Ampliando Kardec: uma breve leitura sobre “O Céu e o Inferno”, por Sidnei Batista

Tempo de leitura: 7 minutos

Sidnei Batista

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Meu objetivo é desafiar os espíritas a pensarem e saírem da bolha das mesmices que enchem os programas de estudos, palestras evangélicas, atividades e congressos do meio espírita cujos fins parecem obras inacabadas que começam no nada e vão pra lugar nenhum.

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Constam-se nos anais da bibliografia espírita, da lavra de Allan Kardec o livro “O Céu e o Inferno”. Esse livro, seguindo a escala espiritual, contém relatos dos estados de Espíritos de diversas ordens e classes na erraticidade. São relatadas as situações de Espíritos felizes, Espíritos em condições medianas, Espíritos sofredores, Espíritos Suicidas, Criminosos arrependidos e Espíritos endurecidos. Conquanto as classificações reúnam esses grupos de acordo com as condições que os Espíritos apresentam, elas são genéricas. Não significa que todos possuam, sintam e vivam exatamente as mesmas sensações, porque cada um as sente e viva de maneira particular, correspondente às realidades, as características e as idiossincrasias inerentes à sua individualidade que lhe definam a personalidade, maneira de ser, de pensar e de agir. Como diz a expressão popular, cada caso é um caso. 

Por isso venho convidar o leitor a me acompanhar nesta viagem introspectiva que farei para analisar os fatos relatados no livro, fatos cujas causas se perdem em mistérios insondáveis. Neste artigo preocupar-me-ei na análise de um grupo em especial, tratarei do grupo dos Criminosos Arrependidos: três Espíritos que descreveram particularmente, as narrativas porque sofreram a pena capital e como sentiram as circunstâncias dos momentos seguintes após a decapitação na guilhotina. São eles: o Padre Verger e os assassinos Lemaire e Jacques Latour. 

O que venho fazer com este convite é desafiar os espíritas a pensarem e saírem da bolha das mesmices que enchem os programas de estudos, palestras evangélicas, atividades e congressos do meio espírita cujos fins parecem obras inacabadas que começam no nada e vão pra lugar nenhum. Acerca do conteúdo de “O Céu e o Inferno”, principalmente o do capítulo em referência, não há notícias de alguém haver tido a curiosidade de questionar os verdadeiros motivos da condenação do Padre Verger. O próprio Kardec, a meu ver, quem sabe porque carecesse de informações precisas ou talvez por prudência, não avançou nas minúcias do crime, posto que ao que parece o caso envolvia assuntos delicados que pudessem causar-lhe problemas policiais e judiciais, que fatalmente prejudicaria o nascente movimento espírita francês do qual ele era líder. 

Contudo, as sentenças aplicadas a Lemaire e a Jacques Latour tiveram justificativas – eles eram homicidas com extensa ficha criminal, sanguinários e impiedosos com suas vítimas. Não era o caso do Padre Jean-Louis Verger, tanto que, nos dois diálogos que estabelecera com Kardec, o Espírito não deu evidências de antecedentes criminais. Seu único crime fora o de, no dia 3 de janeiro de 1857, haver assassinado o Arcebispo de Paris, Dom Marie Auguste Dominique Sibour, pelo qual fora levado à execução, vinte e sete dias depois.

Não há dúvidas que houveram motivos para ele cometer o crime e tudo leva a crer que eram gravíssimos a ponto de o abalarem emocionalmente. Não foi um impulso gratuito de matar o prelado. No entanto, são desconhecidas as motivações. E como não temos elementos suficientes de informações, vejo-me obrigado a recorrer a três hipóteses que, a julgar pela natureza do delito qualquer uma pode ser legítima. Poderíamos buscar outras mais, mas fiquemos com estas três para não nos perdermos numa algaravia de conjecturas, que encheriam páginas e páginas de papel, sem lograr êxito. 

Vamos a elas:  

Primeira hipótese: a conduta irregular do padre, na sua vida pessoal, que violasse as normas da Igreja e que chegara ao conhecimento do Arcebispo e este lhe aplicaria rigorosa punição. Este é um fato corriqueiro suscetível de ocorrer em qualquer instituição, seja de malversação financeira, vida dissoluta do acusado que possa causar escândalo à Igreja. Por exemplo, um fato semelhante aconteceu no Brasil exatos cem anos depois. No dia 1º de julho de 1957, o padre Hosaná de Siqueira e Silva matou o bispo Dom Francisco Expedito Lopes, da Diocese de Garanhuns, estado de Pernambuco. O motivo: conduta imoral do Padre, envolvido com mulheres, extorsão de dinheiro para celebrar atos litúrgicos. O bispo estava empenhado na investigação da conduta do padre que poderia resultar na sua expulsão da Igreja. Em 1997, quarenta anos após, padre Hosaná foi brutalmente assassinado a pauladas, mas o autor do crime nunca foi descoberto. 

Segunda hipótese: abuso de autoridade e/ou assédio moral de um superior a um subalterno que lhe impusesse humilhações. É também um fato recorrente nas relações humanas; acontece no seio das famílias, nas empresas e em quaisquer instituições sejam militares, eclesiásticas, etc. Não raras vezes, os “superiores” fazem valer sua autoridade aos subalternos, impondo-lhes rebaixamento de suas dignidades. Enquadram-se nesta categoria os chantagistas, que conhecendo a vida íntima de alguém, a usam para tirarem proveitos financeiros ou de ordem psicológica de escravidão.

Terceira hipótese: abuso sexual, esta a mais grave e mais comum do que se imagina. Ora, quando cometera o crime o padre Verger era um jovem de 31 anos, donde se pode supor que, ao entrar para o Seminário talvez fosse um adolescente fisicamente bonito. E sua juventude, os modos delicados provavelmente atraíram a atenção de pessoas que tinham preferências por rapazes. Daí, é possível imaginar os abusos e violências que não somente ele, como também seus colegas seminaristas devam ter sofrido. Ressaltando que, tanto uma quanto as outras possibilidades, causam inexoravelmente na pessoa que as sofre dolorosos traumas psicológicos, vergonha, ódio por se sentir impotente, incapacitado de reagir ao assédio do poderoso contra o fraco, principalmente no caso de abuso sexual. É sabido que o problema de assédio sexual sempre foi uma pedra de tropeço da Igreja, de maneira que as denúncias de abusos hoje explodem por todas as partes do mundo revelando escândalos inacreditáveis. Mas, e antigamente na Idade Média, na Renascença e nos séculos posteriores, como eram? Imaginem-se os dramas que desenrolavam nas clausuras, nos mosteiros, seminários, sacristias há séculos e séculos atrás, delitos mergulhados em silêncio abissal? Em seu livro “O Nome da Rosa”, Umberto Eco relata o drama de um frade que, por sofrer constantes abusos sexuais, se suicida, atirando-se do alto da torre do mosteiro.

É certo que o citado homicídio provocara enorme impacto na sociedade francesa, a imprensa local e de outros países com certeza destinaram manchetes de primeira página ao caso. Também comentários à boca pequena certamente excitavam, na opinião púbica, a imaginação das relações secretas entre o assassino e a vítima. Talvez porque o caso envolvia um assunto delicado que abalaria a reputação da Igreja Católica se os verdadeiros motivos viessem a público, temendo rumoroso escândalo, o Clero se apressou em abafar. Afinal, tratava-se de alto dignatário da Igreja. Ademais, a Igreja era uma instituição poderosíssima, quem se atreveria a afrontar os seus poderes sem sofrer indesejáveis sanções?

Além disso a França vivia sob o regime ditatorial de Luis Bonaparte III. Este ditador, como se sabe, impunha rigorosa censura à população, o que impedia virem à luz acontecimentos que envolvessem personalidades proeminentes na sociedade. Mesmo assim, os reais motivos, que passavam na intimidade psicomental do criminoso e da vítima, talvez permanecessem envoltos em segredos inescrutáveis que somente eles poderiam conhecer.

Lembremos que, em 1857, Allan Kardec ainda realizava sessões mediúnicas domésticas – a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas ainda não existia, seria fundada somente no ano seguinte – e, nessas reuniões, eram evocados Espíritos de todas as ordens e categorias. Pois foi numa dessas reuniões que, horas depois da execução, Kardec evocara o padre recém-desencarnado e perguntara-lhe se se arrependera do que fizera. E ele responde: “Fiz mal em matar, mas a isso fui levado pelo meu caráter, que não podia tolerar humilhações…”. Notem que as palavras “tolerar humilhações”, assinaladas em negrito, têm significados subjetivos que, sem dúvida, são condizentes com as três hipóteses que mencionamos acima. 

Mais adiante, na mesma entrevista há mais uma sutileza que não pode passar despercebida, à pergunta de Kardec: “vedes a vossa vítima?”. Ao que o ex-padre responde: “Parece-me ouvir uma voz semelhante à sua que me diz: “não mais te quero…, será talvez, um efeito da imaginação!… Estou doido, eu vo-lo asseguro”. Essas palavras, que também assinalei em negrito, poderiam ser reminiscências do Espírito, indicando que a certa altura houvera um rompimento na relação entre o Arcebispo e ele: “Não mais te quero”. Teria o jovem sacerdote se sentido usado e depois descartado como se fosse um objeto ordinário? Quem sabe, mesmo numa relação traumática não haveria uma dependência afetiva entre o Padre e o Arcebispo, que mais tarde os psicólogos chamaram de “A Crise de Estocolmo”? Ora, este episódio ocorreu no dia 23 de agosto de 1973, num assalto a um banco em Estocolmo. Uma jovem fora feita refém. Como a operação policial para prender os assaltantes demorasse muitas horas, estabelecera-se entre os mesmos e a jovem uma relação cordial de quase cumplicidade e ela chegou a defender a quadrilha e até apaixonar-se por um deles. 

Então o leitor abismado com esses leques de possibilidades, perguntaria: – Como é possível haver uma atração sexual entre um prelado, maior autoridade eclesiástica na França e um obscuro padre subordinado? Pois eu respondo que é muito mais comum do que supomos: a História está repleta de fatos dessa natureza. Eles acontecem em todas as instituições humanas e a Igreja não seria exceção. São conhecidos os casos da Pornocracia, como a história da cortesã Marózia, no século X. Ela foi amante de um Papa, mãe de outro Papa e avó de um terceiro. 

Se os espíritas soubessem a grandiosidade e estudassem com maior profundidade o Espiritismo não se quedariam perplexos com ocorrências desses tipos. Pelas Ciências Naturais de Sociologia, Antropologia e de Psicologia conheceria os porquês desses comportamentos, que “O livro dos Espíritos” aborda na questão 872: Resumo Teórico do Móvel das Ações Humanas. 

Examinando-o, passa a descobrir palavras não grafadas por Kardec – mas que estão lá, indelevelmente escritas –, descrevendo as diversas etapas da construção cronológica do EU, embasado no EGO, usando o trinômio (a Inteligência, o Pensamento e a Vontade), pelos quais os Homens, enquanto Espíritos encarnados e os Espíritos, enquanto homens desencarnados voltam suas atenções, entre os quais a Sexualidade, o Poder, o Dinheiro, a Política, o instinto de Dominação, Afetos e Religiosidade, móveis que os impulsionam a avançarem sempre mais, vivendo experiências de Almas em progresso ininterrupto para mais altas esferas da espiritualidade, tendo como rota de desenvolvimento esta máxima dos PROLEGÔMENOS (em “O livro dos Espíritos): “Não é senão pelo trabalho do corpo que o Espírito adquire conhecimentos”. 

Ah, se os espíritas soubessem!

Fontes:

Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.

Kardec, A. (2021). “O Céu e o Inferno”. Trad. Emanuel Dutra. Guarulhos: FEAL.

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O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina Segundo o Espiritismo

 

 

 


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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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2 thoughts on “Ampliando Kardec: uma breve leitura sobre “O Céu e o Inferno”, por Sidnei Batista

  1. Excelente provocação, Sidnei!
    Seu artigo nos convida a revisitar O Céu e o Inferno com olhos mais críticos e menos acomodados. Ao destacar os relatos dos criminosos arrependidos, você rompe com a superficialidade que muitas vezes domina os estudos espíritas e desafia o leitor a pensar além das mesmices. Difícil não aprender por aqui, não é verdade?

    Um estudo mais profundo da obra evitaria tantos equívocos — inclusive a inversão de papéis que, infelizmente, ainda vemos entre espíritas, especialmente em casos delicados como o estupro, o aborto, onde a vítima acaba sendo tratada como algoz. Por incrível que pareça, há espíritas que ainda gravitam em torno dessas ideias. Mas o grande destaque, nesta entrevista do Padre, está na inteligência, lucidez e fineza de Kardec, que nos convida sempre ao discernimento, à justiça e à verdadeira caridade.

    1. Sim, Wilson, foi este realmente o meu propósito. Das atividades de difusão do Espiritismo, a par da imprensa escrita, falada e televisiva, eu destaco as palestras e os cursos ministrados nos centros espíritas. Porém, tanto quanto as palestras são melosas, escudadas no evangelismo religioso, os cursos a maioria também deixam a desejar, são rasos, superficiais, não “pegam o Mundo” nas constantes transformações científicas, socio-politico-cultural, tampouco a moralidade/intelectualidade do vir a ser filosófico. Os espíritas dormem a sono solto, o que motivou minha análise do livro, que na verdade é uma crítica. Agradeço-lhe a observação, sigamos adiante e juntos. Um abraço.