Wilson Custódio Filho
***
Mais uma vez propomos uma reflexão sobre a jornada interior do ser humano, explorando a travessia entre o Eu e o Tu à luz da experiência do tempo. Vislumbrando os conceitos de Cronos (tempo cronológico) e Kairós (tempo qualitativo), busca-se compreender como o silêncio, a escuta e a presença reverberam o Espírito em meio à urgência contemporânea. A partir dessa perspectiva, o deserto interior torna-se ponte de revelação, onde o tempo vivido se transforma em tempo sentido.
***
Segundo consta, João Batista — sim, aquele do Evangelho, tradicionalmente considerado primo de Jesus — certa vez recolheu-se ao deserto. Lá, alimentava-se de gafanhotos embebidos em mel. Fico pensando que, em determinados momentos da vida, devemos ser como o Batista: recolher-nos ao nosso próprio deserto, nutrindo-nos daquilo que a natureza (humana e planetária) nos oferece.
Esse recolhimento não é fuga, mas reencontro. No silêncio do Eu, longe dos ruídos do que somos, convidamo-nos à escuta do que realmente importa. Alimentar-se da complexa simplicidade do Tu pode ser um ato de coragem — talvez até de preparação para algo maior, como foi para João.
Eu não sei… Talvez sim, talvez não — a história se perde na cronologia do tempo, é fato, mas a essência das grandes almas é feita de fragmentos profundos que, ao se lapidarem e se desprenderem, nutrem pequenos esforços, silenciosos, persistentes, que germinam em nós, em busca de luz.
E é justamente esse núcleo central — invisível ao compasso dos relógios, mas sensível ao espírito e eterno no tempo — que grandes pensadores, ao mergulharem na essência do Eu e do Tu, buscaram expressar: o esplendor silencioso que pulsa em nós.
Vejamos o que diz Denis (1997:128) [1]:
“todas as potências intelectuais e morais grupam-se em uma unidade central que as abraça, liga e esclarece, e esta unidade é a consciência, a personalidade, o Eu, ou, por outra, a Alma” (nosso destaque).
Essas vozes ecoam, pois, no deserto interior. Denis nos lembra que a alma é a síntese das potências humanas, enquanto Jung nos convida ao despertar pelo olhar voltado ao coração. Ambos reforçam que o recolhimento é caminho — não de fuga, mas de revelação.
E é nesse ponto que Jung [2] nos revela:
“Aquele que olha para fora, sonha; aquele que olha para dentro, desperta”.
Daí, entende-se que despertar não é o fim — mas o início de um novo tipo de encontro. Após o silêncio interior, somos convidados a olhar o outro com olhos renovados: “Ama o próximo como a ti mesmo”. Isto não como mandamento distante, mas como convite à presença. E, como ensina a sabedoria popular, toda transformação exige ruptura: não se faz um omelete sem quebrar ovos.
Eis o dilema entre o ser e o destino — como bem sugere o próprio Léon Denis em sua obra homônima [3].
É nesse contexto de busca e revelação que o filósofo Martin Buber nos lembra que o verdadeiro encontro acontece quando deixamos de ver o outro como coisa e passamos a percebê-lo como presença. No deserto interior, esse Tu não é apenas o próximo, mas também Deus, a alma, o amor [4].
É sob a perspectiva da escuta e da entrega que o essencial se revela — não como ideia, mas como vivência.
Curioso como, no paralelo dos devaneios obtusos, compreendemos que os desertos mudaram de forma. Já não se caminham entre dunas e pedras, nem se enclausuram em cavernas, mas além — entre telas, onde as notificações nos conectam a cárceres cibernéticos: sutis, porém cruéis e dissimulados.
Nesse labirinto contemporâneo, Teseu vence o Minotauro, mas sucumbe ao vento (Dionísio), hoje representado pelo excesso — excesso de tarefas, de metas, de urgências. Nesse interim, o corpo esgota, a mente grita, e o Espírito se cala.
Especialistas, com razão, chamam isso de “burnout”. Mas — perdoe a ignorância — talvez seja apenas o grito abafado de uma alma inquieta, diagnosticada não por manuais, mas pela própria vida, e que já não encontra tempo — nem razão — para respirar.
E quanto a aprendermos? Quanto a trocarmos? Pelo amor à razão, nenhum ser pensante é uma ilha…
Data vênia, não raro outros tantos recolhem-se em desertos indivisíveis, onde a solidão não é ausência, mas presença verdadeira. O exílio digital se constrói em interfases desconexas, diálogos sem escuta, companhias que não se tocam. Assim, o Eu se dispersa em avatares, e o Tu se dissolve em algoritmos.
Mais do que nunca, diante do contexto atual, é premente nos recolhermos — não como escape, mas como exposição. Dar-se uma pausa que nos permita vislumbrar além do ruído, além da pressa, e nos convide à pergunta essencial: o que estamos fazendo com o humano em nós?
Não há como não refletir. Não há como desumanizar-se impunemente. Afinal, que condição humana é essa que desafia os deuses da paz e alimenta os senhores da guerra? Talvez seja o ego ferido, o medo ancestral, a ilusão de poder. Talvez seja a repetição inconsciente de ciclos não curados.
Desafiamos esses deuses quando escolhemos o ruído em vez da quietude, a ausência em vez da presença, o domínio em vez do encontro.
E, no entanto, esses estereótipos, rasos não se impõem — eles sussurram. Estão no deserto interior, esperando que nos calemos o suficiente para ouvi-los. A condição humana, então, não é apenas a de quem desafia, mas também a de quem pode, a qualquer momento, reconhecer, escutar e retornar.
Tal é o cenário em que essa vastidão de insuficiências modernas — técnicas e humanas — se revela tão árida quanto os desertos ancestrais. E talvez mais silenciosa — porque não se vê, mas se sente!
E é nesse sentir que ecoa a voz que clama no deserto — de João, o Batista: recolher-te, não como fuga, mas como escuta. Silencia-te, não como ausência, mas como preparação. Quem sabe, assim, não construiremos um mundo à nossa imagem, mas um mundo verdadeiramente melhor.
Desta forma, seu gesto ancestral, como o de Moisés, Gautama, Yeshua e Maomé, ecoa em nós como convite: recolher-se para reencontrar, silenciar para despertar, preparar-se para servir.
No fundo, o deserto não é um lugar — é um estado da alma. Seja nas cavernas ou nos montes, o recolhimento interior sempre foi caminho de escuta e revelação. E João, em sua simplicidade, nos ensina que o reencontro com o essencial começa quando temos a coragem de nos olhar no espelho.
Como nos lembra Kardec [5],
“Possuímos em nós mesmos, pelo pensamento e a vontade, um poder de ação que se estende muito além dos limites de nossa esfera corpórea”.
Destarte, sábio é aquele que, diante da longa jornada, digere gafanhotos com mel, consciente de que o amanhã só será melhor se for nutrido pelo hoje.
Esse nutrir não se limita ao corpo, mas se estende à alma, às escolhas e à coragem de seguir, mesmo quando o caminho é árido.
Fontes:
[1] Denis, L. (1997). “Depois da Morte”. Capítulo 10 – A Vida Imortal. Trad. João Lourenço de Souza. Brasília: FEB.
[2] Jung, C. G. (2018). “Cartas”. V. I: 1906–1945. Carta a Fanny Bowditch, 22 de outubro de 1916. Trad. Edgar Orth. Petrópolis: Vozes.
[3] Denis, L. (2011) “O Problema do Ser e do Destino”. Os testemunhos, os fatos, as leis. Estudos experimentais sobre os aspectos ignorados do ser humano; as personalidades duplas; a consciência profunda; a renovação da memória; as vidas anteriores e sucessivas, etc. Trad. Homero Dias de Carvalho. Rio de Janeiro: CELD.
[4] Buber, M. (2001). “Eu e Tu”. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. São Paulo: Centauro.
[5] Kardec, A. (2004). “O livro dos Espíritos”. Comentário ao item 662. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.
Imagem de Myriams-Fotos por Pixabay

Novembro de 2025

