A Mediunidade em Crianças e Jovens e o Mito da Proibição, por João Afonso G. Filho

Tempo de leitura: 6 minutos

João Afonso G. Filho 

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Cabe às instituições espíritas abandonarem interpretações engessadas, substituindo o medo pelo conhecimento, e a repressão pela educação mediúnica adequada à maturidade da criança.

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Era uma noite fria, e lá estávamos nós, três pequenos irmãos, escondidos, pois não contávamos, ainda, dez anos de idade. Olhos arregalados, corações aos pulos, assistíamos, em segredo, a uma reunião de contato com os Espíritos. Estávamos ocultos, sim, mas nunca proibidos de presenciar — afinal, tais comunicações se davam na própria sala de nossa casa, mais precisamente na cozinha. Eram frequentes essas atividades domésticas, pois nossos pais ainda não haviam se articulado para fundar uma instituição espírita.

De lá, para cá, afinal, o que mudou?

Precisamos aprender a fazer releituras e compreender a mediunidade como uma faculdade natural do ser humano e inerente, pois, à constituição psíquica do Espírito encarnado. No entanto, quando se trata de manifestações mediúnicas em crianças, muitos centros espíritas adotam uma postura rígida de proibição ou negação, baseando-se em supostos preceitos doutrinários que, na verdade, não encontram sustentação explícita nas obras de Allan Kardec.

No livro “Mediunidade”, o professor Herculano Pires esclarece, em seu capítulo I – “Conceito de Mediunidade” –, que, geralmente, o seu desenvolvimento é cíclico, ou seja, “processa-se por etapas sucessivas, em forma de espiral”.

Dessa forma, torna-se necessária uma maior compreensão sobre a mediunidade como uma “faculdade natural”, temática que Allan Kardec apresenta de maneira consistente em “O livro dos Médiuns”.

Kardec define que toda pessoa que sente a influência dos Espíritos, em qualquer grau de intensidade, é médium. Essa faculdade é inerente ao homem; por isso mesmo, não constitui privilégio, e são raras as pessoas que não a possuem, ao menos em estado rudimentar. No entanto, a qualificação de médium (efetivo) se aplica somente àqueles que possuem uma faculdade mediúnica bem caracterizada, que se traduz por efeitos patentes de certa intensidade e que depende de uma organização mais ou menos sensitiva.

A mediunidade, portanto, não é privilégio nem castigo, mas uma condição psíquica, orgânica e espiritual, que pode se manifestar em qualquer fase da vida, inclusive na infância.

No item 231, da obra citada, Kardec e os Espíritos afirmam que:

“Eles [médiuns involuntários ou naturais] surgem em todas as idades e, frequentemente, entre crianças ainda pequenas”.

Um dado frequentemente ignorado por muitos que defendem a proibição da mediunidade em crianças é o de que grande parte das manifestações que deram origem à Doutrina Espírita ocorreu por meio de jovens médiuns que, não apenas foram veículo dos fenômenos físicos e inteligentes como também impressionaram Kardec pela seriedade e clareza das comunicações.

Na família Baudin, em Paris, duas garotas eram médiuns naturais. Foi com elas que Allan Kardec, em 1855, deu início ao estudo sistemático das manifestações espirituais. Essas jovens contribuíram diretamente para as primeiras observações organizadas, marcando o início da Doutrina Espírita.

Outra médium fundamental foi Srta. Japhet, também muito jovem à época. Médium de escrita e sonambúlica, foi por meio dela que diversos Espíritos, como o Espírito da Verdade, se manifestaram com conteúdo elevados. Japhet participava das reuniões da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e recebeu instruções que, adiante, fariam parte dos fundamentos da filosofia espírita.

Antes mesmo de Kardec, nos Estados Unidos, as irmãs Fox, estas sim muito mais jovens, com 11 e 14 anos, foram protagonistas dos fenômenos de Hydesville (1848), que se tornaram mundialmente conhecidos e despertaram o interesse público e científico para os chamados “Espíritos batedores”.

Esses exemplos históricos reforçam que, mesmo na infância, na adolescência e nos anos iniciais da juventude, não há qualquer impedimento natural à mediunidade. Elas representam importantes fases do Espírito e, como tal, requerem a orientação – e não a negação – do fenômeno.

Ao se ler sobre a história de Katie King, encontramos referência à Srta. Cook, então com dezesseis anos. Os fatos a este respeito são interessantíssimos, como o envolvimento de toda a família: a mãe, a tia, os meninos e a ajudante doméstica, todos sentados nos degraus da escada, aguardando que Katie se materializasse através da jovem Florence Cook.

Dessa forma, a Doutrina Espírita não proíbe a mediunidade em crianças – mas, sim, recomenda discernimento, preparo e acompanhamento criterioso, de acordo com o grau de amadurecimento emocional e moral do Espírito encarnado.

Infelizmente, no Brasil, foi formatada uma visão excessivamente restritiva e dogmática sobre a mediunidade em crianças, em parte devido à má interpretação das orientações contidas no livro “Orientação ao Centro Espírita”, de autoria do Conselho Federativo Nacional da Federação Espírita Brasileira (CFN-FEB). Nele é descrito que as reuniões mediúnicas devem ser frequentadas por pessoas maiores de 18 (dezoito) anos de idade. Isso levou à crença de que a própria mediunidade em crianças seria um erro ou até uma ilusão.

Tal imposição, embora muitas vezes pudesse ser bem-intencionada, resultou num “mito doutrinário” não embasado em Kardec, ignorando que o fenômeno existe naturalmente, mas sua prática deve ser acompanhada com prudência.

No item 221, ainda de “O livro dos Médiuns”, destaco outros pontos importantes:

  1. Será inconveniente “desenvolver” a mediunidade das crianças?
    – Certamente. E sustento que é muito perigoso, porque esses organismos frágeis e delicados seriam muito abalados, e sua imaginação infantil, superexcitada. Assim, os pais prudentes as afastarão dessas ideias ou, pelo menos, só lhes falarão a respeito no tocante às consequências morais.
  2. Mas há crianças que são “médiuns naturais”, seja de efeitos físicos, de escrita ou de visões. Haveria, nesses casos, o mesmo inconveniente?

– Não. Quando a faculdade se manifesta espontaneamente numa criança, é sinal de que pertence à sua própria natureza e que sua constituição é adequada. Não se dá o mesmo quando a mediunidade é provocada e excitada. Observe-se que a criança que tem visões geralmente pouco se impressiona com isso. As visões lhe parecem muito naturais, de maneira que ela lhes dá pouca atenção e, quase sempre, as esquece. Mais tarde, a lembrança lhe volta à memória e é facilmente explicada, se ela conhecer o Espiritismo.

Ressalto, pois, no item 7, transcrito, aquilo que Herculano Pires diz sobre os “ciclos” e os “cuidados”, conforme já mencionado.

Assim, a mediunidade em crianças deve ser respeitada de acordo com a sua natural manifestação: quando espontânea, é sinal de predisposição natural e pode ser observada com cautela; mas, quando provocada, representa um risco ao equilíbrio físico e psicológico infantil, devendo ser evitada por prudência e responsabilidade. 

Destaco, entretanto que não estou fazendo apologia para que crianças/adolescentes frequentem reuniões mediúnicas. O que proponho é uma análise sensata da temática, destacando a necessidade de os centros espíritas se organizarem para lidar com o assunto de forma responsável, e não relegá-lo ao esquecimento ou tratá-lo como um dogma.

Kardec segue no seu “Guia dos Médiuns e dos Doutrinadores”:

  1. Qual a idade em que se pode, sem inconveniente, praticar a mediunidade?

– Não há limite preciso de idade. Depende inteiramente do desenvolvimento físico e, mais particularmente, do desenvolvimento psíquico. Há crianças de doze anos que seriam menos impressionadas que algumas pessoas já formadas. Refiro-me à mediunidade em geral, pois a de efeitos físicos é mais fatigante para o corpo. Quanto à escrita, há outro inconveniente, que é a falta de experiência da criança, no caso de querer praticá-la sozinha ou fazer dela um brinquedo.

O exercício da mediunidade requer orientação e educação, não importa a idade em que surja. Impedi-la por dogmatismo é sufocar um potencial de desenvolvimento espiritual.

O Espiritismo é, pois, uma doutrina de liberdade consciente; não de repressão! Não se pode simplesmente acatar, de forma ortodoxa e intransigente, “conselhos administrativos” que substituem princípios da Doutrina por normas disciplinares autoritárias, afastando-se, assim, do caráter pedagógico proposto por Kardec. Para ele, a educação mediúnica deve ser individualizada, progressiva e respeitosa — jamais dogmática ou proibitiva!

O que se deve evitar é o uso prematuro, inconsequente e desorientado da mediunidade. Mas, se ela existe, precisa ser compreendida, e não negada.

Da mesma forma que a inteligência e as demais faculdades humanas, a mediunidade se desenvolve no processo de relação. Geralmente, seu desenvolvimento é cíclico, ou seja, processa-se por etapas sucessivas, em forma de espiral. (Entrelinhas com Herculano Pires)

A análise das obras fundamentais do Espiritismo – em especial “O livro dos Médiuns” – revela que a mediunidade pode se manifestar naturalmente na infância, sem que isso represente qualquer anomalia ou erro. A Doutrina, então, não proíbe, mas orienta com bom senso e prudência.

Cabe às instituições espíritas abandonarem as interpretações engessadas, substituindo o medo pelo conhecimento, e a repressão pela educação mediúnica adequada à maturidade da criança.

Allan Kardec foi claro: o Espiritismo é uma doutrina de esclarecimento progressivo, e não de proibições autoritárias. Com esse olhar, é possível respeitar o desenvolvimento espiritual das novas gerações, acolhendo com responsabilidade os pequenos médiuns que reencarnam com propósitos definidos na seara do bem.

Imagem de Rosy Bad Homburg Germany por Pixabay

 


Edição: Agosto de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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