Hipernormalização pós verdade e midiotia, por Carlos Antônio Fragoso Guimarães

Tempo de leitura: 5 minutos

Carlos Antônio Fragoso Guimarães
Foto de charlesdeluvio na Unsplash

Hipernormalização, “fake News” e pós-verdade: as novas armas do poder na realização do “Admirável Mundo Novo” da massificação do “achismo”, da desconsideração do pensamento crítico e da Educação, da exaltação da informação fabricada e distribuída pela mídia e da acomodação ideológica ao domínio de uma minoria cada vez mais detentora de riquezas e poder. Um mundo de Bannons, Trumps e fantoches armados são patrocinados pelo grande capital e onde o livro, o professor, o contato e diálogo interpessoal são desconsiderados…

“A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”, Aldous Huxley.

Há algo de “errado” no mundo… As relações sociais estão se deteriorando aceleradamente a partir de uma visão de realidade que, advinda de uma mídia e de redes sociais, estimulam bolhas que erguem muros invisíveis e atomizam o contato agora mediado por meios eletrônicos. São novos os meios de aprisionamento vicioso e padronização da percepção e que impedem que se entenda como cada vez mais distantes as promessas de paz, tranquilidade e prosperidade, que nos fizeram tentar aceitar sem crítica, a partir do “fim da história”, em 1989 (com o estabelecimento da ideologia neoliberal sendo como inevitável “evolução”).

Que a Democracia real está sendo continuamente solapada e atacada por um grupo de detentores do capital a partir das redes sociais é algo que um grupo bem menor de pessoas está a perceber, e não sem motivos ocultada por parte de uma grande mídia atrelada aos interesses do mercado financeiro. A “explicação” de que o mundo está do jeito que está por não existir outra alternativa é algo que uma imensa multidão parece aceitar sem maiores reflexões. Pior ainda é o incentivo simplório a uma visão maniqueísta entre bons e “cidadãos de bem” tantas vezes exclusivistas, preconceituosos e violentos e os maus- assim taxados por não seguirem o modelo e as imposições dos primeiros ou normalmente os que lutam por direitos sociais e igualdade, de acordo com a ótica da grande mídia empresarial. O que as levaram a isso?

O grande problema é entender como, em uma época em que temos orgulho de sermos parte de uma sociedade “científica”, possa existir essa modelação de consciências e o conformismo e acomodação a tal “determinismo” social e, com ele, a apatia frente aos retrocessos humanos, sociais e ambientais. Será esta apatia parte de algo inevitável ou, ao contrário, faz parte do jogo político em ação nos últimos quarenta anos?

Um escritor russo, chamado Alexei Yurchak, havia percebido, no processo de decadência soviético entre meados dos anos 70 e 80, que a mídia se tornara o principal instrumento para o estabelecimento do conformismo e aceitação de uma falsa realidade, atualização tecnológica da máxima oriunda do nazismo em que se diz que uma mentira repetida mil vezes se torna uma “realidade” aos ouvidos ou olhos de quem as assimila por força da repetição. A este processo, ele chamou de Hipernormalização. Contudo, a prática não foi uma característica apenas da extinta URSS, longe disso, mas foi um predicado da chamada grande mídia em praticamente todo o mundo e, hoje, como o fez Steve Bannon, mais ainda das redes sociais.

A ideia foi retomada pelo documentarista britânico Adam Curtis, que realizou um excelente filme sobre o tema, chamado “HyperNormalisation”, lançado pela BBC. O documentário traça o histórico de 45 anos de desenvolvimento do jogo neoliberal com o uso da mídia e novas tecnologias, partindo das costuras e jogos políticos com táticas de modelação da percepção pública após o choque, para o governo americano, da resistência à guerra do Vietnã ocorrida a partir da exposição das atrocidades humanas lá cometidas por meio da imprensa ainda, naquela época, não totalmente controlada pelos interesses da indústria (especialmente da guerra). A tática de propaganda “indireta” por meio de orientação de pautas jornalísticas, em especial na televisão, partiu da formulação de Henry Kissinger de sua “ambiguidade construtiva”, do processo de demonização do diferente e imposição de inimigos muitas vezes inexistentes ou menos reais do que o exposto, tática esta muito utilizado por Ronald Reagan e Margareth Thatcher na imposição do neoliberalismo nos anos 80 e culminando na construção midiática de falsos inimigos (e que acabaram, por força da hipernormalização, por se tornarem inimigos reais).

O mesmo documentário também fala dos primórdios da ascensão de Donald Trump e da ultradireita, das contradições da utopia da internet e seu uso político e pelo mercado financeiro, em associação com os veículos de comunicação de massa, em especial os que estão em mãos de empresários e de políticos. E o foco do documentário está exatamente neste fato: o excesso de informações e sua canalização para determinadas interpretações pré-estabelecidas impede uma visão realmente crítica do que está acontecendo. Assim, as pessoas, perdidas, acabam por outorgarem a capacidade de “refletir” a outros que se apresentem por estes meios, pretensos especialistas, ou os assim apresentados pela mídia, normalmente apresentando um discurso pronto, compatível com os interesses de seus donos ou do poder financeiro que os patrocina.

A noção de hipernormalização, assim, se aproxima de outro neologismo, que foi escolhido pelo dicionário de Oxford como a palavra do ano, em 2018: a Pós-Verdade, ou seja, aquilo que não é verdade, mas que é apresentado como se o fosse de tal modo que suplanta a própria realidade. Assim como a hipernormalização, a “pós-verdade”, segundo o citado dicionário, ocorre apenas quando os fatos objetivos valem menos para formar opiniões que os “apelos às emoções e a crenças pessoais” – incluindo preconceitos ou formas deturpadas de encarar pessoas, fatos, acontecimentos – e são usados para justificar qualquer coisa que seja de interesse de um grupo de pessoas que visem um determinado objeto que não poderia ser obtido por vias normais, usando-se dos fatos reais. Como diz o analista político Bob Fernandes, em um de seus vídeos, “pós-verdade” é o que ocorre “quando a mistificação, a mentira bem embrulhada é vendida, e consumida, como se “verdade” fosse”. O jogo midiático envolvido no impeachment de Dilma Rousseff, que foi bem reconhecido pela imprensa internacional, e os “apelos dramáticos” de certos atores envolvidos no processo de linchamento midiático brasileiro demonstram bem isto. Afinal, está cada vez mais claro que os pretextos usados para derrubarem uma presidenta legitimamente eleita mostram-se a cada dias, não apenas falsos, mas ridicularmente insanos, parte de uma grande farsa orquestrada por forças reacionárias, como não deixam “mentir” suas consequências.

Dentro de uma certa interpretação, a hipernormalização e sua irmã, a pós-verdade, juntas, são os principais meios atuais de manipulação de mentalidades, apelando não tanto para a razão, mas para o drama emocional, condicionando a percepção das pessoas, o que explica, em parte, a onda conservadora que se abate sobre o mundo apesar da realidade mesma que mostra que a crise de 2008 foi causada pelo Mercado Financeiro, o único a se beneficiar com todos os males gerados, ou dos políticos de um passado recente bem pouco abonador que retiraram uma presidente eleita e que são, enfim, eles mesmos as causas das dores, dos incômodos, dos retrocessos sociais, da violência institucionalizada, mas que foram apresentados por uma ótica que encobria seus pontos negativos, ajudando a atingir os objetivos das forças dominantes.

Este é o processo da hipernormalização: apesar da realidade, muitos são levados a aceitar a versão da Matrix mediatizada pela grande mídia. Não se precisa preocupar tanto com o pão havendo o circo da mídia. E assim, em grande parte, surgem os midiotizados, pessoas seduzidas pelo estímulo narcísico de “informações” diluídas em formatos de espelhos de sua própria mentalidade, condicionados ao Admirável Mundo Novo previsto por Aldous Huxley. Aqui, a Pós-Verdade e o midiático ditam uma nova – e pérfida – realidade à parte do real, onde as amarras narcísicas e egóicas que nos escravizam não são percebidas, por serem impostas insidiosamente através de uma percepção artificialmente fabricada.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Hipernormalização pós verdade e midiotia, por Carlos Antônio Fragoso Guimarães

  1. Extraordinário e belíssimo texto..a hipernormalização e a pós-verdade, imposeram-se ” de pedra e cal” na nossa sociedade formada pelos media que servem interesses com objectivos concretos. Não conhecia os termos, embora conhecesse a ideia em si ,comummente utilizada e visível todos os dias nos nossos medias. Excelente. Parabéns

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