Humanos: demasiada e espiritualmente humanos!, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 6 minutos

Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

***

Para além da fome do corpo, há a fome da mente ou do Espírito. E aqueles que ousam buscar a saciedade desta última se diferenciam entre os pares e caminham para a construção de uma sociedade organizada, mais justa e feliz.

***

Introdução: Sem a “delícia” de ser o que se é…

Humanos! Seres incompletos. Essa assertiva, muito comentada, traduz grande verdade. Somos, de fato, criaturas em constante mutação, por conseguinte aprendendo sempre. A esse respeito, John Dewey, filósofo americano, afirma: educação é crescimento e vida. Isto é pertinente ao que se vive hoje, ao acreditarmos no desenvolvimento do ser humano, com suas potencialidades e possibilidades, todas inerentes ao (seu) progresso. E, mais particularmente, em razão da Filosofia Espírita que abraçamos, leva-se em conta as inúmeras (re)encarnações. E, como ser social, sua educação se dá na sintonia entre seu corpo e sua mente, assim como em relação aos outros e à coletividade, como um todo.

Nietzsche nos inspira no título deste ensaio, com sua clássica obra “Humano, Demasiado Humano” (1878) – contemporânea, praticamente com a obra kardeciana – porque sua análise sobre o ser humano prossegue atual, no que tange à condição (material-espiritual) de prosseguir em suas buscas pela racionalidade e seus ideais, mas permanece ligado intrinsecamente às (próprias) necessidades, impulsos e limitações – quase todos inerentes à animalidade (inferior) em que ainda vive: comer, beber, dormir e transar. Sem perceber que há muito mais do que o contexto físico-material…

Não há educação sem autonomia! A autonomia é um requisito eminentemente prático e construído no cotidiano, segundo Paulo Freire. E, o educador que realmente educa (sem redundância), porque compreendeu e transpira a verdadeira educação, sabe que ao considerar o educando como um ser autônomo, permite que o indivíduo seja ele mesmo. E, no processo cotidiano, ele vai deixando no aprendiz algumas marcas, não só por suas ideias, mas sobretudo pelo contato pessoal e, neste, as salutares trocas de experiências. Ao imprimir em seu trabalho bondade e paciência, o mestre também propicia a emersão de valores fundamentais ao bem viver e a uma lógica de um planeta que seja agradável para se viver.

Todavia…

Nossos conturbados ambientes

No derredor, no cotidiano, em nossas cidades, em nossas instituições educacionais, públicas ou privadas, nem sempre essa é a tônica. Por isso, por vezes, surge um suspiro, um espasmo, um reclamo, um pensamento, diante de situações que não podemos controlar, nem evitar. Mesmo que elas estejam ocorrendo bem proximamente. E, igualmente, em relação àqueles fatos que, volta e meia, ocupam as mídias, em ambientes escolares ou na relação professor-aluno. É aí que, quase em súplica, rogamos ao Universo para que tudo se acabe e que recomecemos (nós e os outros, mas, principalmente, estes) de outra forma.

Mais um suspiro e a lembrança meio torta de uma frase Kardeciana transparece: “É preciso que haja excesso do mal, para fazer-lhe compreender as necessidades do bem e das reformas” (“O livro dos Espíritos”, item 784, parte final).

O mal já chegou ao ápice dos excessos? Falta quanto? Teremos de esperar para esse cume, para agir? Tudo isto nos assombra e nos faz, intimamente – quando não exteriormente – refletir…

O fato é que os (nossos) olhos atentos percebem muitos descompassos. Crianças maltratadas, entregues à própria sorte, ou “doutrinadas” por smartphones e canais de influencers; adultos escravizados à insana busca do pão de cada dia, sem tempo para praticamente mais nada; e a grande massa, a tal sociedade, distraída ante o volume incomensurável de informações e o bombardeio das mídias mais influentes (e economicamente mais bem pagas), sem tempo (nem motivação ou interesse) para avaliar o que é despejado diante de seus olhos/ouvidos.

O fantasma materialista

E há também um outro ponto relevante nesse quadrante da atualidade planetária (e, nesse aspecto, não é algo novo, mas alcança, hoje, níveis preocupantes): o materialismo que nos devora, aos poucos e frequentemente, na cultura do consumismo. E, nesse “capítulo”, a classe social não é o mais importante, pois ela se dá nos mais diversos meios. As roupas, as joias, os carros, os smartphones, as viagens, as “baladas” e “rolês”, e a felicidade (ou pretensa felicidade), são as marcas indeléveis dessa sociedade. Uma sociedade (cada vez mais) fútil, imersa em um imenso vazio, que abusa de exterioridades para mascarar as frágeis interioridades. E, que, em muitos cenários e em repetidos instantes, palco onde o ódio e a indiferença se travestem de alegria e satisfação, mormente em episódios em que o “cidadão de bem” se vangloria ou locupleta ao desprezar o “irmão” em situação de vulnerabilidade.

Onde nós estamos? Podemos dizer que permanentemente imersos em tecnologias hipnotizantes e em prazeres efêmeros, para não ficarmos “para trás” diante das modas, das notícias, das culturas e dos (assim os consideramos, embora nem todos o sejam) saberes… O cenário e o enredo continuam produzindo as (conhecidas e outras) instabilidades emocionais e os arroubos da personalidade. Nunca se viu, como hoje, tanto desprezo (pelos outros, os diferentes de “nós”) e uma marcante vontade de destruição (dos “opositores”, em termos de fé, política, conhecimentos, preferências e gostos. Onde será que erramos?

No teatro do cotidiano social, abundam as injustiças sociais. O que dizer daqueles que fazem “o que querem” de seus salários vultosos ou fortunas incalculáveis e, para a maioria, inimagináveis? Como justificar que se gasta, num diminuto espaço de tempo, relativamente pequeno, milhões e milhões, enquanto milhões – o trocadilho é proposital – morrem de fome e não possuem necessidades básicas – bem básicas – comida, água e teto, sem contabilizar a educação e a saúde bem indispensáveis  para ser saudável.

Diante de tantas doenças

Voltemos ao “locus” educacional. As escolas têm se tornado locais para “apagar incêndios”, dada a profusão de conflitos interpessoais. Crianças e jovens – que vêm sem o estofo ético adequado, seja porque não há, nos pais e responsáveis essa bagagem ou se há, nem todos conseguem fornecer, em face do tempo dedicado à luta “por sobreviver” – agridem e se engalfinham. Não todos, claro, mas muitos… E, não raro, os educadores assumem ainda mais esta (inglória) tarefa: a de mediação de conflitos e as ações protetivas ou garantidoras de que as “vias de fato” não importem em danos físicos e morais, ou óbitos… Onde foi parar a dialógica e a respeitabilidade em relação ao outro, pelo que ele é, pensa e se manifesta?

O anseio maior desta sociedade – que está e permanece doente, infelizmente – é o parecer. É preciso parecer feliz, parecer ser o mais forte e parecer possuir, com ginásticas exteriores e estereótipos bem construídos (seja para cativar, impressionar ou seduzir) sem se importar com mais nada…

Todos os dias, novas tecnologias são colocadas à disposição das sociedades – em realidade, apenas de parte da população que tem recursos para tal acessibilidade. Contudo, não há qualquer preocupação efetiva com o ser humano que irá operar a máquina, o recurso, a ferramenta. Nem, tampouco, qualquer orientação quanto ao uso seguro e não prejudicial das “facilidades” da vida moderna. Quantas doenças têm surgido? Quantos bilhões investidos em novas drogas farmacêuticas, que são receitadas para minimizar alguns dos perniciosos efeitos que a tecnologia impõe aos humanos? Quanto tempo dispendido em consultas, exames, diagnósticos, terapias?

Vê-se, em todos os lugares, os “cuidadores” de crianças e de jovens, quando estão com eles, com a cabeça curvada na direção de seu aparelho smartphone. Onde foram parar os salutares diálogos da convivência familiar? Os “maduros” e os “jovens” passaram a viver em seus “mundos virtuais”, com seus atrativos e facilidades, protegidos seja pelo anonimato de “nicknames” ou pelo distanciamento que a tela possibilita. Todos sem se importarem com o que acontece no mundo real.

A neutralidade das coisas e o apelo à inteligência emocional

Obviamente que a tecnologia e seus instrumentos, a começar pelo que está sempre na palma de nossas mãos, ao alcance dos nossos ágeis e irrequietos dedos pode levar à expansão do conhecimento e à aquisição de meios importantes para nossas carreiras e trajetórias. Seríamos levianos se apontássemos que a causa dos problemas humano-existenciais é a existência da máquina. Contudo, se outrora o conhecimento era algo buscado por muitos e nem todos tinham oportunidade, nem condições de alcançá-lo, no presente, e isto parece ser um grande contrassenso, são pouquíssimos os que o buscam e menos ainda os que de fato o possuem, conquistando saberes, e, um número ínfimo de humanos conseguem fazer dele um legítimo instrumento de progresso acessível a todos.

Por isso, tantas doenças sociais abundam em nosso cotidiano, como ansiedade, síndrome do pânico, fobias e depressão, entre outras. Isto tudo deveriam acender, para nós, um luz intermitente e intensa de alerta. Deveriam! Mas, como o (nosso) tempo é (sempre e cada vez mais) exíguo, a máquina nos alcança e nos sacia (provisoriamente) com a ilusão de rapidez e completude. Mas não é possível, sabemos, viver totalmente no mundo imaginário (virtual). É preciso deixar, vez por outra, a caverna cibernética e ver o mundo “lá fora”, com todos os desafios e dissabores…

É aí que temos a inteligência emocional, que é aquela que catapulta o ser na direção do rompimento com o “status quo” que lhe é imposto pelas “normalidades” sociais, afastando-nos dos comportamentos “de rebanho” e dos ritos dos costumes que são convencionados e repetidos por milhões de pessoas. Andar contra a corrente, fazer a contracultura, ser diferente, ousar romper convenções, posicionar-se livremente… Marcas daqueles que se diferenciam dos demais, em intelectualidade e moralidade, como as Inteligências Invisíveis sugeriram a Kardec. Os homens (Espíritos encarnados) que influenciam os progressos (sociais)…

Porque, diante da frustração de muitas criaturas, preocupadas (de modo justo, claro!) com a fome do corpo, há as que preferem a fome da mente, ou do Espírito. Aquelas que se debatem nas próprias inconstâncias e incompletudes, no percurso de “matar” o que lhe “mata”. E ousam não somente sonhar, mas fazem o “pouco” que lhes está ao alcance dos dedos e dos olhos, assim como das emoções e dos sentimentos, para projetar e construir uma sociedade (realmente melhor). Inspiradas, elas, na resposta dada ao item 930 de “O livro dos Espíritos”: “numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome”.

De nenhuma das fomes. Inclusive a que nos “mata” interiormente, diante das injustiças sociais. Posto que morremos (e morreremos a cada instante) até aprendermos a lição!

Imagem de Wolfgang Eckert por Pixabay

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

One thought on “Humanos: demasiada e espiritualmente humanos!, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

  1. Assim como Nietzsche assombrado com as contradições humanas, Jean Paul Sartre era um pessimista otimista (desculpe, também eu estou sendo contraditório) disse certa vez que “o Homem é um equívoco da Natureza, uma experiência que não deu certo e que será um eterno problema para si mesmo”. Longe de imputar ao filósofo existencialista a pecha de materialista – de alguma forma todos somos materialistas, “para mais ou para menos”, eu poderia afirmar que ele está certo. Mas não afirmo, e sei que ele está certo, mas eu confio no homem enquanto homem, porém isto é só roupagem porque este é dotado da natureza espiritual, que o anima e lhe dá Vida. Este texto é assaz excelente a ponto de, num arroubo humorado, eu sonho que quando eu crescer quero ser igual aos seus autores.