aí. Tem repercussões ou variações, na medida em que alguns médiuns – não satisfeitos com a sua incidência e interferência no contexto das informações espíritas disponíveis ao grande público – ainda recomendam, pessoalmente, atitudes (conselhos) nas chamadas entrevistas de atendimento fraterno. 

Então, temos “médiuns” cegos a guiar outros cegos, dando explicações fantásticas e impressionantes, sobre a “distribuição da Justiça Divina” (quando, por exemplo, atestam que dada enfermidade, situação ou ocorrência é “consequência” de certos procedimentos do interessado, em vivências anteriores), cunhando uma estranha e deplorável configuração da Lei de Causa e Efeito que permite, aos seus parcos e enevoados olhos, que o “mal” seja “pago”, em outra vida (ou até na mesma), pelo “mal”. Daí, absurdos inconsistentes como o caso que ouvi em certa instituição de que “a estuprada e o estuprador atraíram-se mutuamente pelo padrão de suas vibrações, para resgatar débitos pretéritos”. 

Em paralelo, trágicos acontecimentos que levam à desencarnação de uma ou mais pessoas, sobretudo as que possuem maior apelo midiático, são motivo suficiente, para que certos “médiuns” – e, também, depois os que popularizam tais afirmações, como os palestrantes e alguns articulistas espíritas – os tomem como “vítimas” do passado, em “resgates” de fatos pretéritos ricos em detalhes (para justificar a ocorrência atual), caracterizando, assim, uma revisão da antiquíssima lei de Talião, que já havia sido convenientemente repelida por Yeshua, quando de suas lições à Humanidade, há mais de dois mil anos. Neste particular, é preciso esclarecer que o rechaço do Nazareno à citada lei era em função de sua interpretação simplista e com espectro de vingança direta: um ladrão teria a mão cortada, por exemplo. 

Mas, em termos espirituais, com a profundidade e especificidade que a questão carece, há o precioso esclarecimento da Filosofia Espírita, nestes termos:

“Tomai cuidado! Tendes-vos enganado a respeito dessas palavras, como acerca de muitas outras. A pena de talião é a justiça de Deus. É Deus quem a aplica. Todos vós sofreis essa pena a cada instante, pois que sois punidos naquilo em que haveis pecado, nesta existência ou em outra. Aquele que foi causa do sofrimento para seus semelhantes virá a achar-se numa condição em que sofrerá o que tenha feito sofrer. Este o sentido das palavras de Jesus. Mas não vos disse ele também: Perdoai aos vossos inimigos? E não vos ensinou a pedir a Deus que vos perdoe as ofensas como houverdes vós mesmos perdoado, isto é, na mesma proporção em que houverdes perdoado? Compreendei-o bem” (resposta das Inteligências Invisíveis a Kardec, no item 764, de “O livro dos Espíritos”).

Isto é, ao invés de seguirmos essa lógica míope e transversa que consta das “prédicas” de certos médiuns e expositores espíritas, ávidos por “linkar” fatos violentos e de comoção pública com outros eventos – conhecidos ou hipotéticos – do passado, para “justificar” as dores da atualidade, devemos, nesta como nas demais questões afetas à existência humana, ponderar entre o princípio taliônico contido nas Leis Divinas, com os elementos de justiça, amor e bondade também presentes no conjunto das Leis Universais.

A fantasia, portanto, confunde-se de modo proposital com a realidade e há, aos montes, médiuns e dirigentes que se arvoram em juízes, observadores e relatores de processos reencarnatórios, quando, ainda mais, capitulam prescrições para a vida dos outros, com “conselhos” e, até, pasmem, receituários de “frequência” a tantos e quantos dias de “palestra e passe”, ou, a “necessidade” de estudar (o Espiritismo e/ou a Mediunidade), compelindo-os à participação em grupos e reuniões dessa natureza. 

Esta banalização da mediunidade, sem critérios, sem compromisso e sem responsabilidade, francamente, precisa de todo cuidado da nossa parte, tanto no sentido de não nos deixarmos influenciar por ela, quando no contato direto com os representantes deste modelo – porque há falas mansas e doces e olhares sedutores – nem, tampouco, quanto a adotarmos, em nossa conduta, comportamento e postura que a ele se assemelhe, contribuindo, não raro, para a nossa própria derrocada e a de tantos quantos se acercarem de nós, bebendo da água que lhes ofertarmos, na ambiência espírita (ou, também, fora dela). 

Prudente é, portanto, que nos afastemos de “juízos fáceis” e “análises precoces” feitas por certas “personalidades” espíritas, para que deixemos de advogar estas teses completamente absurdas – porque desprovidas do mínimo caráter de lógica e bom senso, verdadeira agressão à memória do grande Allan Kardec – para “adequar a Doutrina às nossas idéias e percepções”, encontrando “explicação” para tudo, em raciocínios enviesados…

Sejamos, pois, espíritas autênticos, verdadeiramente compromissados com o ideal e com a grandeza da tarefa medianímica, no atendimento a uma das mais preciosas advertências do carpinteiro de Nazaré: “Vigiai, porque não sabeis nem o dia, nem a hora”.

Fontes:

[1] KARDEC, A. “O livro dos Espíritos”. Trad. José Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.

[2] KARDEC, A. “O livro dos Médiuns: guia dos médiuns e dos evocadores”. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.

Imagem de Helton Costa por Pixabay


Edição: Maio de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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