Maria Cristina Rivé
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É uma sede líquida, uma corrida sem-fim por uma satisfação não satisfeita. Nessa liquidez, somos o que possuímos e os amigos que temos é o resultado daquilo que aparentamos nas redes sociais. a sociedade pós-moderna, onde todas/todos buscam a melhoria individual, egoísta, não a coletiva. Mas, depois…
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Filósofo polonês nascido em 1925 e falecido em 2017, aos 92 anos, Zygmunt Bauman foi observador contumaz. Percebeu o caminhar da sociedade – há um progresso regular e lento que resulta da força das coisas (“O livro dos Espíritos”, item 783) – e, por não gostar da expressão pós-modernidade, cunhou o termo Modernidade Líquida para definir os tempos vividos. Não há forma, há mudança e os pensamentos e sentimentos são rasos, rápidos, voláteis.
Nada é para sempre! De um encanto, a união; e, ao primeiro desencanto, a separação. Aparentemente sem traumas… Se, outrora, o casamento era “até que a morte os separe”, os empregos “vitalícios”, a vizinhança conhecida e as amizades duravam uma vida, hoje, essas relações transformaram-se de maneira espantosa. O sonho de estudar, ter UM emprego, casar, comprar uma morada, um carro, aposentar-se e sentar-se no sofá de pijama e de pantufa parece ter acabado. Trazendo a este texto uma frase que no seu sentido original talvez não coubesse – tudo o que é sólido desmancha no ar! – a constatação é que desmanchou-se totalmente…
A nova geração faz amigos e os esquece com a facilidade e a rapidez de pentear os cabelos. Ao menor dissabor, as juras de amor são esquecidas e, em vários casos, o fruto desse amor incontido também é líquido – sem forma e sem importância –, afinal a efemeridade desses tempos (atuais) não se coaduna com a responsabilidade de uma paternidade/maternidade. Houve, na mídia, um caso comentado à exaustão: pai e mãe separados queriam sair para a diversão e a criança era um entrave. Ficaram os dois em acusações e a criança pra lá e pra cá…
A vida é um processo de modo que ninguém nasce para o sofrimento; mas, ele é inerente à imperfeição do ser humano. Em processo progressivo, a criatura constrói seu destino – não algo pré-determinado – mas é responsável por seus atos: esses têm sua consequência. Tomando uma analogia, teríamos o alimento quando é produzido pela primeira vez: pode não sair tão gostoso; porém, à medida que se vai aprendendo, aprimora-se o produto.
Contudo, no Mundo Líquido, a pós-modernidade, não há tempo para o aprimoramento. Todo o processo de aprendizagem e de conquista se esvai. Como uma criança que deseja e chora por algo que não conhece, mas deseja e, ao alcançar, se desinteressa pelo objeto. Assim, ficaram as pessoas nesses tempos bicudos: há uma busca, um desejo, nunca satisfeitos. Tudo isto intensificado pelo capitalismo, o qual enxerga dinheiro ao invés de pessoas e de dignidade e neste contexto cabe todo o Planeta, toda a Criação.
A satisfação do comprar, do viajar, do mostrar uma felicidade – a muitas vezes, inexistente – está ligada ao demonstrar, e não ao sentir uma satisfação, nem ao viver com aquilo de que necessita para cumprir sua meta progressiva, como seres imortais.
Busca-se, então, uma felicidade nas coisas efêmeras mesmo sabendo que elas não suprirão as necessidades vitais de cada pessoa. Existe uma mercantilização de tudo: das coisas, dos sentimentos e dos indivíduos, e tudo é bombardeado incessantemente pela “necessidade” de comprar e de aparentar.
E o que se vê são as rodovias repletas de carros dirigindo-se às praias em tempos quentes e à serra nos dias de inverno. É o Cruzeiro Marítimo no Natal – mesmo que esse jogue toda a sujeira produzida na viagem no oceano e o polua, mais ainda, adoecendo a fauna e a flora das águas. Pouco importa! É a grande oportunidade das “selfies”, de mostrar a um grande número de “amigos”, as suas peripécias e a alegria de “viver bem”.
É uma sede líquida, uma corrida sem-fim por uma satisfação não satisfeita. Nessa liquidez, somos o que possuímos e os amigos que temos é o resultado daquilo que aparentamos nas redes sociais. É no comércio, nas compras que se encontra o lenitivo para essa instabilidade emocional nesse mundo líquido. Mais firme que palanque em banhado é a definição do resultado da sedução do comprar, do demonstrar a outrem aquilo que provavelmente não se tem. Todos estão subordinados a esse fascínio líquido causador de ansiedade e de depressão, violência e agressão. Donde vem, então, tanto ódio, tanta impaciência? Talvez, na falta do alimento da alma. A contemplação, o voltar-se a si mesmo, estudar-se para se ter o tempo necessário de fazer as emoções se tornarem sentimentos, tempo para agir com racionalidade e moderação, não simplesmente reagir ao que lhe chega.
Nesta liquidez tem-se muito sofrimento, justamente da parte daqueles que não se encaixam nesse modelo. É preciso ter o corpo ideal, a idade certa, a cor europeia, ser cis, tudo de acordo com o “normal”, mesmo que, de perto, ninguém o seja.
Há um evidente adoecimento populacional, quem sabe, porque no mundo líquido fica-se doente, pois a insegurança pessoal é o produto dessa insensatez produzida para retirar da criatura a capacidade de analisar suas reais necessidades. Então, como resultado, tem-se a impaciência, a irritabilidade e suas nefastas consequências: mortes no trânsito, feminicídios, ataques a LGBTs, crueldade com animais, desprezo pelos idosos, aporofobia, ódio a negros e a índios, perseguição a “comunistas”, oposição fácil a tudo que pretensamente o desacomode… Agem, tais indivíduos, como se acreditassem que o diferente de si o impedissem de alcançar seus objetivos.
Eis, aí, a sociedade pós-moderna, onde todas/todos buscam a melhoria individual, egoísta, não a coletiva. Não se percebe que os avanços devem ser para toda a sociedade. Isto porque a cooperação é que deveria guiar os objetivos, permear os caminhos, a inteligência e a moralidade em conjunto alavancar o progresso. Todavia, na liquidez dessa sociedade isso ainda não é possível… Mas será!
Quando tudo isto “terminar” ou estiver “resolvido”, bastará o não para tudo aquilo que escorre pelos dedos. E o entendimento será o de que não existem rivais ou adversários, mas companheiros de jornada. Espera-se, assim, que o cotidiano seja muito mais tranquilo, com os indivíduos despertos, de braços dados, caminhando juntos e construindo o “Mundo Melhor”, para todas as criaturas: é essa a meta a ser atingida!
Imagem de Anthony Arnaud por Pixabay
Edição: Julho de 2025
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