No estudo espírita, a IA não pode ser um totem

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto

Nos últimos tempos, incentivados pelo largo uso da ferramenta em várias áreas do conhecimento humano, são muitas as iniciativas de emulação de Kardec por meio da inteligência artificial e suas variadas formas de interação. Emular possui o sentido de “tentar superar ou igualar-se a; competir, rivalizar(-se)”. Isso tem ocorrido na criação de espaços virtuais para interações humanas, sem quaisquer alertas ou critérios, como as chamadas, em alguns casos, de “Fale com Kardec”, “Converse com Kardec”, entre outras formas. Nesses espaços, a pessoa pode fazer qualquer pergunta sobre Espiritismo que receberá a resposta fornecida pela IA, mas sem nenhum tipo de contexto ou consideração crítica.

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Por causa da facilidade de criação desses ambientes — com tipos variados de configurações —, esses espaços se transformaram em uma panaceia aplicável a todas as dificuldades ou questionamentos que aparecem no estudo do Espiritismo. São, assim, em larga escala, iniciativas criadas por grupos espíritas que procuram, de alguma forma, efetuar a materialização de Kardec, como se fosse possível ter, novamente entre nós, o Mestre de Lyon.

A ideia até pode parecer simples e tentadora: você configura o programa utilizando um dos formatos (ver anexo), os alimenta com o conteúdo das obras fundamentais e, até mesmo, com os muitos textos da “Revue Spirite”, a Revista Espírita que Kardec publicou no intervalo entre janeiro de 1858 e abril de 1869. Depois, basta fazer perguntas ao sistema.

Essas iniciativas parecem conter, em si, a crença (e é crença, mesmo!) que, dessa forma, as pessoas irão estudar mais ou se aprofundar no conhecimento espírita. Mas, de pronto, se esbarra na principal dificuldade que é uma das características da Filosofia Espírita: a de que é difícil estudar sozinho o Espiritismo, porque o conteúdo espírita é — e deve ser, sempre — não algo estático e consolidado, mas sempre em constante movimento. Aí está o principal elemento da Doutrina dos Espíritos: o seu progressismo e a sua progressividade. Muitas pessoas também ignoram que, mesmo antes da inteligência artificial, já era bastante difícil fazer com que o interessado no Espiritismo conseguisse estudar, de forma clara e sistemática — e, mais propriamente, sem o enfoque religioso e sobrenatural, valorizando a parte filosófica e racional — os fundamentos espíritas.

Não em nome de Kardec!

Estudar é um atributo intelectual. Por isso, fazer buscas (seja em materiais físicos, como livros, jornais, documentos, arquivos, assim como no ambiente virtual, como plataformas e aplicativos) é uma atividade que envolve, não só a localização e a catalogação dos resultados, como, essencialmente, a checagem das respostas obtidas. É esta uma parte indispensável a qualquer estudo. Também é oportuno salientar que nenhuma pesquisa deve estar circunscrita a um único autor ou obra, pela necessidade inerente de comparar o pensamento de diversas pessoas (ou até do mesmo autor, em momentos distintos). Assim procedendo, o estudioso, ao utilizar ampla bibliografia, deve comparar os textos, artigos, obras e referências complementares. Tenhamos por norte que ninguém irá compreender mais da Doutrina Espírita apenas fazendo perguntas a um sistema com títulos artificiais do tipo “em nome de Kardec”, em detrimento da valorosa curiosidade que desperta a pesquisa e a maturação dos temas, seja em estudo coletivo ou individual (mas, neste caso, como já dito, condicionado à troca de informações com outros estudiosos).

Nas ferramentas criadas pela IA para “facilitar” o estudo da doutrina, alguns aspectos devem ser considerados. Um deles é a ausência do olhar crítico em determinados contextos. É de conhecimento de vários especialistas que a Inteligência Artificial é programada para nunca deixar o usuário sem resposta. O sistema quer, então, a todo custo, agradar aquele que pergunta. Já foi apontado — e pode ser facilmente constatado — como a IA frequentemente “elogia” o tipo de pergunta feita. Isto nos agrada, isso alimenta o ego. Respostas como “Ótima pergunta” ou “Gostei da abordagem” são bem comuns no uso da IA.

Também existe a “alucinação”, que já comentamos aqui algumas vezes. Trata-se da relevante frequência com que a IA pode inventar informações. Como, então, se pode confiar em uma resposta dada pelo sistema, inclusive “achando” que seja Allan Kardec? Multiplica-se, assim, uma nova categoria do discurso de autoridade — já usado por tantas pessoas, mas agora com o viés do século XXI: “Eu estou certo porque falei com Kardec na IA.”

Totem

Pode parecer um absurdo, mas criar um Kardec artificial — termo cunhado com ousadia e ineditismo pelo Portal ECK — é sugerir que as pessoas, inclusive as que não refletem com maior profundidade, estão falando diretamente com o Codificador. Além de todos os erros apontados, isso configura a perigosa atitude de abraçar um totem.

Totem, em algumas acepções do termo, é uma divindade, um objeto sagrado, um símbolo ou um emblema utilizado por tribos ou clãs, na Antiguidade, baseados em crenças e dogmas considerados imutáveis. No estudo do Espiritismo, a IA não pode nem deve ser um totem, isto é algo sem a salutar oportunidade do contraponto. Mesmo utilizando a IA como uma ferramenta acessória, estudar Espiritismo é um processo dialógico e dialético — e isso SOMENTE pode ser feito entre pares, isto é, nós, humanos.

Os argumentos usados para justificar o uso desses assistentes ou agentes apontam que, com o seu uso, se resolve a falta de tempo das pessoas para o estudo do Espiritismo. Ora, o Espiritismo não se reduz à rapidez com que são formuladas perguntas e se obtém respostas sobre seus enunciados; ele é muito mais que isso! Tanto é que, se fosse apenas isso, não precisaríamos ler e estudar, seja nos livros, seja nos grupos. Bastaria assistir a palestras no YouTube ou seguir perfis (superficiais) que têm se proliferado assustadoramente no Instagram, uma das redes sociais mais populares em todo o mundo. Isso não pode ser considerado como estudar Espiritismo, mas sim falsear, em novas frentes, deturpando o real entendimento da doutrina.

Outro argumento utilizado é a dificuldade de acesso às obras de Kardec, o que não é crível, considerando tanto o preço acessível dos livros, quanto à sua disponibilidade gratuita em sociedades e federativas, que os distribuem, ou, ainda, o fácil acesso às versões online das obras, como as disponíveis em nosso Portal, entre outros.

Ir além

O que está em discussão aqui é a apresentação do estudo do Espiritismo numa forma “moderna”, mas sem critérios ou mediação.

O ECK se posiciona, neste momento, de forma pontual, afirmando que divulgar como viável uma ferramenta criada com inteligência artificial que simule “ser” ou “falar” como Allan Kardec, não colabora com o estudo e o conhecimento do Espiritismo.

É certo que, no campo da experiência com a IA, tudo é permitido hoje. No Chat GPT, por exemplo, sua versão gratuita permite que qualquer pessoa faça perguntas sobre Espiritismo — e o sistema lhe trará respostas. O importante é fazer esse uso valorizando o estudo e a beleza da busca por saberes como objetivo principal; e não como uma resposta “correta” que dispense a imprescindível análise crítica.

Como linha editorial, orientamos que o estudo do Espiritismo deva ir muito além de meras perguntas e respostas. Ele deve, outrossim, estar baseado em sua própria essência e seguindo o espírito investigador do Professor francês: comparando citações, considerando os contextos, sistematizando os saberes, assim como buscando raciocínios lógicos dentro da estrutura das 32 obras, com debates e fricções sempre tão necessários e enriquecedores.

Utilizar a IA para o estudo é uma questão que merece ser discutida. O ECK, como em tantos outros contextos, não se esconde desse debate!

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Anexo

Alguns exemplos de configuração de uso do Chat GPT

Explicação resumida e editada, com base na própria definição do Chat GPT (modelo GPT-4-turbo):

Chat personalizado
É um chat individual com instruções específicas configuradas pelo usuário, que escolhe o nome do chat, o contexto e as preferências (ex: “quero respostas curtas e poéticas”), além de memórias (ex: “Fulano gosta de conteúdo de informática ou espiritismo”). Serve para conversas contínuas e com histórico, facilitando o trabalho em projetos ou temas específicos. Exemplos de uso: “Quero um chat só para revisar meus textos de marketing” / “Crie um chat só para dicas sobre culinária”.

Assistente
É mais robusto: você cria um personagem funcional, com instruções personalizadas, upload de arquivos, chamadas de API externas e ferramentas integradas (como navegadores, editores ou códigos). Foi criado pela OpenAI para uso em escala por equipes ou produtos. Pode ser usado via interface ou API. É como criar um “funcionário virtual” com tarefas bem definidas.  Exemplos de uso: “Quero um assistente para responder dúvidas jurídicas com base nos arquivos da minha empresa.” / “Um assistente que ajude os clientes a navegar em um sistema.”

Agente
Termo mais amplo e técnico, usado em ciência da computação e IA. Refere-se a qualquer sistema autônomo capaz de perceber o ambiente e agir sobre ele para alcançar um objetivo. Pode envolver: Tomada de decisões com base em dados;  Interação com o ambiente (físico ou digital); Aprendizado adaptativo;  Exemplos de uso: Um robô que anda sozinho (agente físico). Um sistema de trading automático (agente digital); Um agente de IA que executa tarefas em várias etapas com autonomia

 

Imagem de Anna Lenskaya por Pixabay

 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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