João Afonso G. Filho
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Não se trata de impor força, medo ou violência verbal, mas de esclarecer Espíritos perturbados e mesmo obsessores. O combate real e eficaz é de ordem moral e educativa: guiar, instruir e oferecer caminhos para a transformação ou sensibilização do Espírito, para que ele reencontre a si mesmo.
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Nas obras do professor Herculano Pires, assim como em “O livro dos Médiuns”, encontramos um roteiro seguro no trato com os Espíritos desencarnados e, também, com os encarnados que atuam no campo da mediunidade.
Infelizmente, este tema ainda é considerado um tabu, uma vez que foram criadas “normas” muito estranhas e engessadas, que dificultam o acesso ao trabalho mediúnico. No livro “Desobsessão” (1964), ditado por André Luís a Francisco Cândido Xavier, vemos uma série de normativas que precisam ser “ressignificadas”, ou seja, revistas à luz de uma nova visão para o século XXI. Se analisarmos o livro de forma imparcial, encontraremos um distanciamento enorme da metodologia de Allan Kardec. As prescrições contidas na obra foram e ainda são interpretadas, infelizmente, como um manual definitivo.
Em se tratando de Doutrinação, que particularmente compreendo como “Esclarecimento”, recorro aos ensinos de Herculano Pires em “Obsessão: o Passe – a Doutrinação” (item I), bem como aos de Allan Kardec em “O livro dos Médiuns” (Item 254, 5, do Capítulo 23 – Obsessão).
Vejamos o que Kardec registra:
“Não se pode também combater a influência dos maus Espíritos orientando-os moralmente?
— Sim, mas é o que não se faz e não se pode deixar de fazer. Porque é frequentemente uma tarefa que foi dada e que devias cumprir caridosa e religiosamente. Por meio de bons conselhos pode-se levá-los ao arrependimento e apressar-lhes o adiantamento.”
Podemos compreender, então, que os dois instrutores (Kardec e Herculano) nos convidam a refletir sobre a diferença entre “combater” (muito comum nas reuniões ditas mediúnicas) e orientar. Não se trata de impor força, medo ou violência verbal, mas de esclarecer Espíritos perturbados e, mesmo, obsessores. O combate real e eficaz é de ordem moral e educativa: guiar, instruir e oferecer caminhos para a transformação ou a sensibilização do Espírito, para que ele reencontre a si mesmo.
A partir da mencionada questão e sua resposta, compreende-se que o atendimento aos Espíritos perturbados não se restringe apenas ao diálogo direcionado a eles, mas envolve também o Espírito encarnado que participa do processo (bem como toda a equipe de trabalho presente, pois todos podem se beneficiar da situação, aprendendo). A influência espiritual, sendo estabelecida por afinidades morais e psíquicas, não pode ser desfeita apenas pelo esclarecimento do desencarnado: exige igualmente a transformação íntima daquele que, encarnado, mantém a sintonia com tais forças.
Assim, a tarefa não é apenas de afastamento do mal, mas de construção do bem, em ambas as partes envolvidas.
No texto de Herculano, encontramos as oportunas explicações sobre a ruptura de Kardec com as “práticas bárbaras do exorcismo”, ainda hoje infelizmente realizadas em alguns meios.
Recordo um fato marcante da minha vida no movimento espírita: uma discussão respeitosa com meu pai e outros dirigentes de reuniões mediúnicas a respeito das “técnicas empíricas” que eles utilizavam. Nunca houve hostilidade, apesar de muitos acharem que eu os afrontava. Na verdade, eram diálogos divergentes, mas sempre fraternos.
Uma dessas divergências é destacada por Herculano Pires:
“Alguns espíritas atuais pretendem suprimir a doutrinação, alegando que esta é realizada com mais eficiência pelos Espíritos bons no plano espiritual”.
Vivenciei essa realidade em diferentes instituições e cidades, onde a técnica de “não intervir” prevalecia.
Diante desta dificuldade, buscamos meios de esclarecer a prática, mas ela já estava enraizada. Foi quando recebemos a orientação de um Amigo Espiritual, que nos recordou o ensino de Jesus:
“Ninguém cose remendo de pano novo em vestido velho; de outra forma o remendo novo tira parte do velho, e torna-se maior a rotura.” (Marcos: 2; 21-22)
A sugestão foi muito clara: formar novos trabalhadores, com mentes abertas, capazes de absorver os ensinos da Doutrina Espírita. Assim fizemos com muitos. Porém, os problemas persistem e somente o tempo os superará. Como ensina Jesus, na Parábola do Semeador, a transformação espiritual é gradual e exige disposição e esforço para se concretizar.
Portanto, Kardec (em “O livro dos Médiuns”) e as lições de Herculano Pires permanecem atuais, oferecendo orientações preciosas sobre a Doutrinação. No entanto e (infelizmente), a burocracia tomou conta do movimento espírita. A Federação Espírita Brasileira (FEB) praticamente institucionalizou as práticas, exigindo dos candidatos uma espécie de “diploma” para participar de atividades mediúnicas. Hoje, são necessários meses de cursos preparatórios — inclusive a obrigatoriedade de concluir o curso de “O evangelho segundo o Espiritismo” — antes de poder atuar. E sem os certificados de participação (frequência e aproveitamento) ninguém assume tais tarefas.
Atividades espíritas que antes eram espontâneas e acessíveis passaram a ser regulamentadas, perdendo o frescor e a naturalidade. Não faço, todavia, apologia ao descuido nem desmereço as normas, mas proponho uma análise crítica: é preciso dar um novo sentido, dar uma nova perspectiva sobre este assunto para os dias atuais, sem perder o caráter sério e instrutivo da Doutrina Espírita.
Ainda hoje e, em grande escala, as reuniões mediúnicas são consideradas o carro-forte do movimento espírita, em detrimento das reuniões de estudo — o que é lamentável. É necessário resgatar a espontaneidade, em que a disciplina não perderá o foco, mas deverá ser vista como apoio, orientando o interessado no trabalho da mediunidade a ter e valorizar uma vida de equilíbrio entre o seu cotidiano e as tarefas espirituais.
Ao mesmo tempo, caberá aos grupos ou às instituições sérios terem uma visão mais educativa, interacional e bastante motivacional, sempre mantendo o rigor doutrinário estabelecido por Allan Kardec, em que a burocracia dará espaço para uma vivência sadia, integrando as gerações com naturalidade.
São, pois, caminhos, e outros existem e precisam ser desenvolvidos para dar uma revigorada ao movimento espírita, tão resistente às mudanças e atualizações.
Encerramos com as palavras sempre atuais contidas no Capítulo 30, de “O livro dos Médiuns”, quando Kardec disserta sobre os necessários regramentos das atividades espíritas:
“Nota – Embora este regulamento tenha resultado da experiência, não o damos como um modelo obrigatório, mas unicamente para facilitar às sociedades em formação, que poderão tomar por normas as disposições próprias. Não obstante já se apresente simplificada, a sua estrutura poderá ser ainda mais reduzida, mas de pequenos grupos particulares que só necessitam de estabelecer medidas de ordem interna, de preservação e de regularidade dos seus trabalhos.”
Essa recomendação de Kardec reforça a necessidade de três elementos: simplicidade, liberdade e adaptação dos trabalhos mediúnicos. Isto em vez do engessamento burocrático, que tantas vezes mais afasta do que aproxima.
Fontes:
Kardec, A. (1998). “O livro dos Médiuns”: Guia dos médiuns e dos evocadores. Trad. José Herculano Pires. 20. ed. São Paulo: LAKE.
Pires, J. H. (1985). “Obsessão: o Passe – a Doutrinação”. 3. ed. São Paulo: Paidéia.
Xavier, F. C. (1964). “Desobsessão”. Ditado pelo Espírito André Luiz. Rio de Janeiro: FEB.