João Afonso G. Filho
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Reduzir a fraternidade apenas aos espíritas é limitar o alcance da caridade e da convivência fraterna a um grupo específico, criando barreiras e alimentando um sectarismo que não condiz com o universalismo proposto por Kardec. Tal postura afasta simpatizantes, dificulta o diálogo com a sociedade e, a longo prazo, enfraquece o movimento, que perde seu encanto e sua força de atração pelo exemplo e pela abertura fraterna.
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Preliminares: minha história
Após adaptar-me à capital paraibana, iniciei a busca por uma instituição espírita com o objetivo de estreitar laços e colaborar. Foi um percurso difícil e complexo. Vindo do interior de Minas, onde os centros espíritas de nossa cidade são muito receptivos — sempre fazendo o melhor possível para acolher visitantes, neófitos e espíritas de outras regiões —, encontrei um contraste marcante.
Na instituição, por três vezes solicitei informações e fui orientado apenas a assistir palestras e, posteriormente, receber passes. Porém, não era isso que eu buscava, apesar de ter explicado minhas intenções. Resolvi então tomar uma atitude incomum para mim: informei que tinha, desde a juventude, grande amizade com um palestrante espírita bastante conhecido. Imediatamente me disseram que um diretor importante da instituição iria me atender.
Que diferença!
A recepção calorosa e sua finalidade
Ao estudar as obras de Allan Kardec, especialmente “Viagem Espírita em 1862”, encontramos seu contentamento ao ser recebido calorosamente em todas as cidades, centros e lares espíritas que visitava, com o objetivo de fortalecer o movimento nascente.
Nesta releitura, Kardec expressava, em suas palestras e conversas pessoais, a essência de seu pensamento: evitar a criação de barreiras artificiais ou elitistas dentro do Espiritismo.
Para associar a experiência a esse princípio, recorro ao trecho contido na citada obra, intitulado Instruções Particulares dadas aos Grupos em Resposta a algumas das Questões Propostas. No item II, há uma pergunta atualíssima:
“Não seria desejável que os espíritas tivessem uma senha, um sinal qualquer para se reconhecerem quando se encontram?”
Kardec é claro ao afirmar que o Espiritismo não é uma seita nem uma sociedade secreta, mas um movimento de esclarecimento moral e espiritual, livre de barreiras sociais. Ele rompe com práticas de exclusividade, senhas ou sinais, comuns a ordens iniciáticas ou grupos fechados. Com bom senso, o Professor projetava o futuro do movimento espírita, sustentando que o vínculo entre os espíritas deve ser moral, e não formal.
O tempo passou…
Com o tempo, essa visão acabou se enfraquecendo, e o movimento espírita passou a adotar regulamentos bem-intencionados, mas que, como explica Herculano Pires no livro “O Centro Espírita”, acabaram gerando fraturas e fazendo o centro espírita perder seu “ponto visual de convergência”.
No livro encontramos:
“Podemos figurá-lo [o Centro Espírita] como um espelho côncavo em que todas as atividades doutrinárias se refletem e se unem, projetando-se conjugadas no plano social geral, espírita e não espírita”.
Refletindo sobre os fundamentos que norteiam a recepção, com base nas instruções do livro febiano “Orientações ao Centro Espírita”, em seu Capítulo 5 – item 5.6.1, precisamente na letra “a”, encontra-se a recomendação de “recepcionar com fraternidade e interesse todos aqueles que são enviados por Ele ao Centro Espírita”. Uma colocação que, na prática, pode assumir um formato dissimulado de igrejismo.
Esse padrão estabelecido também poderá transformar a recepção em atividade burocrática, pois corre o risco de perder a naturalidade da convivência.
Destaco aqui novamente a alegria de Kardec, registrada na “Revue Spirite”, sobre o banquete oferecido pelos espíritas lioneses em 19 de setembro de 1860:
“A acolhida tão amiga e benevolente que recebo entre vós, desde a minha chegada, seria bastante para me encher de orgulho, se eu não compreendesse que tais testemunhos se dirigem menos à pessoa do que à Doutrina, da qual não passo de um dos mais humildes obreiros. É a consagração de um princípio e me sinto duplamente feliz, porque esse princípio deve um dia assegurar a felicidade do homem e o repouso da sociedade, quando for bem compreendido, e ainda melhor quando for praticado.”
A proposta
Trazendo a reflexão para os dias atuais, há a necessidade de centros e instituições espíritas serem mais inclusivos, principalmente em questões de diversidade. Entendo que Kardec adverte que “o reconhecimento fraterno não deve ser restrito aos espíritas”, um alerta, portanto, contra o excesso de formalismo.
Reduzir a fraternidade apenas aos espíritas é limitar o alcance da caridade e da convivência fraterna a um grupo específico, criando barreiras. Isso alimenta um sectarismo que não condiz com o universalismo proposto por Kardec, para quem a caridade deve ser estendida a todos, independentemente de crença. Tal postura afasta simpatizantes, dificulta o diálogo com a sociedade e, a longo prazo, enfraquece o movimento, que perde seu encanto e sua força de atração pelo exemplo e pela abertura fraterna.
Na experiência relatada, associada ao ensinamento de Kardec, revela que o Espiritismo só preservará sua vitalidade se mantiver viva a sua capacidade universalista:
“Esta universalidade do ensino dos Espíritos faz a força do Espiritismo, e é ao mesmo tempo a causa de sua tão rápida propagação.” (“O evangelho segundo o Espiritismo”, II – Autoridade da Doutrina Espírita).
A verdadeira “senha”, portanto, de reconhecimento é a caridade em seu sentido mais amplo, que, “segundo Jesus, não se restringe à esmola, mas abrange todas as relações com os nossos semelhantes, quer se trate de nossos inferiores, iguais ou nossos superiores” (Comentário de Kardec ao item 886, de “O livro dos Espíritos”), e não protocolos ou privilégios institucionais. O movimento espírita precisa ressignificar, na prática, a simplicidade e a abertura que inspiraram seu alicerce, para que continue a ser um espaço de acolhimento fraternal e de esclarecimento para todos.
Finalizamos, relembrando, uma vez mais, Kardec:
“Se um grupo quiser estar em condições de ordem, de tranquilidade, de estabilidade, é preciso que nele reine um sentimento fraterno. Todo grupo ou sociedade que se formar sem ter por base a caridade efetiva não terá vitalidade, enquanto os que se formarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de uma mesma família que, não podendo viver todos sobre o mesmo teto, moram em lugares diversos” (“Revue Spirite”, fevereiro de 1862, Resposta à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses).
Fontes:
FEB. (2006). “Orientação ao Centro Espírita”. Conselho Federativo Nacional. Brasília: FEB.
Kardec, A. (2003). “O evangelho segundo o Espiritismo”. Trad. J. Herculano Pires. 59. Ed. São Paulo: LAKE.
Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.
Kardec, A. (1964). “Revue Spirite”. Trad. Julio Abreu Filho. Supervisão de J. Herculano Pires. São Paulo: Edicel.
Kardec, A. (2002). “Viagem Espírita em 1862”, Trad. Wallace Leal V. Rodrigues. São Paulo: O Clarim.
Pires, J. H. (1992). “O Centro Espírita”. 4. ed. São Paulo: LAKE.
Imagem de Nico Franz por Pixabay

Setembro de 2025
ACESSE: Harmonia – Setembro de 2025
Coincidência ou não, acabo de escrever um artigo intitulado Jesus Crucificado – O Farisaísmo no Movimento Espírita, que dialoga diretamente com o seu texto. Mais uma vez, a sintonia do grupo ECk evidencia a importância desse espaço de reflexão.
Parabéns pelo artigo, João Afonso! Sua análise resgata com firmeza o espírito universalista de Kardec, lembrando que a verdadeira fraternidade não se limita a regulamentos ou grupos fechados. A inclusão, como você bem aponta, é essencial para que o Espiritismo mantenha sua força transformadora e acolhedora. Um texto necessário e atual!