Lívia Lucca, do Estudos de Cultura Espírita
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A violência masculina contra mulheres não é exagero, não é narrativa, não é invenção. É número, é dado, é estatística robusta e recorrente. É uma realidade que só não enxerga quem escolhe não ver por dissonância cognitiva — ou quem se beneficia do silêncio.
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Os últimos dias foram devastadores: o red pill [1] preso e imediatamente solto após agredir a namorada e tentar estuprá-la; a professora do CEFET [Maracanã-RJ] assassinada pelo subordinado que não aceitava ser chefiado por uma mulher; a jovem em São Paulo atropelada e arrastada pelo ex e amputada. Três casos distintos. Uma mesma raiz.
O red pill foi preso em flagrante por violência doméstica, rapidamente liberado. Mesmo exibindo desprezo público pelas mulheres, seguia como “influenciador”. A violência que ele pratica não é novidade, é apenas a consequência lógica do discurso que ele sempre propagou. E o sistema rapidamente mostrou que a liberdade (para ele) é a regra.
No CEFET-RJ [2], a professora foi assassinada por um homem que não suportava a ideia de ser chefiado por uma mulher. Ele hostilizava, intimidava, anunciava perigo. Ela temia. Instituições foram alertadas. Nada foi feito. Ela morreu por ser mulher, porque ousou ocupar um espaço de autoridade.
Em São Paulo, uma jovem foi atropelada e arrastada pelo ex-namorado, perdendo as duas pernas. O motivo? Rejeição. Um “não”. Uma tentativa de romper com o controle. Ele decidiu que, se ela não fosse dele, não seria de mais ninguém — uma fantasia de posse que o patriarcado legitima com respaldo social e institucional simbólico.
Causas estruturais
Esses homens não são psicopatas. Não são doentes. Não são monstros isolados. Não são exceções patológicas. São homens comuns, socializados no mesmo sistema, autorizados a acreditar que têm direito sobre a vida, o corpo e a liberdade das mulheres. Isso não relativiza o problema, mas explica.
A narrativa de “doença mental” serve para despolitizar a violência. Como se matar uma mulher fosse um surto individual, não o resultado previsível de uma cultura que ensina que elas devem obediência, servidão, submissão, silêncio e gratidão, mesmo diante do abuso.
Enquanto isso, homens que propagam discurso de ódio seguem nas redes: ensinando manipulação, incentivando controle emocional, glorificando violência simbólica e física. A misoginia virou linha editorial, modelo de negócios, estratégia de engajamento.
E a comparação é inevitável. Quando uma mulher é rejeitada, ela sofre, conversa, busca amigas, tenta entender, tenta reconstruir. Quando um homem é rejeitado, ele persegue, ameaça, invade, agride e mata. Seu ego ferido vale mais do que a vida de uma mulher.
A responsabilidade é dos homens
A violência contra mulheres não é acidente, é método. Não é tragédia, é estrutura. Não é exceção, é rotina. E enquanto tratarmos cada caso como um “monstro específico”, ignoramos o que está diante de nós: homens matam mulheres porque acreditam que podem. E porque a sociedade permite.
Repitam comigo: a violência é masculina. Vários homens apareceram indignados em meus posts nas mídias sociais porque “nem todo homem”, porque “não podemos generalizar”, porque “vocês exageram”. Mas não demonstram a mesma indignação diante dos números de feminicídios. Defender o próprio ego é prioridade.
É curioso: não se revoltam pelas mulheres assassinadas ao tentar terminar um relacionamento. Não se revoltam pelas que vivem com medo. Não se revoltam pelas que perdem a vida simplesmente por dizer “não”. Mas se ofendem com a palavra “homem”. Não pode generalizar. Eles jamais fariam isso!
Quando tentam argumentar, dizem: “homens morrem mais que mulheres”. Sim, morrem. E quem mata esses homens? Advinha? Homens. A própria justificativa confirma o que tentam negar: a violência tem gênero — e o gênero da violência é masculino.
Assassinatos com a assinatura patriarcal
Mas as mulheres morrem por outro motivo: dominação. Morrem porque ousam existir fora do controle masculino. Morrem por resistir, por rejeitar, por querer sair. Morrem para pagar o preço de viver num sistema que exige submissão feminina.
Quando mulheres morrem, não é “conflito entre pares”. É punição. É controle. É patriarcado funcionando exatamente como foi desenhado: um sistema em que o corpo feminino é propriedade masculina. Homens matam mulheres.
A violência masculina contra mulheres não é exagero, não é narrativa, não é invenção. É número, é dado, é estatística robusta e recorrente. É uma realidade que só não enxerga quem escolhe não ver por dissonância cognitiva — ou quem se beneficia do silêncio.
A misoginia precisa ser criminalizada com urgência. Mas lei por lei nós já temos muitas. O que falta é efetividade, responsabilização e Estado funcionando. Enquanto isso não vier, continuaremos enterrando mulheres todos os dias enquanto alguns repetem: “nem todo homem”. Sim. Nem todo homem, mas sempre um homem.
Nota do blog:
Assinamos o Manifesto das Mulheres Espíritas Progressistas em apoio ao Movimento Mulheres Vivas (mobilização nacional contra o feminicídio), que pode ser conhecido na íntegra em:
Estamos convencidos de que este tema, dada a gravidade da situação no Brasil, deve ser tópico constante nas atividades espíritas: palestras, seminários, mocidade, educação infantil, grupos de estudos, livros, áudios, vídeos etc.
Em nosso entendimento o meio espírita deve cooperar com a sociedade ajudando a formar pessoas, em particular a formar homens, como novas concepções e práticas de suas masculinidades. Aos homens compete um papel fundamental de modificar as atitudes individuais e lutar ao lado das mulheres para enfrentar o patriarcado, o machismo e a misoginia, que produzem morte, violências e submissão do feminino.
Além do papel formativo, deve o meio espírita ligar-se às redes de proteção das mulheres, aos movimentos sociais que lutam para conquistar e efetivar direitos das mulheres. Na coletividade fortalecemos as ações e cultivamos a fraternidade.
Convocamos os homens espíritas a ir para as ruas participar das manifestações pela vida das mulheres. A omissão masculina também é parte do problema. Combater o ódio contra as mulheres é um papel de todos os homens.
Notas do ECK:
[1] “Red pill” (tradução: pílula vermelha) é uma expressão que simboliza um movimento formado por homens, que exercem a sua “masculinidade dominante”, críticos à igualdade entre gêneros. Ela remete ao filme “Matrix”, com o personagem principal Neo, que tem duas opções: tomar a pílula vermelha ou a azul. Na trama, a primeira daria a quem a ingerisse a hipotética “consciência sobre o que acontece, de fato, no mundo”.
[2] CEFET-RJ é o Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro, instituição pública federal de ensino, destinada à formação tecnológica e científica.
Foto de capa – Brasília (DF), 07/12/2025 – O Levante Mulheres Vivas realiza ato na área central de Brasília para denunciar o feminicídio e todas as formas de violência contra mulheres. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil




