Tempos e Templos: entre a lucidez dos mestres e a histeria das multidões, por Wilson Custódio Filho

Tempo de leitura: 5 minutos

Wilson Custódio Filho

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Igrejas, Sinagogas, Terreiros, Centros Espíritas e demais templos religiosos se tornam palanques; púlpitos viram tribunais, e a espiritualidade é sequestrada por ideologias.

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Introdução: tempos estranhos

A frase ecoa nos altares como um talismã, uma promessa de proteção invisível contra o caos:

“Não podemos perder a fé.”

Mas, na minha incredulidade, ela me incomoda. Pois, por vezes, parece ser justamente a fé – ou aquilo que fazem em seu nome – que está matando a razão.

Vivemos tempos estranhos. E templos, também.

Templos cheios, 

corações vazios.

Discursos exaltados,

para almas desbotadas.

Ecos.

Tudo me parece sem sentido, sem razão, sem objetivo.

É como se estivéssemos todos em um picadeiro, onde os artistas se veem perdidos, mas seguem atuando – seja por inércia ou desespero. 

Vejo, entre o caos, caminhos retos por linhas tortas…

Os dias se arrastam: pálidos de esperança, cálidos de ódio e gélidos de empatia. Insanos. Doentios. Sem paixão. Nítida patologia da indiferença humana. Assim, o “choro e ranger de dentes” é estigmatizado pela indiferença.

E a senhora maldade, nutrida pela psicose humana — essa sim! — parece gozar de plena saúde. Anda solta, livre, travestida de virtude, sorrindo em púlpitos, marchando em nome de deuses que, semelhantes à sua imagem, decerto nunca tenham pedido por isso: homens em pele de lobos!

Uma fé estranha

Em tempos recentes, temos visto muitos líderes e distintos movimentos que, em nome da fé, incitam o ódio contra minorias, negam direitos fundamentais e promovem guerras culturais. A fé, que deveria unir, é usada como arma; assim, Igrejas, Sinagogas, Terreiros, Centros Espíritas e demais templos religiosos se tornam palanques; púlpitos viram tribunais, e a espiritualidade é sequestrada por ideologias.

Não é a fé que está doente. É o uso que se faz dela. E, nesse cenário, a razão é exilada como heresia.

Sinceramente…

Talvez o maior risco atual não recaia sobre a fé raciocinada – que, convenhamos, anda bem cega. Mas sobre a própria lucidez.

Como bem alertou Allan Kardec [1]:

“só é inabalável a fé que pode enfrentar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade”.

Mas… Que razão? Que humanidade, amigo?

Talvez seja justamente essa fé – lúcida, crítica, viva – a que nos falta.

Parece-nos que todos estão sem noção…

Obsessão coletiva

É como se uma obsessão coletiva tivesse se institucionalizado, contaminando o senso comum e entorpecendo consciências.

Allan Kardec já advertia [2], em suas análises sobre o fenômeno obsessivo, que 

“há casos em que Espíritos obsessores se apoderam de grupos inteiros e os dominam, como a certos indivíduos, fascinando-os e os conduzindo a atos contra o bom senso”.

No livro “O Alienista” [3], de Machado de Assis, Simão Bacamarte, ao perceber que toda a população de Itaguaí apresenta sinais de loucura, decide interná-la na Casa Verde – o hospício que ele próprio criou. 

Às vezes, penso que estamos vivendo algo parecido: nações inteiras fora de si, o mundo em colapso e doente; porém convencidos de sua sanidade. 

Que grande manicômio!  Quem os internará? 

Talvez o verdadeiro hospício não seja a Casa Verde de Itaguaí, mas os templos de seus oradores, as religiões de seus pregadores, a doutrina de seus palestrantes – lugares onde o bom senso foi esquecido, quando não enclausurado.

Sanidade posta em chefe – já não sei o que pensar. Daí, a ficção: tudo me parece muito doido – como num jogo de futebol em que os técnicos orientam, os jogadores cumprem seus papéis, mas a torcida… Essa se degrada dentro e fora do estádio.

Cada qual em defesa de suas paixões e convicções, como se o sagrado, aquilo em que creem, fosse um time a ser vencido pelo outro. Veja, então, minha tradução da escalação espiritual desse grande circo planetário:

Escalação Planetária: a formação 4-3-4 da Fé

Jesus, devidamente escalado para os cristãos, atua como o camisa 10 da equipe, conduzindo o jogo pelo centro do campo. Craque por excelência,  criativo, distribui passes precisos de compaixão e vira jogos com milagres de última hora.

Maomé, titular absoluto entre os islâmicos, comanda a zaga com firmeza e disciplina, impedindo a progressão dos adversários. No braço, a faixa preta denuncia o capitão. Profético e tático, organiza a defesa com autoridade e fé inabalável.

Moisés, o calejado veterano dos judeus, joga na lateral com maestria milenar. Veloz atravessa o campo como quem cruza desertos – e ainda encontra tempo para abrir o mar da incredulidade adversária.

Krishna, Rama e Shiva, um trio de ouro no time hinduísta, formam o ataque galáctico. Krishna, como notas entoadas de flautas, encanta com seus dribles mágicos; Rama avança, parte para cima com retidão e honra; Shiva destrói jogadas para recriá-las com energia transformadora.

Siddharta Gautama, sempre sereno, representa os budistas no gol. O Iluminado não se abala com o placar – não vibra com a vitória, nem se desespera com a derrota. Apenas está. Ele não defende por instinto; medita entre as traves e aceita cada chute como parte do caminho.

Allan Kardec, correndo por fora com sua prancheta de perguntas e respostas racionais, atua como técnico-científico da equipe. Observa o jogo com método, anota tudo e, se necessário, propõe substituições mediúnicas – sempre com base no Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos.

Será ele, Kardec, mais uma vez, o responsável por devolver a lucidez aos espíritas? Sendo a bola da vez, olha de um lado, olha para o outro à procura do “Homens de Bem”, do Espiritismo.

Os discípulos completam o time: Todos reverenciados, seguidos, invocados – mas não compreendidos; distorcidos, fraudados, ignorados. 

Pois é… Se procurassem a culpa em seus líderes, quem sabe se defrontariam com a verdade: “Amai-vos uns aos outros”. E afinal… O que nos separa nisso?

Enquanto isso – como se nada estivesse acontecendo – o mundo moderno se apresenta com hipersônicos, destruição em massa, genocídios calculados. Tudo em tempo real sobre o aval da fé.

Ao longo da história, a significação da loucura mudou – mas a demência humana… Ah, essa se aperfeiçoa. Não que sejamos pessimistas, pois há muita coisa boa acontecendo, porém, a bondade ainda é tímida. 

Recordemos “O Alienista” [3]: diante da histeria coletiva, Simão Bacamarte viu-se obrigado a internar-se na Casa Verde – o hospício que ele mesmo criara – libertando a população ao convencer-se de que todos eram sãos, e ele, o verdadeiro louco da história, merecedor do isolamento. 

Assim como Simão, talvez essas grandes figuras espirituais tenham olhado ao redor e se perguntado: “Será que sou eu o insano?”. É obvio que não. Mas precisamos com urgência, recobrar a consciência – repensar o amor.

Sabemos, Espíritos de alta envergadura não se afastam por covardia; são afastados pela ignorância, e por isso, contemplam o absurdo à distância. Talvez, seja isso o que chamamos de sabedoria.

Diante da insanidade coletiva, é possível que tenham optado pelo silêncio, pelo recolhimento. E assim, como quem se despede de uma obra que já não reconhece, retiraram-se do mundo que ajudaram a moldar. 

Talvez o façam confiando na reconciliação da fé com a razão – como se lia na Revista Espírita (agosto de 1865): 

“À força de procurar na noite, a claridade brilha, e muitas almas transviadas […] fazem-nos marchar à sua frente, a fim de que seus dois clarões reunidos impeçam-nos de perder-se uma segunda vez” [4].

Quando fé e lucidez caminharem juntas, talvez esse mundo reencontre o rumo e esses espíritos se permitam voltar – não por resignação, mas por esperança renovada. Esse é nosso convite a revisão de valores.

Fontes:

[1] Kardec, A. (2003). O evangelho segundo o Espiritismo. Trad. J. Herculano Pires. 59. Ed. São Paulo: LAKE. Cap. XIX, item 7.

[2] Kardec, A. (1993). Revue Spirite. Maio de 1864. “Obsessão e possessão”. Trad. Salvador Gentile. Revisão de Elias Barbosa. Araras: IDE. 

[3] Assis, M. (1882). O Alienista. In: ______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Garnier.

[4] Kardec, A. (1993). Revue Spirite.  Agosto de 1865. “A fé”. Trad. Salvador Gentile. Revisão de Elias Barbosa. Araras: IDE.

Imagem de Gordon Johnson por Pixabay

 


Edição: Agosto de 2025

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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