Leonardo Paixão
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O “mágico” e o “espiritual” são categorias que, embora distintas, compartilham a função de interpretar a realidade e lidar com o sofrimento humano. A contribuição espírita se dá não pela negação pura e simples das crenças populares, mas pela sua ressignificação ética e racional.
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Resumo
O presente artigo propõe uma reflexão crítica sobre as noções de feitiçaria e bruxaria a partir do olhar da antropologia clássica de Edward Evan Evans-Pritchard, confrontando suas análises com os princípios fundamentais da Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec. A partir do estudo etnográfico dos azande, Evans-Pritchard revelou os sistemas simbólicos e sociais envolvidos na crença mágica, desafiando concepções simplistas e etnocêntricas. Já o Espiritismo oferece uma abordagem espiritualista racional, que compreende fenômenos atribuídos à feitiçaria à luz da mediunidade, da obsessão e da lei de causa e efeito. O diálogo entre ambas as perspectivas permite compreender como o “mágico” e o “espiritual” são construções culturais e espirituais que respondem a diferentes paradigmas de interpretação da realidade.
Palavras-chave: Feitiçaria; Espiritismo; Evans-Pritchard; Antropologia; Obsessão; Mediunidade.
Introdução
A crença em feitiçaria e bruxaria tem atravessado séculos de história, de mitos populares a julgamentos inquisitoriais, de práticas religiosas a construções simbólicas de poder. Tais noções, frequentemente envoltas em mistério e medo, têm sido alvo de análises antropológicas, filosóficas e religiosas. No campo da antropologia, destaca-se o trabalho seminal de Edward Evan Evans-Pritchard com os azande, povo da África Central, que desafiou as concepções ocidentais de irracionalidade nas crenças mágicas. Por outro lado, o Espiritismo codificado por Allan Kardec também abordou as manifestações atribuídas à magia e à bruxaria, propondo uma leitura espiritualista e moral.
Este artigo visa articular essas duas abordagens — antropológica e espírita — em um esforço interdisciplinar que contribua para a compreensão crítica e espiritualizada dos fenômenos mágicos, especialmente no contexto brasileiro, onde religiosidade popular, sincretismo e Espiritismo dialogam intensamente.
Este trabalho se diferencia por confrontar sistematicamente a análise antropológica da feitiçaria com a interpretação espírita, oferecendo uma chave de leitura para fenômenos mágicos no Brasil, onde ambas as perspectivas se entrelaçam na cultura popular.
A Feitiçaria e a Bruxaria na Antropologia de Evans-Pritchard
Edward Evan Evans-Pritchard (1902–1973), antropólogo britânico ligado à escola funcionalista, realizou um dos estudos mais emblemáticos sobre feitiçaria em sua obra Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande (1937). Em sua etnografia, demonstrou que para os azande, a feitiçaria (mangu) não é apenas uma prática, mas uma explicação existencial para os infortúnios cotidianos.
A feitiçaria, para os azande, não substitui a causalidade empírica, mas a complementa: se uma casa desaba e mata alguém, a explicação física é o desgaste da estrutura; já a explicação mágica indaga por que aquele indivíduo estava sob a casa naquele momento específico. Assim, Evans-Pritchard revelou a lógica interna e a função social das crenças mágicas, afastando-se da ideia de irracionalidade primitiva.
Para o autor, a feitiçaria não é “superstição”, mas um sistema coerente de crenças, dotado de sentido dentro de seu próprio universo simbólico. Essa compreensão inaugura uma leitura antropológica respeitosa das cosmologias não ocidentais e aponta para a pluralidade dos modos de conhecer e interpretar o mundo.
Observa Oliveira (2014:52) sobre Pritchard:
Embora mantenha certo ceticismo, o autor afirma reconhecer pelo menos parcialmente a realidade das forças psíquicas nas quais as crenças Zande sobre bruxaria se baseiam, e sugere que colocar essa realidade em dúvida não só impediria a compreensão das práticas em estudo, mas inviabilizaria qualquer esforço para dar sentido lógico aos próprios atos do pesquisador em suas interações no campo […].
Sem entrar em questões filosóficas mais abstratas sobre o significado de diferentes modalidades culturais para lidar com o sentido dos acidentes ou dos infortúnios, bem como o sentido de práticas religiosas como as promessas e as preces, por exemplo – tão presentes nas sociedades ocidentais que deram origem à antropologia – não seria mais adequado concebê-las como evidências de uma realidade que a ciência não explica satisfatoriamente? Ou que estejam voltadas para questões de outra ordem?
Como observa Oliveira (2014), Evans-Pritchard não apenas descreve a lógica azande, mas questiona a pretensão ocidental de monopolizar a racionalidade, propondo que as práticas mágicas podem ser ‘evidências de uma realidade que a ciência não explica satisfatoriamente’.
A Visão Espírita sobre Feitiçaria e Bruxaria
Na codificação espírita, Allan Kardec trata da feitiçaria especialmente em O Livro dos Médiuns e em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Para o Espiritismo, não existem “feitiços” no sentido de manipulação sobrenatural de forças ocultas para o mal. O que se chama feitiçaria nada mais é do que a ação de Espíritos inferiores que, aproveitando-se da vontade mal-intencionada de encarnados ou da invigilância das vítimas, operam processos de obsessão. Kardec afirma: “Não há feitiçaria senão para as criaturas supersticiosas, fracas, ignorantes e de imaginação exaltada” (“O livro dos Médiuns”, item 241).
Portanto, o Espiritismo reinterpreta a eficácia dos feitiços como resultado de processos mediúnicos e leis de sintonia, não como forças autônomas, mas reconhece a possibilidade de perturbações espirituais provocadas por Espíritos obsessores, que agem em sintonia com as emanações mentais de ódio, vingança ou inveja. A responsabilidade moral é, pois, individual, e o remédio está na elevação espiritual, na prece e na reforma íntima.
Estudiosos espíritas como o Professor José Herculano Pires, com o desenvolvimento das Ciências Sociais, aprofundaram os estudos antropológicos e sua relação com a tese espírita da sobrevivência da alma e da interação dos Espíritos com o mundo visível (Pires, 1995:18-19):
O primeiro fato concreto a surgir no horizonte primitivo, no tocante a esse problema [crenças na sobrevivência], é o da existência de uma força misteriosa que impregna ou imanta objetos e coisas, podendo atuar sobre criaturas humanas. É a força conhecida pelos nomes polinésicos de “Mana” e “Orenda”. Considerada em geral como imaginária, essa força produz os mais estranhos fenômenos. Bozzano lembra a respostas de Marcel Habert a Goblet D’Alviella, sobre a natureza imaginária dessa força. Dizia Habert: “Passa-me pela mente uma nuvem de dúvida. Mana e Orenda não seriam talvez concepções demasiado abstratas, para podermos considerá-las o princípio de que partiram os selvagens, para chegar aos espíritos?
A dúvida de Habert é considerada por Bozzano “fundamental e psicologicamente” justa, uma vez que conhecemos a natureza concreta do pensamento primitivo, incapaz dos processos de abstração mental que caracterizam o homem civilizado. Mana ou Orenda não é uma força imaginária, mas uma força real, concreta, positive, que se afirma através de ampla fenomenologia, verificada entre as tribos primitivas, nas mais diversas regiões do mundo. Essa força primitiva corresponde ao ectoplasma de Richet, a força ou substância mediúnica das experiências metapsíquicos, cuja ação foi estudada cientificamente por Crawford, professor de mecânica da Universidade Real de Belfast, na Irlanda. O métodos comparativo, seguido por Lang, oferece-nos aí o seu primeiro resultado. A imaginária força dos selvagens encontra similar nas pesquisas dos sábios europeus e americanos, empenhados nos estudos espíritas e metapsíquicos.
O etnólogo Max Freedom Long, que era também mitólogo, realizou demoradas pesquisas entre as tribos da Polinésia, e particularmente das ilhas do Havaí, convivendo durante anos com os selvagens, para verificar a realidade e a natureza dessa força primitiva. Conclui que os kahunas, curandeiros polinésicos, consideravam a existência de três formas de Mana, ou três frequências, três voltagens dessa força, à semelhança da corrente elétrica. A mais baixa voltagem correspondia à força emitida pelos corpos materiais do cristal no organismo humano; a voltagem media, à proveniente da mente humana; e a voltagem superior, à proveniente de uma espécie de centro espiritual da mente humana, permitindo ao homem prever o future e realizar fenômenos físicos à distância, bem como materialização e desmaterialização de objetos.
Outra curiosa conclusão de Freedom Long é a de que os kahunas consideravam essa força como susceptível de acumulação. Os curandeiros, que usavam de feitiçaria, podiam prender espíritos inferiores que, a seu mando, faziam provisões de Mana para atuar em ocasiões oportunas. Bozzano mostra que as conclusões do etnólogo correspondem às de Andrew Lang e aos relatos e observações de numerosos outros estudiosos do assunto, bem como de viajantes e missionários que conviveram com tribos diversas, em diferentes épocas e várias regiões do globo. Por outro lado, estabelece as relações entre essa força e o ectoplasma, o que também fizera Freedom Long.
O segundo fato concreto, de ordem espírita, do horizonte tribal, é o da existência dos próprios espíritos, também universalmente afirmada. Antropólogos e etnólogos costumam estabelecer arbitrariamente certa distância de tempo entre o aparecimento de um e outro fato. Bozzano, entretanto, rejeita essa tese, para sustentar a simultaneidade de ambos. Lembra que nenhuma pesquisa ou observação revelaram essa pretensa sucessão dos fatos, e assevera: “A verdade, pelo contrário, é que essas duas concepções aparecem sempre associadas”. Uma das provas está nas próprias conclusões de Freedom Long, onde vemos os espíritos operarem através de Mana, ou seja, servindo-se dessa força. A coexistência das duas concepções, a da força misteriosa e a dos espíritos, impõe-se também diante da multiplicidade dos fenômenos mediúnicos no meio primitivo, onde, como acentua Bozzano, a presença de “agentes espirituais” se impunha, de maneira positiva.
Deixando aqui essa longa citação, vemos o quanto o estudo espírita é dinâmico e o que não era possível a Kardec em sua época, devido ao não desenvolvimento de diversas ciências, as pesquisas de estudiosos vem a ampliar e contribuir para melhor entendimento de princípios espíritas.
Pontos de Convergência e Divergência
A análise antropológica e a visão espírita encontram convergência ao rejeitarem uma leitura simplista e caricata da feitiçaria. Ambas reconhecem que a crença no “mal mágico” está profundamente inserida em contextos culturais, históricos e subjetivos.
Contudo, divergem em seus fundamentos: a antropologia compreende as crenças como construções simbólicas funcionais; o Espiritismo, como revelação espiritual e explicação das leis morais do universo. Enquanto Evans-Pritchard se abstém de julgar a veracidade ontológica da feitiçaria, Kardec a desmonta racionalmente, mas reconhece a realidade dos efeitos espirituais que podem ser erroneamente atribuídos a práticas mágicas.
Há ainda um ponto de interseção importante: ambos os enfoques buscam dar sentido ao sofrimento humano e às experiências de dor, infortúnio e desordem. A cultura azande recorre ao mangu (feitiçaria); o Espiritismo recorre à lei de causa e efeito e ao conhecimento das influências espirituais.
Implicações para o Contexto Religioso Brasileiro
No Brasil, a religiosidade popular é marcada por forte sincretismo, em que elementos católicos, afro-brasileiros e espíritas se entrelaçam. A figura do “trabalho feito”, dos “passes de macumba” e das “orações de amarração” ainda exerce influência no imaginário coletivo.
O Espiritismo, nesse contexto, exerce papel educativo e esclarecedor, ao promover uma espiritualidade racional, que valoriza o autoconhecimento, a vigilância mental e a reforma íntima como antídotos contra quaisquer males espirituais. A obsessão, longe de ser “castigo mágico”, é compreendida como fenômeno de sintonia vibratória entre encarnados e desencarnados.
Sobre processo obsessivo decorrente de magia, vejamos o que explanou o pesquisador espírita Carlos Bernardo Loureiro:
Há quem não acredite, mesmo no ambiente espírita, que certos Espíritos inferiores, que convivem com os praticantes da feitiçaria ou da quimbanda, promovem, às expensas de determinadas e sedutoras promessas, os mais terríveis e escabrosos processos obsessivos.
Em inúmeros ocasiões, o autor deste trabalho teve a oportunidade de entrar em contato com entidades desse jaez, que atormentavam, não apenas uma pessoa, mas toda uma família. Tais seres invisíveis se julgam incriados.
Cada Espírito assume características e nomes específicos e é acompanhado, segundo se propala, por uma espécie de séquito de escravos. Tudo é fruto, naturalmente, de um atávico condicionamento cultural e sentimentos inferiores, como a vaidade exacerbada, preservados e cultuados através de sistemáticos movimentos que se encontram disseminados, não semente no Brasil, mas por diversas países. Em alguns locais, chega-se a criar uma espécie de apartheid ou segregacionismo.
Na verdade, esses Espíritos são manipulados pelos líderes encarnados que os utilizam, de comum acordo, na práticas de atos que ferem a Lei Natural, recebendo diversas denominações, de acordo com a cultura da localidade onde reside seus seguidores. Assim, temos magia negra, vudu, feitiçaria, macumba, etc.
Os trabalhos, realizados em troca de gordos pagamentos, obedecem a uma tabela de preços, conforme a complexidade do serviço a prestar, e se destina a atender os clientes em uma série de propósitos, geralmente de interesse material, desde uma simples conquista amorosa até um crime tenebroso.
Nesses casos, identifica-se uma espécie de processo obsessivo que muitos estudiosos do Espiritismo insistem em ignorar. Mas é uma realidade que deveria ser objetos das cogitações dos que militam nas sessões de desobsessão, onde casos que se apresentam revestidos dessas características não são tratados adequadamente (Loureiro, 1998).
No Brasil, como observa Prandi (2001), a chamada feitiçaria afro-brasileira tem reinterpretado o mal por meio da ótica da justiça cósmica, considerando como reparação o “trabalho” (2001). Essa percepção dialoga com a visão espírita quando Castro (2013) aponta haver uma medicalização do sofrimento espiritual, por parte da Umbanda e do Espiritismo, tratando as “demandas” como processos obsessivos.
Conclusão
A reflexão sobre a feitiçaria à luz da antropologia de Evans-Pritchard e da Doutrina Espírita mostra que o “mágico” e o “espiritual” são categorias que, embora distintas, compartilham a função de interpretar a realidade e lidar com o sofrimento humano. A contribuição espírita se dá não pela negação pura e simples das crenças populares, mas pela sua ressignificação ética e racional.
Ao compreender que “o mal” não vem de fora, mas nasce da ignorância espiritual e da sintonia com entidades inferiores, o Espiritismo oferece uma via libertadora e consciente, em que a fé raciocinada substitui o medo mágico, e a caridade ocupa o lugar da vingança oculta.
Sugere-se pesquisas empíricas que analisem como comunidades espíritas brasileiras ressignificam narrativas de feitiçaria, integrando-as a um framework de leis morais e fluidos espirituais.
Fontes:
Amaral, R. (2006). O Mundo das Religiões Populares. São Paulo: Terceiro Nome.
Evans-Pritchard, E. E. (1937). Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande. Oxford University Press.
Fernandes, R. S. (2004). Bruxaria, Magia e Espiritismo. São Paulo: Edicel.
Geertz, C. (1989). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.
Kardec, A. (2004). O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE.
Kardec, A. (1998). O livro dos Médiuns. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE.
Lévi-Strauss, C. (1975). Antropologia Estrutural. São Paulo: Tempo Brasileiro.
Oliveira, L. R. C. (2014) Concretude simbólica e descrição etnográfico (sobre a relação entre antropologia e filosofia). In: Werneck, A. et al. Pensando bem: estudos de sociologia e antropologia da moral. Alexandre Werneck, Luís Roberto Cardoso de Oliveira (Org.). Rio de Janeiro: Casa da Palavra.
Pires, H. (1995). O Espírito e o Tempo: Introdução antropológica ao Espiritismo. 7. ed. Sobradinho: Edicel.
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